Estive na Bienal do Livro do Rio de Janeiro em todos os seus dez dias. Como editor-chefe da LVM Editora, conheci e revi alguns executivos do mundo editorial nacional, além de ter podido analisar de perto o que as editoras, das independentes e micros às grandes e colossais, estão aprontando para seus catálogos em 2023 e para 2024. O já tradicional evento do Sindicato Nacional dos Editores de Livro (Snel) foi massivo e impressionante. Segundo os dados oficiais do Snel, mais de 600 mil pessoas passaram pelos galpões do Riocentro, entre 1º e 10 de setembro; cerca de quinhentas marcas foram expostas, entre editoras e demais empresas de outros seguimentos que patrocinaram a exposição. De acordo com as principais editoras, essa foi a melhor Bienal em questão de vendas efetivas de toda a história do evento no Rio de Janeiro.
Confesso que nesses dez dias tive uma mistura de emoções, pois vi crianças e adolescentes sedentos por leitura, ainda que na sua enorme maioria tal sede fosse direcionada a leituras pueris e de pouca edificação intelectual e cultural. No entanto, como costumo dizer aos meus amigos que criticam a literatura pop: vejo um leitor de John Scalzi e J. K. Rowling mais próximo de Machado de Assis e Cervantes do que um que nada lê, então segurem um pouco os dedos em riste. Aliás, muitos desses que arrotam erudição e criticam tais literaturas na internet gastam mais tempo no Instagram do que em frente às páginas que eles juram amar — somente eu conheço uns dez desses. No entanto, que fique registrado, também vi jovens lendo ótimos livros recém comprados, alguns passavam e perguntavam onde poderiam encontrar Virgínia Woolf, Dostoiévski, Monteiro Lobato e Chesterton, isso acalentou meu coração editorial.
No estande da LVM, uma editora especializada em livros de ciências humanas liberais e conservadoras, muitos adolescentes entravam, compravam os livros e ainda paravam para bater-papo comigo. Alguns estavam interessados em saber como funciona o trabalho de um editor, outros queriam falar sobre “direita e esquerda”, e em meio a tudo isso, uma garota de 12 anos, em especial, chamou minha atenção. Ela entrou em nosso estande, comprou O caminho da servidão, de Friedrich von Hayek, com um voucher que o Estado do Rio de Janeiro disponibiliza para os estudantes do ensino médio e fundamental, e disse-nos que queria lê-lo, pois o seu professor era comunista; e ela, não. Eu me arrependi de não ter conversado mais com a menina.
A LVM, aliás, era a única editora confessamente liberal e conservadora daquela exposição. Havia outras editoras que, porventura, editam livros dessa matriz — sem contar as cristãs —, mas que assim se assumem, não. Na verdade, a Bienal do Livro, este ano, mais uma vez mostrou-se um evento de caráter progressista, basta ver seus painéis, seus convidados, suas pautas. Logo na abertura, revestido de um discurso identitarista típico e inconfundível, o tom geral era de comemoração política, e dali até o final todos os dias se ouviria que a Bienal agora acontecia em paz, pois “a democracia não se encontrava mais ameaçada”. O painel mais relevante do qual participei foi o sobre inteligência artificial e mundo editorial, e inteligência artificial e os direitos autorais; nos demais, reinou a lacração de sempre; e, para não dormir na frente de todos, gerando um ar de descontentamento geral, por vezes, preferia ir rodar os estandes a fim de encontrar alguém para conversar sobre livros e literatura.
Mas, acredite, nem tudo são críticas, o deputado federal Nicolas Ferreira (PL-MG) esteve lá autografando seu livro O cristão e a política no lindo estande da Editora Vida, e nada de anormal aconteceu a não ser um ou outro exaltado que berrava alguma coisa de lá, que depois era respondido de cá com gritos de “presidente”, “presidente” dos seguidores do deputado. Durante os dez dias de exposição, a grande maioria dos visitantes do estande da LVM, mesmo que discordando dos pontos que nossos livros expunham, foram respeitosos, uma ou duas pessoas tentaram provocar, ou usar de ironia. Mas, para liberais como nós, divergências não nos assustam, concordâncias autoritárias, sim.
Apesar da organização do evento ter claramente forçado a pauta política identitária em seus painéis e exposições, principalmente a do movimento negro militante, o ambiente geral e o público foram diversos e sadiamente plurais. Tivemos um confesso comunista, com camiseta do Che Guevara e brinco de foice e martelo, comprando Os Ungidos, de Thomas Sowell, em nosso estande, assim como eu comprei um novo A origem da família, da propriedade privada e do Estado, de Friedrich Engels, na Boitempo — livro que literalmente minha cachorra comeu, ela, sim, uma intolerante extremista.
A impressão que tenho é que os executivos responsáveis pelo evento tentaram politizar a exposição o quanto foi possível. Contaram com a ajuda de artistas famosos, ativistas, sem falar das grandes editoras que manejam como poucas no mercado as pautas woke para ganhar dinheiro em cima da histeria de militantes. Sei que soa estranha essa crítica vinda de um editor que publica ciências humanas e políticas, mas falo sob um panorama de Bienal, e não de estandes; parecia-me, ao menos, que o evento foi feito para exaltar a literatura, e não causas sociais de grupos politizados. Se editoras assim fizessem — como de fato fizeram —, nada a criticar, mas, quando o evento se rende a pautas, tenho muito a lamentar. Mas já são coisas comuns de nosso cotidiano, em dias nos quais já concordamos socialmente em reescrever livros e readaptar filmes para caberem na camisa de força do identitarismo, seria muita inocência achar que eventos como a Bienal do Livro fosse passar inerte.
Deixo para uma próxima coluna o meu comentário sobre a qualidade do que a estrondosa maioria do público da Bienal estava comprando, que de fato, de uma perspectiva literária, era realmente ruim, dispensável. Inclusive, registro aqui o meu protesto: os clássicos reais de nosso país estavam escassos por lá; por exemplo, tentei a todo custo comprar as obras de Lima Barreto e Octavio Faria, só encontrei o tradicional O triste fim de Policarpo Ismirna, do Barreto, e absolutamente nada de Faria; Machado de Assis, dos pais de nossa literatura, era o mais contemplado, mas nada muito além dele. Sem falar dos descontos quase risíveis de alguns estandes de grandes editoras; teve editora que deu apenas 20% de desconto em seu catálogo durante toda a Bienal. Ainda que meus pares do mundo livreiro odeiem que eu diga isso, repito: os livros no Brasil são caros, e na Bienal não foi diferente — infelizmente.
No geral, apesar dos pontos negativos, o evento mostrou que há um enorme público interessado em livros no país, e uma grande parcela dele composto de jovens. Como dito acima, quero continuar acreditando que leitores de Diário de um banana estejam mais próximos de um Machado de Assis do que os não leitores, e, se assim for, talvez o Brasil ainda consiga reencontrar aquele tipo de literatura que nutre a alma e o intelecto mais do que os bolsos e os batalhões ideológicos; quem sabe até, na próxima Bienal, o Snel foque mais em literatura, pura e simples, e menos em salvar a democracia de fantasmas político-psiquiátricos.
A baixa procura por livros de relevância intelectual reflete uma juventude que teve seu direcionamento cultural desvirtuado por professores militantes comprometidos com uma agenda progressista destrutiva.
O senhor tem razão num momento mundial em que o ex-civilizado Canadá tira de prateleiras escolares livros anteriores a 2008, num moderno Farenheit. Por falar nisso, como o senhor é do ramo, por que 2008?
Parabéns, belo texto.