Poucas coisas são tão prazerosas a um leitor quanto começar um livro de forma despretensiosa e finalizá-lo com a sensação de que, por fim, encontrou um tesouro da literatura. Essa foi a sensação que tive ao ler Um cavalheiro em Moscou, de Amor Towles. Trata-se de um romance tão bom, com cara de clássico em todos os sentidos, que nem parece ter sido lançado em 2016 — no Brasil, em 2018, pela editora Intrínseca.
A trama gira em torno de Aleksandr Ilitch Rostov, mais conhecido como “conde Rostov”, condenado pelo tribunal revolucionário bolchevique por ser de uma linhagem aristocrática alinhada à monarquia do último czar. A estória se desenvolve a partir de 1922, no desenrolar do estabelecimento da revolução comunista na Rússia. Condenado pelos juízes bolcheviques a ficar eternamente preso no sótão do hotel Metropol, fica claro, no decorrer da leitura, que a intenção do júri era congelá-lo no tempo, deixá-lo para apodrecer num ambiente que, por força da necessidade financeira, ostentava a pompa e as manias aristocráticas que formaram o caráter e a mentalidade do conde. Em suma, prenderam Rostov no formol de suas tradições morais e sociais a fim de vê-lo desmanchar junto a seus princípios aristocráticos atrasados.
O livro, assim, se desenvolve inteiramente dentro daquele hotel. Ele nos mostra a luta de um homem que, mesmo tendo sido ferido em sua honra por uma turba revolucionária tão cega quanto selvagem, lutou diariamente por não se permitir ser engolido pelas forças desagregadoras dos ventos políticos do século XX. Em uma passagem que decorei de primeira, e já citei inúmeras vezes em palestras, Rostov afirma: “Se um homem não dominar suas circunstâncias, ele é dominado por elas”, é com esse impulso moral que ele encara os primeiros anos de prisão.
Como em todo bom clássico — o que prematuramente me arrisco aqui a afirmar que esse livro é — são múltiplas as leituras e ênfases que podemos apontar para seu conteúdo. Todavia, acredito que esse romance versa, quase exclusivamente, a respeito da batalha interna do homem conservador contra a degradação do tempo e das ideologias progressistas.
Durante toda a leitura, sentimos duas forças contrárias se interpelando a todo momento, uma que empurra o homem para uma espécie de avanço político e humano sintético, forçado, tal como o próprio marxismo clássico assume ser; e a força contrária, a qual trata da luta solitária de um indivíduo para manter em si os valores, identidades e princípios que regem e ordenam a sua existência, que dão motivos para continuar acordando pela manhã. Rostov, então, logo se torna um homem que, mesmo preso, mantém religiosamente seus hábitos. Um homem que todo dia veste seu traje social elegante e desce do sótão para tomar seu café pontualmente no horário de sempre, que mantém seus corteses tratos linguísticos nas conversas e modos cavalheirescos com as mulheres — ainda que tudo isso, bem sabe ele, soe agora como “modos aristocráticos reacionários, manias burguesas”.
O hotel Metropol, lugar de luxo e oásis de civilidade dentro da, cada vez mais caótica, União Soviética do início da década de 1920, é um recanto de artistas internacionais, políticos do alto partido, jornalistas de grandes veículos internacionais, aristocratas europeus com fetiches com o comunismo. O hotel também emula a própria alma tradicional de conde Rostov, sua prisão física copia a sua prisão espiritual. Rostov, por decisão do júri revolucionário, não pode sair das imediações do hotel, e seus valores, princípios e modos, não podem ser livres sob um regime que controla até as expressões mais básicas de seus cidadãos. Da mesma maneira que um aristocrata e suas tradições, suas posturas, não são bem-vindas na URSS. O conde Rostov vê que seu espírito elevado, sua postura de erudito recôndito, não é mais bem-vindo num mundo que prioriza o imediatismo do prazer, o pragmatismo político, o cientificismo ideológico e a moralidade utilitarista. Os comunistas decretaram que não há espaço para seus passos nas ruas soviéticas, assim como a história parece dizer à sua alma que não há lugar para tais valores conservadores num mundo de progresso.
Durante a estória, todavia, Rostov se encontra com uma menininha, Sofia. Ela é a filha de uma linda artista, Nina Kulikova, que traz para a trama uma riqueza que amplifica o alcance do simbolismo que verte daquelas páginas. Com o endurecimento das leis soviéticas, não demora nada para que Stálin comece sua carnificina; e, assim, manter-se invisível no sótão era cada vez mais imperativo. Um dia, fugindo do terror comunista de Stálin, Nina entrega a Rostov os cuidados de sua filha, justamente num momento que seus velhos princípios já não faziam mais sentido ante a deprimente vida de um homem solitário em um sótão — suas roupas já estavam gastas, sua pontualidade errante. Em suma, quando o conde já havia desistido de sua vida.
A atualidade apresentada ao conde em forma de uma garotinha, restabelece naquela alma ressecada e depressiva um porquê perdido no dia a dia enfadonho daquele hotel, o frescor da inocência vívida, aliado à necessidade temporal de coadunar a experiência dos valores perenes à indústria da paternidade forçada, renova as dobradiças envelhecidas do caráter de Rostov, fazendo de sua prisão, corporal e espiritual, um novo mundo repleto de possibilidades e aprendizado.
Um livro lindo em todos os sentidos possíveis, capaz de emocionar com a mesma força que nos angustia, enobrecer na mesma medida que nos abala, dom raro esse — e administrado por pouquíssimos autores contemporâneos. Não à toa passou meses na lista de mais vendidos nos EUA, com mais de um milhão de cópias vendidas naquele país. Amor Towles é um desconhecido por aqui, apesar de já ter alguns livros lançados, além desse que aqui resenho, há Regras de cortesia, A estrada Lincoln e um conto publicado no livro Forward, organizado por Blake Crouch.
Por fim, Um cavalheiro em Moscou é um ótimo livro para ser lido com a alma aberta por conservadores que buscam maturidade, com os olhos do espírito tão atentos quanto os globos fisiológicos que nos fazem ver as matérias que nos cercam. Ótima leitura para um homem tradicional preso injustamente por uma política progressista sinistra, forçado pelas circunstâncias a conhecer o novo inesperado, por fim, instado a resolver o paradoxo com o qual todo bom conservador um dia se depara: avançar quanto? Conservar quanto? Como manter os valores corretos e a mente sã diante do progresso — natural ou ideológico — da história?
Ótima sugestão de leitura!
Obrigado.
Li há uns 2-3 anos atrás, um livro raro na literatura contemporanea, ao mesmo tempo é de fácil e prazerosa leitura e de profundidade humanistica, uma jóia! E mais ainda nestes tempos de stalinismo à brasileira que estamos vivendo, onde se vombate e ridiculariza tudo que é essencia da vida humana.
Já fiquei apaixonado pelo livro! Vou colocar na minha lista de leitura, Pedro Henrique.