Já sabemos como o mundo civilizado vai se comportar daqui para frente: anulando o que nos diferencia de todas as outras espécies
Por Guther Faggion (*)
Em tempos de coronavírus, um número expressivo de pessoas anseia, com bizarro entusiasmo, pelo fim dos tempos. O imaginário do Apocalipse é um dos mais bem retratados nas artes, das pinturas medievais aos blockbusters cinematográficos. Séries aclamadas acendem em nós a fantasia de estarmos entre os sobreviventes da pandemia zumbi. O caos estranhamente nos atrai. Revela em nós sentimentos que vão do mais profundo sentido comunitário ao completo desespero do “antes eles do que eu”. Até por isso, acho injusto culparmos a imprensa (sozinha) pelo caos. Ela entrega aquilo que queremos ler, ver e ouvir. Da maneira mais prosaica possível.
Enquanto os infinitos memes se multiplicam via mídias sociais (essas também de caráter pandêmico) com as piadinhas mais infames — afinal, é importante sucumbirmos a um certo cinismo para tornar a vida mais palatável —, fomos atordoados com a maior queda das bolsas de valores na história da humanidade. A crise de 1929 ficou para trás. No início, quem não subestimou a queda, achando que imediatamente os mercados iriam se recuperar? Depois, estendemos o prazo para “algumas” semanas e achamos que tudo estava precificado. De circuit breaker em circuit breaker, fomos aguentando uma paulada atrás da outra. Hoje, a previsão é “sem previsão”. E não existe tempo nem margem de manobra. O mundo ficou menos líquido. Exceto por nossas lágrimas.
Num falso ímpeto de valoroso protocolo moral, como sociedade nos vemos obrigados a jogar palavras ao vento como: “o importante é a vida, a economia a gente reconstrói”. Ignoramos completamente dados sólidos, concretos, irrefutáveis por análises estatísticas duvidosamente enviesadas por cientistas (de verdade) que são incapazes de enxergar “the big picture”. Economias inteiras serão destruídas. E, na esteira de sua destruição desproporcional à ameaça que estamos enfrentando, um contingente ainda maior de pessoas morrerá. Poucas influências (ou influenzas!?) externas causam mais doenças psiquiátricas que a falta de renda. Os mais pobres — em geral, aqueles que os proletários de iPhone 11 adoram defender na teoria — serão os mais afetados. Certamente são mais resistentes ao coronavírus do que às necessidades materiais mais básicas.
Vivemos um momento histórico sem precedentes. De irracionalidade. A irracionalidade basicamente implica, se pudermos colocar assim, no agir antes de pensar. Certamente é a categoria em que podemos colocar 10 entre 10 governantes do mundo neste exato momento. Os que tentam fazer a análise “Coronavírus versus Economia” e jogar um pouco de luz sobre o assunto rapidamente são massacrados pelos exércitos de conscientes praticantes do home office. Não adianta argumentar que a taxa de letalidade do vírus chinês é quase débil, que uma gripe comum mata mais ou que sair de casa é mais arriscado que um possível contágio pela simples possibilidade de sermos atropelados. Lembra quando sua mãe mandava você brincar com aquela amiguinha com caxumba? E daí que a humanidade já tenha descoberto que o contágio pode ser a melhor cura para a doença?
Atitude irracional é uma terminologia que usamos para descrever o momento em que, cegada pela paixão, uma pessoa de bem cometeu um crime abominável. A razão se apaga. Cessa como num curto-circuito. Estamos dotados de algumas faculdades essenciais para a ação, mas a consciência dá lugar ao modo piloto-automático. No Apocalipse da Razão, esta se apaga e se constitui um tempo de trevas. Não à toa o Cânone definiu que o livro de João seria o último da Bíblia. A literatura milenar contida nas Escrituras Sagradas compreendeu que a humanidade pede por um desfecho sombrio e uma salvação gloriosa. Os políticos de qualquer tempo, bons conhecedores da vontade popular, tentam encarnar o Messias glorificado. Buscar tornar-se salvadores dos pobres e oprimidos integrantes de grupos de risco.
Por fim, quando recobrarmos a razão diante do tribunal da história, alegaremos insanidade. E seremos absolvidos por nós mesmos. As sinapses, então, serão refeitas. Os falsos messias serão crucificados em alguma praça pública midiática. E, por algum tempo, viveremos de novo um (cada vez mais breve) tempo de iluminação.
(*) Guther Faggion é jornalista e designer. Tem MBA em marketing pela FGV. Atua há mais de 15 anos no mercado editorial, atendendo algumas das mais importantes editoras do país. É diretor de criação e publisher da Maquinaria Studio, responsável pela marca e identidade visual da revista Oeste.
Parabéns pelo belíssimo e claríssimo texto… eu acreditava, sinceramente, que a humanidade já havia passado desta fase, mas, pelo visto, me enganei…
Nao consigo concluir assinatura..visualhzaçao muito rapida
Muito bom este artigo Apocalipse da Razão.
Parabéns, Guther!
A verdade pode ser dita de várias maneiras, mas fica mais suave quando a vida é descrita por parábolas que mostram nossa realidade!
Tudo começa pelo respeito..mais na pagina jotany facebook
Gostei muito do estilo e da síntese do texto. Está valendo cada centavo da minha assinatura.
Excelente! Sucesso Oeste!
Sucesso Oeste!
Excelente.
Um texto lúcido, didático. De uma clareza “limpa”…
Isso sim é algo que dá prazer em ler. Parabéns.
Que reflexão sintética, sobre o atual momento. Enobrece a alma ler um post deste, você acaba percebendo que não é tão maluco como todos dizem. Que existe pessoas que falam de forma poética, o que você sente mas não consegue expressar! OBRIGADO!!!
Excelente artigo, que revela uma leitura panorâmica muito lúcida e completa, Concordo com sua perspectiva e lamento que não haja nenhuma autoridade que leve em conta a realidade a médio e longo prazo.