(J.R. Guzzo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 9 de fevereiro de 2025)
Pense durante alguns minutos nos fatos objetivos, documentados nos registros oficiais e materialmente comprovados que serão descritos em seguida. Decida, depois, se isso faz algum sentido lógico para você — sobretudo do ponto de vista moral. De um lado, há no Brasil, vivendo nas alturas mais confortáveis da sociedade, pessoas que cometeram os crimes de homicídio, assalto a banco, roubo à mão armada, sequestro de pessoas e explosão de bombas. De outro, estão na cadeia, cumprindo penas de até 17 anos, pessoas que tomaram parte num quebra-quebra em Brasília.
O primeiro grupo recebeu anistia plena do Estado brasileiro; até hoje seus integrantes são tratados como mártires. O segundo grupo, pelos critérios da democracia tal como ela é praticada no Brasil do presente, não pode receber anistia nunca. Tanto os primeiros como os segundos praticaram crimes políticos — e, portando, passíveis de anistia. A diferença é que os anistiados, que praticaram crimes de sangue e penalmente considerados hediondos, como o sequestro, são de esquerda. Os “sem anistia”, acusados de um golpe armado que não tinha armas, não tinha apoio do Exército e não tinha meios objetivos para derrubar a diretoria de um grupo escolar, são de direita.
Os brasileiros que receberam anistia queriam derrubar a ditadura militar, através da “luta armada”, para impor a sua própria ditadura no país. Os brasileiros que não podem receber anistia, de acordo com as exigências do regime em vigor, não foram além de uma baderna. Têm de ser punidos, obviamente, porque cometeram crimes de vandalismo. Mas ficar 17 anos na prisão por isso, enquanto homicidas e assaltantes de banco são anistiados — uma assaltante, aliás, tornou-se presidente da República — significa que há dois tipos de cidadão no Brasil.
É possível que o Brasil tenha um encontro marcado, no futuro, com as infâmias do seu presente. Se tiver, a jihad que hoje grita “sem anistia” ficará registrada como um dos piores momentos de treva, de insulto à razão e de crueldade gratuita da história política do país. Uma nação em que a grande causa do governo, dos tribunais e das elites é o combate à anistia está em situação de bancarrota moral — sobretudo quando os que foram perdoados por crimes de morte não perdoam os que pintaram uma estátua com batom.
O poeta Eugeni Yevtushenko, num dos seus melhores momentos, escreveu que quando a verdade é substituída pelo silêncio, o silêncio torna-se uma mentira. O Brasil de hoje ficou assim — por força da ilegalidade militante do regime, do culto à repressão policial e da criminalidade oficial. Para o cidadão decente, calar-se não é uma opção.
![manifestações - cpmi do 8 de janeiro - impeachment](https://medias.revistaoeste.com/wp-content/uploads/2023/04/invasao-de-8-de-janeiro-visao-ampla-da-rampa-do-congresso.jpg)
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