(J.R. Guzzo, publicado no jornal Gazeta do Povo em 9 de dezembro de 2021)
Se existe neste país uma coisa que realmente incomoda o Supremo Tribunal Federal (STF) e seus satélites do alto Poder Judiciário nacional é ver ladrão rico na cadeia. Não sossegam enquanto não conseguem soltar, ou não identificar migalhas processuais que os beneficiem, ou anular sentenças, ou absolver em parte — enfim, enquanto não fizerem “alguma coisa” para ajudar e, se possível, colocar o criminoso na rua, devolvendo-lhe a possibilidade de começar tudo outra vez.
Aconteceu de novo, desta vez com ninguém menos que o ex-governador Sérgio Cabral, do Rio de Janeiro, que conseguiu ser condenado a 400 anos de prisão; roubou tanto, mas tanto, segundo consta em suas sentenças de condenação, que nem a Justiça brasileira conseguiu dar um jeito no seu caso. Pensava-se até agora que Cabral, pelo menos ele, ficaria de fora da obsessão dos tribunais superiores em soltar corrupto — “esse não”, dizia-se, aí também já é demais.
Engano: nada é demais para o STF quando se trata de garantir a impunidade da altíssima ladroagem. Os ministros acabaram de demostrar isso, mais uma vez, com a anulação de uma das penas de Cabral, de 14 anos de cadeia — o que abre o caminho para liquidar o resto do saldo devedor, na maior rapidez que for possível. Com essa anulação ficam faltando 386 anos de xadrez para pagar, mas o que é uma mixaria dessas para um STF? Daqui a pouco um advogado qualquer acaba dando um jeito e o homem volta para a rua, pronto a retomar suas atividades no “campo progressista”. (O ex-presidente Lula, como está registrado em fita gravada, disse que votar em Sérgio Cabral era “um dever político, ético e moral”.)
Cabral, é óbvio, não foi absolvido de nada nessa manobra; como de hábito, não se discutiu se ele é culpado ou inocente. Mas acharam que foi julgado pelo “juiz errado” e, assim sendo, tem de zerar tudo. É como Lula: seus processos penais foram anulados pelo STF porque deram um jeito de decretar que ele deveria ter sido julgado em outra cidade e, nesse caso, as condenações não valem. Não interessa à Justiça brasileira se Lula roubou ou não; o que interessa é saber se foi julgado no lugar certo, segundo a burocracia judicial.
Na aberração em que se transformou o sistema judiciário do Brasil, o que houve, agora, foi um passo em direção ao equilíbrio. Se Lula está solto, e é candidato à Presidência da República, por que Sérgio Cabral deveria estar preso? Se os empreiteiros de obras que confessaram seus crimes e devolveram dinheiro roubado estão livres e voltaram a ser heróis da mídia, por que Cabral não pode ter o mesmo?
Aliás: se todo mundo está solto, por que só ele tem de ficar trancado na penitenciária de Bangu? É essa “anomalia” que o STF está tentado corrigir.
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