(J.R. Guzzo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 23 de agosto de 2023)
O ministro Alexandre de Moraes, numa de suas últimas conferências, voltou a deixar claríssimo, mais uma vez, o tamanho do abismo que está sendo aberto entre dois tipos de Brasil. O primeiro é o Brasil que funciona segundo determinam as regras da Constituição Federal. O segundo é o Brasil como o STF acha que ele tem de ser. No Brasil constitucional, as leis que afetam todos os brasileiros têm de ser aprovadas pelo Congresso Nacional — todas as leis, sobre todos e quaisquer assuntos, sem exceção. No Brasil de Alexandre de Moraes e da maioria de seus colegas, o Supremo tem o direito, e possivelmente o dever, de criar leis em áreas sobre as quais o Congresso ainda não tomou decisões. Não é assim em nenhuma democracia séria do mundo. Lá só os eleitos pelo voto livre e universal dos cidadãos têm o direito de aprovar uma lei — e só a Suprema Corte tem o direito de resolver se a Constituição está sendo obedecida nas questões que são levadas ao seu julgamento.
A lei que o ministro Moraes quer fazer, agora, é sobre a inteligência artificial. Não diz que se trata de lei, e sim de “regulamentação” — mas em termos práticos dá exatamente na mesma. Segundo afirmou, de duas uma: ou o Congresso aprova logo (até as próximas eleições, pelo que deu para entender) uma legislação sobre o uso da IA no Brasil, ou o STF “vai ter” de decidir a respeito. “Não é possível a Justiça Eleitoral dizer: ‘Como não há regulação, não podemos julgar isso’”, afirma o ministro. “É isso que pode atrapalhar a lisura das eleições”. Na sua opinião, existe no caso até uma injustiça em relação ao STF. “Aí entramos naquele ciclo vicioso”, disse Moraes. “Se não há regulação, há necessidade de a Justiça regulamentar, e aí o Judiciário é acusado de usurpar o Legislativo.”
Não ocorre ao STF, nem à esquerda que lhe dá apoio automático, fazer uma pergunta muito simples: “E porque há ‘necessidade’ de a Justiça regular o que o Congresso ainda não regulou?” Não há necessidade nenhuma, e o texto da Constituição não permite, em lugar algum, que o Judiciário (ou o Executivo) faça leis que até agora não foram feitas. E se alguém levar à Justiça uma questão que não está regulamentada? É só o juiz, ou o STF, dizerem: “Não é possível julgar essa causa, pois não há lei a respeito. Quando houver, voltem aqui”. Se não existe no Brasil nenhuma lei sobre o uso da IA, é porque o Congresso ainda não quis fazer — e os parlamentares não têm absolutamente nenhuma obrigação legal de aprovar qualquer tipo de lei, sobre qualquer assunto, e dentro de qualquer prazo.
O STF, ou quem quer que seja, está achando que é preciso regulamentar isso ou aquilo? Perfeito; talvez seja preciso mesmo. Mas só o Congresso, como representante legal da população brasileira, está autorizado a fazer isso. Não tem a menor obrigação de querer as mesmas leis que o STF quer. Não tem de obedecer aos seus prazos — tal lei, sobre tal assunto, tem de ser aprovada até tal dia. Não tem, acima de tudo, de fazer o que ainda não fez. Vai fazer quando achar que deve, ou porque há pressão popular para que faça — ou então vai deixar as coisas como estão. Há alguém na frente do Congresso, em Brasília, dizendo: “Queremos a regulamentação da inteligência artificial, já?” Não há ninguém, e os congressistas sabem perfeitamente disso. Numa democracia de verdade, caberia ao STF esperar a decisão do Congresso. Mas isso aqui é o Brasil.
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