(Artigo de J. R. Guzzo publicado no jornal Gazeta do Povo em 5 de setembro de 2022)
O ministro Luís Roberto Barroso, em mais um espasmo de onipotência do Supremo Tribunal Federal, vetou o novo piso salarial para os enfermeiros, estabelecido por lei que o Congresso Nacional aprovou. Mas o Congresso não é um dos três Poderes da República, independente dos outros dois, e o único autorizado a fazer leis neste país, de acordo com as sagradas “instituições” que o STF defende com os seus inquéritos, a sua polícia e as suas operações de busca, apreensão e quebra de sigilo às 6 horas da manhã? A resposta é: não, o Congresso brasileiro, eleito pela população como seu representante, não tem o direito de aprovar as leis que conseguem o voto da maioria dos parlamentares. Depende do STF. Se o STF está de acordo, então a lei vale. Se o STF não aprova a lei, a lei não vale.
Acaba de acontecer mais uma vez, e mais uma vez o presidente da Câmara dos Deputados fica quietinho — diz que “entende” a decisão do STF em vetar o novo piso, como se soubesse a ele dar-se a apreciações deste tipo, em vez de fazer valer a decisão legítima e legal da casa que preside. É óbvio, com mais essa reação de subserviência automática por parte do Congresso, que o STF vai continuar governando o Brasil. Isso é o exato contrário de democracia — é desordem. O ministro Barroso, com o seu decreto, se mete a decidir sobre a situação financeira dos serviços de saúde e a remuneração da enfermagem. Quem lhe deu licença para fazer isso? O STF tem de cuidar, unicamente, do cumprimento da Constituição; tem de decidir se isso ou aquilo é ou não é constitucional. Todas as vezes que fizer alguma coisa fora ou além disso, estará impondo uma ditadura ao país. É simples. Ninguém pode julgar uma decisão do STF; se os ministros se dão o direito de resolver toda e qualquer questão, então os ministros viram ditadores. Decidem até quanto devem ganhar os enfermeiros; se podem decidir isso, e o que mais lhes der na telha, então decidem tudo.
O STF, ultimamente, tem mostrado uma estranhíssima obsessão com o respeito às regras mais rigorosas de integridade fiscal. Vetam reduções de impostos que beneficiam diretamente a população, pois isso, na sua opinião — que ninguém pediu, porque não é da sua conta — poderia deixar o poder público com dificuldades para pagar os seus compromissos. Não pensam, jamais, que o Estado possa se comportar com mais competência e, em consequência, precisar de menos dinheiro. Pior: nunca, jamais e em tempo algum, o STF se preocupou com austeridade fiscal. Ao contrário, é dos principais causadores da gastança alucinada do Estado brasileiro, ao concordar sistematicamente com toda e qualquer exigência salarial das castas mais vorazes do serviço público — a começar pelo que diz respeito aos gastos da própria justiça. Os enfermeiros não podem ter um piso salarial de 4.750 reais, decidiu o ministro Barroso; é muito caro. Os Estados e Municípios, coitados, terão muita dificuldade para pagar. Os hospitais privados e os planos das mega empresas de seguro médico estariam correndo risco de morte. Mas juízes podem ganhar 100.000 reais num mês, ou muito mais, com os “penduricalhos” e “atrasados”, e o STF acha isso a coisa mais justa e normal do mundo. Se o Estado tem dificuldade para pagar isso, problema “deles” — ou melhor, problema do pagador de impostos, que é quem vai ter de meter a mão no bolso para encarar essa conta.
A Justiça brasileira é uma das mais caras do mundo; pode estar gastando, com o aparelho todo, em volta dos 120 bilhões de reais por ano. Isso, em termos proporcionais ao PIB, é quase dez vezes mais do que gasta a justiça dos Estados Unidos; é várias vezes mais do que gastam os países europeus. A população que paga essa barbaridade recebe, em contrapartida, uma das piores justiças do mundo, comparável ao que existe de mais tenebroso no universo subdesenvolvido. O povo brasileiro, por sinal, está convencido disso: só 16%, segundo uma pesquisa recente do jornal O Estado de S. Paulo, tem respeito pelo STF. O ministro Barroso, enquanto isso, decide sobre o salário dos enfermeiros.