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Movimentos sociais e sindicais realizam atos em defesa da democracia nesta quinta-feira, 11 | Foto: Tiago Queiroz/Estadão Conteúdo
Edição 125

O Brasil que “não aguenta”

É o Brasil dessa elite subdesenvolvida, inepta e preguiçosa que nos últimos três anos e meio viu uma parte das torneiras do Tesouro Nacional se fecharem para ela

J. R. Guzzo
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Um ministro do já remoto governo Sarney, habitualmente escalado pelos meios de comunicação para nos ensinar como o universo funciona, anunciou há pouco a possibilidade de uma tragédia monumental: o “Brasil”, segundo ele, não aguenta mais quatro anos “de Bolsonaro”. É mesmo? É uma sorte, realmente, que ele tenha tido a bondade de nos avisar, porque ninguém tinha percebido nada até agora. De que diabo o homem está falando? Não se sabe, em primeiro lugar, qual é esse Brasil que não vai aguentar. Se você aguenta perfeitamente, por que o Brasil não aguentaria? Em segundo lugar, o público não foi informado quais seriam, exatamente, os motivos concretos pelos quais o país vai acabar se Bolsonaro for reeleito presidente da República. Daria para nos citarem três fatos objetivos, por exemplo, para explicar por que aconteceria uma coisa dessas? Dois fatos, pelo menos? Tudo bem: um fato só?

Dá para o piloto da inflação de 2.000% ao ano dizer que o país não consegue suportar 7%?

Ninguém vai dizer que fatos seriam esses por uma razão muito simples: eles não existem. Não é coisa muito difícil de se constatar — basta ver que o autor da previsão foi nada mais, e nada menos, que ministro da Fazenda no governo Sarney. Justo no governo Sarney, e justo na Fazenda? É sabido que os povos têm os governos que merecem, mas, no caso do Brasil, naquela época, houve uma exceção: os brasileiros não fizeram nada para merecer o governo Sarney, talvez o mais incompetente em toda a miserável história da elitezinha brasileira que passa a vida sem produzir um único prego, mas manda na máquina do Estado e nas “instituições democráticas” que inventaram aí. Foi azar mesmo, puro e simples. Como pode o ministro de um governo desses vir a público falar de qualquer coisa — e ainda por cima de economia? O governo Sarney, com esse cidadão na cadeira de ministro da Fazenda, chegou ao seu último dia tendo uma inflação de 2.000% ao ano. Isso mesmo: 2.000%, no último ano, e chegou a ser mais, nos seus piores momentos. O presente governo, que na opinião do ex-ministro o Brasil “não aguenta”, deve fechar 2022 com uma inflação um pouco acima de 7%. Dá para o piloto da inflação de 2.000% ao ano dizer que o país não consegue suportar 7%? É o técnico do Madureira dando palpite na escalação do Real Madrid.

Fazer o quê? O Brasil, sabidamente, é um país com poucos talentos na sua vida pública. Um dos resultados disso é que os jornalistas vão procurar os heróis das suas entrevistas entre os que, comprovadamente, não deram certo — sobretudo quando eles dizem o que os jornalistas querem publicar. É o caso, mais uma vez, da profecia de que o país “não aguenta” mais quatro anos de Bolsonaro. O Brasil que não aguenta, na verdade, ou que não quer aguentar, é o Brasil dos parasitas — o Brasil dessa elite subdesenvolvida, inepta e preguiçosa que nos últimos três anos e meio viu uma parte das torneiras do Tesouro Nacional se fechar para ela. Só uma parte — mas o suficiente para deixar revoltados, impacientes e com medo os habituais acionistas controladores do Estado brasileiro. O que perturba a todos eles, como nunca aconteceu antes, é a sensação de não mandarem do jeito que mandavam na máquina pública e nos bilhões de reais que existem em função dela. Mais quatro anos de abstinência, mesmo parcial? Eles não querem isso; acham que não dá para “aguentar”.

Não tem absolutamente nada a ver com a democracia, com as “instituições”, com a “resistência” ao autoritarismo e com todo o resto dessa conversa fiada

O que não dá para aguentar é a inflação de 7% ao ano, depois de dois anos de economia travada em função da Covid e de uma guerra aberta em plena Europa; como pode dar certo uma política econômica que, segundo eles, está transformando o Brasil numa ruína? É a reforma da previdência que limitou os privilégios da casta superior do serviço público — e gerou bilhões de reais que irão para o erário, e não para bolsos privados. É o Banco Central independente do governo e dos amigos do governo. São as empresas estatais que dão lucro de R$ 200 bilhões por ano para os cofres públicos, em vez de 40 bilhões de prejuízo que viravam lucros para cofres particulares. É a redução de impostos que transfere dinheiro do Estado para a população, e deixa o Supremo Tribunal Federal em estado de crise nervosa. É a redução dos preços dos combustíveis, que passa para os cidadãos a renda que estava indo para os governadores de Estado. É um governo no qual as empreiteiras de obras públicas não mandam. É uma Caixa Econômica (ou um Banco do Brasil, ou uma Petrobrás) em que a diretoria não é nomeada por políticos e está a serviço dos seus interesses. É uma administração federal que parou de contratar funcionários e de dar aumentos salariais por passagem de tempo. É isso, e mais disso.

É o Brasil de quem quer colocar de novo na presidência um político que a justiça condenou como ladrão

O centro da guerra política no Brasil de hoje está aí — e em nenhum outro lugar. Não tem absolutamente nada a ver com a democracia, com as “instituições”, com a “resistência” ao autoritarismo e com todo o resto dessa conversa fiada. Tem tudo a ver com interesses materiais feridos — e com a ideia fixa, por parte dos que deixaram de mandar no país, de voltar aos tempos em que mandavam. O Brasil que “não aguenta” mais quatro anos de Bolsonaro não é o Brasil do cidadão comum. É o Brasil dos que não querem pagar imposto — e têm recursos suficientes para ficar discutindo na justiça. É o Brasil dos banqueiros, dos empresários amigos do governo e dos professores que fazem greve para não dar aulas. É o Brasil dos grandes escritórios de advocacia, a começar pelos que se dedicam ao direito penal e defendem corruptos com milhões para gastar em honorários. É o Brasil dos diretores da Petrobras que roubavam a empresa — roubaram tanto que até aceitaram devolver parte do dinheiro roubado. É o Brasil da mídia que perdeu bilhões em publicidade paga pelo governo. É o Brasil dos que não gostam de concorrência, de mérito individual e de sucesso pelo esforço no trabalho. É o Brasil do STF que manda em tudo, mas não consegue impedir a inflação de descer aos 7% ao ano, ou que o desemprego continue caindo, ou que haja crescimento econômico em vez de recessão, ou que as exportações continuem a bater recordes; amariam que essas coisas acontecessem, para o governo desabar junto, mas elas não acontecem. É, no fim de todas as contas, o Brasil de quem quer colocar de novo na presidência da República, pela primeira vez na história, um político que a justiça condenou como ladrão — por praticar os crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, segundo a decisão de nove magistrados diferentes, em três instâncias sucessivas.

A folhas tantas do seu pronunciamento à mídia, o ministro do governo Sarney declarou que a queda da inflação é “inconstitucional”. O que poderia definir melhor o Brasil que “não aguenta”? É essa, de fato, a Constituição que querem defender com os seus manifestos “em defesa da democracia”.

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