(J.R. Guzzo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 10 de maio de 2023)
Uma noção perigosa se espalhou ao longo dos últimos anos na sociedade e na vida pública brasileiras — a de que os cidadãos descritos como sendo de “direita”, de “ultradireita” ou simplesmente bolsonaristas não são de fato cidadãos como os demais e, nessa condição, não devem ter os mesmos direitos. Os defensores mais agitados dessa maneira de pensar acham, até mesmo, que não deveriam ter direitos. A ideia geral é bem conhecida. Essas pessoas são “contra a democracia” e se são contra a democracia não podem se beneficiar das leis democráticas — se tiverem sua proteção, vão “usar” essas mesmas leis para dar um “golpe” e criar uma “ditadura” no Brasil. A partir daí, fica valendo qualquer violação da lei e da Constituição — é para evitar um “mal maior” e “salvar” o Brasil. Está integralmente errado. O resultado objetivo disso é que, para salvar o país de uma suposta ditadura no futuro, cria-se uma ditadura real no presente.
Os exemplos estão por toda a parte. O pior deles, sem dúvida, é a prisão do ex-secretário de Segurança Pública do Distrito Federal Anderson Torres, por omissão ou incentivo aos ataques contra as sedes dos três Podres no dia 8 de janeiro — e outros crimes, talvez piores, que a polícia do STF nem sabe ainda quais são, mas tem esperança de descobrir algum dia se ele ficar na cadeia por mais um dez ou 20 anos. O ex-secretário está preso há quatro meses inteiros. Durante esse tempo todo, nem a Polícia Federal, nem o ministro Alexandre Moraes conseguiram descobrir nenhuma prova de que ele tenha feito algo de errado. Teriam, obviamente, de soltar o cidadão, já que não conseguem acusá-lo oficialmente de nada; pela lei, aliás, ele nunca poderia ter sido preso, pois nunca a polícia e o STF foram capazes de demonstrar, com algum fato, as acusações que lhe fizeram.
A verdade é que o ex-secretário, absurdamente, está preso para “averiguações” — não há quatro horas, mas há quatro meses, coisa que não acontece neste país com nenhum traficante de drogas, ou assassino múltiplo, ou qualquer criminoso que tenha um advogado minimamente qualificado. Se está preso para “averiguações”, é da evidência mais elementar que o trabalho de averiguação pode concluir que ele não cometeu crime algum — e, nesse caso, como explicar que o homem tenha ficado preso por quatro meses, ou sabe lá quanto tempo mais? Por que não poderia ter aguardado em liberdade a conclusão das investigações, como qualquer acusado de crime?
É incompreensível e chocante que isso aconteça no mesmo país em que até há pouquíssimo tempo, quando se tratava dos crimes de corrupção pelos quais o presidente Lula e outros gatos gordos foram condenados na Justiça, os “garantistas” exigiam o cumprimento fanático do que consideram “direitos” dos réus. Lula estaria sendo vítima de “linchamento” e a democracia estaria sendo destruída “em Curitiba”. Hoje estão todos em silêncio. Quem está preso é um “bolsonarista”, não é mesmo? Vamos olhar então para o outro lado — e dizer que o STF está salvando a “democracia”. O problema é que o preso, amanhã, pode não ser mais apenas gente da “direita”. Pode ser apenas o brasileiro que não concorda com o governo e seus guardiães no STF.
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