(Por J.R. Guzzo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 6 de janeiro de 2021)
O movimento que os funcionários públicos federais estão fazendo para obter um aumento salarial em massa, geral e aparentemente igual para todo mundo, é mais uma dessas demonstrações perfeitas do porquê, na prática, o Brasil é esta desgraça social que não muda nunca, ano após ano. O país não melhora, e nem pode melhorar, se o Estado continua engolindo, para o seu próprio sustento, uma parte cada vez maior de tudo o que a sociedade produz. Já é uma aberração, do jeito que está. Agora, estão querendo piorar — as cúpulas sindicalistas do funcionalismo exigem um poder público que vai custar ainda mais caro para o pagador de impostos.
O argumento central dos servidores é uma piada: dizem que há cinco anos estão sem um “aumento geral”. E os 200 milhões de brasileiros, ou mais ou menos isso, que não são funcionários públicos — federais ou de qualquer outra espécie? Quando foi que tiveram o último “aumento”? Isso não existe, simplesmente: a população é remunerada por conta das realidades do mercado de trabalho, do mérito individual de cada trabalhador, do valor relativo das ocupações profissionais e assim por diante. O resto é a bolha do Estado.
O Estado brasileiro saqueia sistematicamente os recursos de todo o país; na verdade, saqueia uma porção cada vez maior da riqueza nacional, numa espiral que não para nunca de crescer. É impossível, numa situação dessas, não haver concentração maciça de renda. É impossível não haver a produção constante de miséria, desigualdade e doenças sociais. Como ser diferente, num país que arrecadou acima de R$ 1,5 trilhão em impostos em 2021 — isso mesmo, trilhão — e não tem dinheiro para nada? O Brasil não tem dinheiro para nada porque gasta o grosso disso tudo consigo mesmo, com sua folha de pagamento, suas aposentadorias, seus benefícios, suas despesas de funcionamento.
O mais extraordinário, nessa aberração, é que existe uma situação de injustiça extrema dentro da injustiça geral. A maioria dos funcionários públicos, na verdade, ganha mal; o dinheiro de verdade vai para a casta de mandarins que ocupa os cargos mais altos. (As lideranças do movimento estão “entregando os cargos” que ocupam; não entregam os empregos, é claro — ou seja, é pura conversa.) No presente movimento por salários maiores, por exemplo, um dos setores mais ativos é o dos auditores da Receita Federal. Só que o salário médio de um auditor da RF é de R$ 30 mil por mês. Como justificar a urgência de aumento para o setor, num país em que o salário mínimo é de R$ 1,2 mil?
Não se discute a competência profissional dos auditores, nem a sua dedicação ao trabalho, nem a importância do que fazem para a sociedade. O fato é que ganham R$ 30 mil por mês. Cabe aumento para esse nível de remuneração num país miserável como o Brasil, em que as crianças vão descalças para a escola e os hospitais públicos não têm dinheiro para comprar um rolo de esparadrapo? Da mesma maneira, que sentido pode fazer a exigência dos auditores de trabalho, que querem ganhar um “bônus variável de eficiência”? Eficiência? Qual? Onde? Como? É demente.
Nem se fale, aqui, do Judiciário, onde é comum magistrados arrancarem R$ 100 mil por mês do pagador de impostos, ou mais; mesmo ficando fora dessa área de delírio, as exigências de aumento salarial por parte dos funcionários mais altos significam injustiça social direto na veia, ao transferir renda de todos — e transferir mais ainda do que já transfere — para o bolso da minoria. Não se trata apenas dos altos salários para os servidores que estão no topo da árvore. Todos eles, além do contracheque mensal, têm benefícios com os quais o brasileiro comum não pode nem sonhar: estabilidade no emprego, aposentadoria com salário integral, aumentos por tempo de serviço, plano médico, benefícios de todos os tipos. Falar de “recuperação salarial” ou de “correção de injustiças”, nessas condições, é puro humor negro.
Leia mais: “Chapa Lula-Alckmin: o maior monumento à falsificação da política brasileira”, artigo de J.R. Guzzo publicado na Edição 92 da Revista Oeste