O ex-secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger (1973-1977) se tornou uma figura célebre por sua capacidade de avaliar cenários e tomar decisões com astúcia e frieza.
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Foi assim durante a Guerra do Vietnã, da Independência de Bangladesh, da Guerra Fria, na invasão da Turquia ao Chipre, nas intervenções na África, na política para os países latino-americanos e também na relação entre Estados Unidos e Israel, em conflito com os países árabes. Entre tantos outros temas.
No dia 11 de outubro, a Mathias Döpfner, CEO da Axel Springer, para a Welt TV da Alemanha, ele deu uma lúcida entrevista, na qual abordou questões atuais. Entre elas, os ataques do Hamas a Israel, quatro dias antes, e a guerra entre Rússia e Ucrânia. A Axel Springer é controladora do portal Politico.
Kissinger, que morreu na quinta-feira 29, aos 100 anos, afirmou que o “ato aberto de agressão” do Hamas deve ser enfrentado com “alguma penalidade”. E alertou para os perigos de uma escalada na região.
“O conflito no Oriente Médio corre o risco de se agravar e de colocar outros países árabes sob a pressão da sua opinião pública”, ressaltou, nesta que é tida como sua última entrevista.
Para o ex-secretário de Estado, o verdadeiro objetivo do Hamas e dos seus apoiadores “só pode ser mobilizar o mundo árabe contra Israel e sair do caminho das negociações pacíficas.”
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A personalidade centenária olhou para o futuro ao admitir que também é “possível” que Israel possa tomar medidas contra o Irã, se considerar que Teerã teve participação na perpetração do ataque.
Ele incluiu a guerra entre Rússia e a Ucrânia dentro de um contexto que considera ameaçador. Segundo ele, a “agressão contínua da Rússia na Ucrânia”, juntamente com o ataque do Hamas a Israel, representa um “ataque fundamental ao sistema internacional”.
Nascido na Alemanha, Kissinger também criticou a abertura para refugiados muçulmanos entrarem no país e na Europa.
“Foi um erro grave permitir a entrada de tantas pessoas de culturas, religiões e conceitos totalmente diferentes”, ressaltou o ex-diplomata. Como explicação, ele disse que tal situação é arriscada, “porque isso cria um grupo de pressão dentro de cada país que faz toma essa atitude.”
Acordos de Abraão e Arábia Saudita
Semanas antes, em 24 de setembro, em entrevista a Avinoam Bar-Yosef, do The Jerusalem Post, Kissinger relutou em falar sobre o atual cenário no Oriente Médio, com a aproximação de Israel da Arábia Saudita. Mesmo assim, deu um parecer.
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“Não estou comentando isso agora, porque prefiro que o esforço se esgote antes de expressar minha opinião”, ressaltou o ex-secretário de Estado. “Sou a favor do resultado, mas estou preocupado com as concessões que estamos a oferecer. Eu acho que elas são muito altas, e estou preocupado com isso.”
Ele ainda avaliou os Acordos de Abraão, de 2020, em que Israel selou a paz com Emirados Árabes, Sudão e Bahrein, preferindo manter a cautela de sempre.
“Os Acordos de Abraão são uma conquista significativa e fornecem a base para um acordo israelo-saudita”, observou o diplomata.
Mas, mesmo há anos longe da política, voltou a se colocar na posição de um secretário de Estado. “Não quero dizer mais nada, porque, quando era secretário de Estado, não gostava que os meus antecessores se envolvessem enquanto eu conduzia um esforço diplomático.”
Relação com Israel
Em decisões pontuais, Kissinger, que era judeu, foi acusado pela comunidade judaica de ter se voltado contra suas origens.
Em um memorando do governo dos EUA, de 19 de dezembro de 1975, a ex-primeira-ministra de Israel, Golda Meir (1969-1974), se queixa da postura dos Estados Unidos, em conversa com Kissinger e com o então presidente, Gerald Ford (1974-1977).
“Por exemplo, a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) participando do Conselho de Segurança da ONU”, iniciou Meir.
“Achamos que é perigoso, porque quanto mais o Conselho de Segurança tenta lidar com o problema e acha que pode resolvê-lo… Acho que você não pensa assim, e nós, não posso aceitar isso”, disse a Kissinger e ao presidente, sobre a postura norte-americana de aceitar a presença da OLP, tida como terrorista.
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Na ocasião, o presidente e o secretário garantiram que a segurança de Israel não estaria ameaçada.
Mas, a partir da atuação de Kissinger como secretário, teve início o forte vínculo que passaria a prevalecer entre os dois países.
“Eu sou judeu, então não preciso de nada para respeitar o povo judeu”, disse ao jornal israelense.
“Perdi 11 membros da minha família imediata no Holocausto e um número incontável de pessoas com quem frequentei a escola, talvez 50%. Portanto, para mim, é natural considerar a sobrevivência do povo judeu e do Estado israelita como um objetivo pessoal.”
No auge das tensões durante a Guerra do Yom Kipur (1973), porém, Meir, então primeira-ministra, já se queixava da postura de Kissinger, nascido com o nome Heinz Alfred Kissinger, em Furth, Alemanha, em 1923. Em algumas ocasiões, ele relutara a enviar o número pedido de caças, para Israel vencer a guerra.
Na conversa com o The Jerusalem Post, feita por zoom, 50 anos depois da Guerra do Yom Kipur, Kissinger estava em sua fazenda em Connecticut, em seu escritório, em meio a estantes repletas de livros e arquivos de documentos ainda não publicados. Ele se preparava para regressar para sua casa em Nova York.
“Tornei-me secretário de Estado duas semanas antes do início da guerra, mas vinha sendo conselheiro de segurança nacional (1969-1975) durante quatro anos e meio antes disso”, contou Kissinger.
Ele admitiu que, assim como os ataques do Hamas de 7 de outubro, naquela ocasião o Exército israelense e até a CIA (Agência de Inteligência dos EUA) foram pegos de surpresa.
“No curso normal dos acontecimentos, os relatórios de inteligência que recebi não continham informações incomuns. A minha tomada de posse como secretário de Estado ocorreu no sábado (na terceira semana de setembro), e depois vi relatos sobre uma concentração de forças militares egípcias”, prossegue.
Balanço sobre a guerra
O ex-secretário ainda acrescentou, com uma mente afiada: “Não me lembro de terem relatado nada sobre os sírios, mas certamente estavam relatando um aumento. Nós pensamos que não significava muito, porque nos anos anteriores o presidente egípcio Anwar Al-Sadat vinha ameaçando com muita frequência e não fez nada.”
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A guerra, no entanto, teve início no dia 6 de outubro. Israel começou acuada, mas recuperou posições, até o cessar-fogo em 25 de outubro. Aos 100 anos, Kissinger fez um balanço da situação.
“Penso que a guerra [do Yom Kipur] só poderia ter sido evitada se Israel tivesse concordado em retirar-se para as fronteiras de 1967”, considerou o ex-diplomata. Para ele, não havia como isso ocorrer naquela ocasião.
“[Foi algo] que [Israel] não pôde fazer, porque isso teria exposto a estrada entre Tel-Aviv e Haifa, e tê-la-ia colocado sob o fogo dos adversários.”
Kissinger contou ainda que havia rejeição a essa ideia também dentro de Israel.
“E também todos os partidos políticos em Israel se opuseram a tal medida – por isso teria de ser imposta a Israel, o que rejeitamos.” Sobre aquele momento, ele completou.
“E mesmo assim não tenho a certeza de que teria evitado a guerra, porque Sadat, que se tornou um grande defensor da paz depois da guerra, estava convencido de que o mundo árabe precisava de alguma ação militar bem-sucedida. [Richard, o presidente] Nixon não estava totalmente disposto, com a minha forte concordância, a considerar isso.”