Bom pra cachorro!
Expressão popular brasileira
Durante séculos, o sono dos indígenas foi leve e conturbado. Animais selvagens, predadores, grupos inimigos e ameaças de todo o tipo os impediam de dormir profundamente. Era preciso estar vigilante. Suas noites só começaram a ser tranquilas com a chegada de uma nova tecnologia: os cachorros europeus. Sua capacidade excepcional de detectar intrusos e ameaças pelo ruído e pelo olfato, de latir e dar sinais nas proximidades das aldeias e de até atacar invasores transformou o sono e as noites nas redes e nas tabas.
Talvez não tenham sido facões, machados ou anzóis, as tecnologias portuguesas mais amplamente desejadas e adotadas pelos indígenas brasileiros. Foram os cães, mais úteis do que o impenetrável e irreprodutível metal dos europeus.
Cães primitivos existiam na América do Norte. Eles acompanharam as migrações das diversas levas de humanas pelo Estreito de Bering, como atestam registros arqueológicos. Sua chegada à América do Sul foi mais tardia (entre 5000 e 2500 a.C.). E ficaram restritos a áreas agrícolas dos Andes, com alguma rara presença na Pampa.
As raças pré-colombianas desapareceram rapidamente com a chegada dos cães europeus. Até hoje não há uma explicação científica satisfatória sobre seu desaparecimento brusco e sua substituição por cães europeus. Uma coisa é certa: os cães europeus também conquistaram a América.
No Brasil, era diferente. Os índios não possuíam cachorros e não há vestígio de cães domésticos até a chegada dos portugueses. No século 16, a expansão territorial dos tupis ainda não estava consolidada, após a extinção de sambaquieiros e de outros povos no rastro de seu avanço. As guerras entre tribos eram marcadas pela antropofagia. Mulheres e crianças eram vítimas: fáceis de capturar, imobilizar e transportar, mais indefesas do que os guerreiros. Buscar água ou brincar longe das aldeias era um risco enorme. A vida real das mulheres e das crianças indígenas era talvez distante da mítica visão paradisíaca apresentada por alguns.
A introdução dos cães, sobretudo pelas mãos dos jesuítas, inaugurou um novo tempo de sono e vida mais tranquila para os índios. Em caso de aproximação de guerreiros inimigos, de dia ou de noite, os cachorros davam sinal e até atacavam potenciais agressores. O cão foi integrado nas tribos como o primeiro mamífero doméstico. E o mais extraordinário deles: capaz de seguir os passos do dono, obedecer a ordens e cumprir tarefas. Nessa intimidade é comum, ainda hoje, as índias amamentarem cães em seus seios ou prepará-los assados como alimento.
Os índios descobriram sua eficiência cinegética, caçando sozinho ou em matilha. O cão mudou as técnicas de caça, e até ritos de captura da onça, antes atraída para armadilhas no solo, como indicam relatos jesuíticos. Sua capacidade de farejar, perseguir e acuar as onças no alto das árvores era uma novidade. Nunca mais o índio se sentiu num mato sem cachorro.
O número de pets cresce em média 2% ao ano, acima da taxa de crescimento da população
O cão (Canis familiaris) é um mamífero carnívoro da família dos canídeos. Para a ciência, o cachorro descende de populações do lobo eurasiático (Canis lupus). Todo cão, independente da raça, é descendente longínquo de lobos selvagens e primo dos coiotes. Mesmo o mais miniaturizado, como os carregados por senhoras em suas bolsas, é descendente de um lobo. E, pela etimologia, o Canis infiltrou-se em canícula, canalha, cinismo…
Os cães são naturalmente prolíficos. Cada ninhada tem em média de seis a oito filhotes. Cios são frequentes. Fêmeas aceitam muitos machos. Às vezes, a ninhada tem filhos de vários pais. O intervalo entre partos é pequeno e permite duas crias por ano. O sucesso reprodutivo dos cães garantiu sua expansão entre as tribos. Chegaram às aldeias remotas, cujo contato com brancos só ocorreria séculos mais tarde. E prossegue a seleção canina. A Confederação Brasileira de Cinofilia lidera é a cinofilia nacional, com mais de 150 mil animais registrados
No Brasil, entre os principais animais de companhia estão os cães. São 56 milhões, a segunda maior população canina do mundo. Em segundo lugar, estão 41 milhões de aves canoras e ornamentais. Gatos somam 24 milhões e têm o maior crescimento: mais de 3% ao ano. A população de peixes ornamentais é da ordem de 19 milhões, e os pequenos mamíferos, répteis e outros animais totalizam 2,5%.
Se em sua casa tem cachorro, gato, peixinho no aquário ou passarinho numa gaiola, você integra o segmento do agronegócio dos animais de companhia. O chamado setor pet do agronegócio está relacionado ao desenvolvimento das atividades de criação, produção, comercialização e cuidados para mais de 145 milhões de animais de estimação existentes no Brasil.
Os animais de estimação são criados para o convívio com humanos por razões principalmente afetivas. Eles têm como destinações principais: companhia, lazer, terapia, auxílio a portadores de necessidades especiais, esportes, segurança, torneios, exposições, conservação, socorrismo e trabalhos especiais. O número de pets cresce em média 2% ao ano, acima da taxa de crescimento da população.
Graças às bases industriais do agronegócio brasileiro, à organicidade crescente de suas diferentes atividades produtivas e à reciclagem de seus produtos e resíduos, a maioria dos animais pode receber o que há de melhor em nutrição, medicina veterinária, alojamento, canis, transporte, identificação, treinamento e bem-estar animal. Por obra do agronegócio, sobretudo para os cães, a vida anda boa pra cachorro.
O agronegócio pet registrou um bom crescimento em 2021. O lockdown e o isolamento social impostos recentemente levaram os tutores de animais a uma maior proximidade com seus pets e a demandar mais alimentos completos e balanceados, cujo consumo cresceu 8% em 2021. Até alimentos vegetarianos para cães são produzidos para respeitar convicções de seus donos. Segundo o Instituto Pet Brasil (IPB), em 2020, o conjunto do mercado pet registrou crescimento de 13,5%, com faturamento de R$ 40 bilhões. Em 2021, o crescimento foi de 22% e o faturamento ultrapassou R$ 50 bilhões.
Simplificadamente, três áreas compõem esse mercado: alimentação animal (pet food) representa 73% do faturamento; produtos veterinários (pet vet) alcançam 19%; cuidados e bem-estar animal (pet care) somam 8%. Pequenos e médios pet shops são o principal canal de acesso aos produtos e representam quase metade das vendas do setor (48%); seguidos por clínicas e hospitais veterinários (17,9%); lojas agropecuárias (10,2%); varejo alimentar (8,9%); pet shops de grande porte (7,4%); e-commerce (5,4%); e outros, como clubes de serviço, lojas de conveniência e hotelaria (2,2%). Em 2020, as empresas do setor pet ultrapassaram 272 mil estabelecimentos, segundo a Abinpet. Todo o setor se aproxima a 0,4% do PIB brasileiro.
Os cães deixam cada vez mais o quintal para viver dentro das casas. Até em razão da verticalização nas cidades e da vida em apartamentos. Animais de estimação são considerados parte da família. Muitos casais sem filhos ou pessoas idosas, cuja expectativa de vida aumenta, buscam a companhia de um pet. Ao reduzir a solidão, os pets assumem outras dimensões na vida das pessoas. Cães participam de tratamentos terapêuticos, acompanham o humano em sua existência e, em muitas culturas, guiam na morte, como psicopompos (Anúbis, Cérbero, Xoloti…). Presentes na vida de santos, os cães inspiram a vida espiritual.
Todos conhecem a ordem dos dominicanos, fundada por São Domingos, no século 13. Essa ordem de pregadores defendeu a Igreja com a boca, ensinando e pregando, como cães fiéis e corajosos na defesa da casa ou de seu senhor, latindo e até mordendo. Os dominicanos deram suas mordidinhas de ofício, sobretudo na Espanha, em tempos de inquisição. Antes do nascimento de São Domingos, sua mãe sonhou parir um cão branco e preto. Ele saía de seu ventre com uma tocha acesa na boca e incendiava o mundo! Sonho impressionante. A expressão “dominicanos” evoca em latim os cães do Senhor, domini canis. Símbolos de fidelidade, eles tiveram servos notáveis, como São Tomás de Aquino. E deram nome à República Dominicana e sua capital, São Domingos.
Por milênios, em sua interdependência crescente, cães e humanos compartilharam comidas, doenças, ócio, trabalho, inimigos e ameaças. Filhotes foram trazidos para dentro das cabanas e das cavernas. E o simétrico foi sonhado: lobos amamentando humanos, desde a fundação de Roma até Mogli, o menino-lobo. Sem falar em lobisomem, Lassie ou Rin Tin Tin. E a fecunda parceria prossegue no campo e na cidade. No agronegócio brasileiro, a caravana passa e os cães vão junto. Felizes e bem tratados.
Leia também “De tudo um porco
Excelente artigo. Obrigada
Parabéns pelo ótimo artigo. Um resgate curioso e en(cão)tador.
Excelente artigo. Parabéns.
Parabéns, Otimo artigo, muito interessante, cães são tudo de bom, temos essa conexão profunda que as vezes até desconhecemos. Mesmo quem não é fã de pet, no passado seus antepassados podem ter dependido deles para sobreviver.
Quanto ensinamento do professor Evaristo e sempre nos transmitindo a importância de nossas origens portuguesas até na introdução de cães sobretudo pelas mãos dos jesuítas. Com tanto conhecimento, o professor Evaristo não seria um excelente aliado do governo Bolsonaro em um alto cargo dos Ministérios da Cultura e do Meio Ambiente, como Embaixador da Cultura Brasileira para o mundo e para os inúteis brasileiros que hoje nos chamam de párias?
Mais um valioso artigo do Mestre Evaristo de Miranda. Variando, agradavelmente, nos assuntos que aborda, desta feita ressalta a importância dos PETs em nossas vidas. Chama a atenção a qualidade e profundidade das pesquisa na preparação de seus artigos. Obrigado mestre e revista que lhe dá suporte.
Muito bem escrito: artigo bom pra cachorro!
Excelente artigo que aprofunda o conhecimento sobre o agro e nos enriquece com dados históricos.
Boa tarde..sempre aprendo muito lendo seus artigos..os Dominicanos os”caes do Senhor”..o agronegócio dos pets tem desenvolvido muito no Brasil nos últimos anos.
Eles são animais que dão muito amor aos seus donos, e nada pedem de volta…além do mais são muito lindos e grandes companheiros de seus donos
Inda bem q não entro em mato sem cachorro! E tenho sete vidas como gatos, e já q tenho duas , fico c 14…ou seriam 9 vidas por gato? De qualquer maneira, ter um animal de estimação é um aprendizado de vida. Vc nos dá os números impressionantes dessa indústria e nossos queridos de quantos patas vivem melhor ao nosso lado! 🐶🐱
Queridos de quatro patas*
Bom pra cachorro. Expressão correta para definir esse artigo. Mais uma vez parabéns Miranda. Eu desconhecia esses números. Jamais imaginei a importância dos cães para o agronegócio. Aguardando o próximo artigo daqui 15 dias. O que será mostrado que ainda desconheço?
Maravilha de artigo. Como antropólogo sou testemunha da importância dos cães entre os aborígenes australianos inclusive os dingo. Parabéns ao Dr. Evaristo, um ícone da cultura brasileira.
Uma aula, nunca imaginei esses números. O que sei é que meus animais, cães e gatos, me ensinaram a ser mais descente, menos humano (!) e mais racional. Dão carinho, afeto mesmo sem receber. Não exigem nada e estão ao meu lado apesar de tudo.
Sempre aprendendo com o prof,obrigado.. ótimas e históricas informações
Como tutora de 03 caes (adotados da rua) so posso elogiar e me sentir melhor apos ler o artigo do Prof Evaristo. Como sempre impecavel. Sim, a caravana passa e os caes vai junto !!
Leitura fácil, cheia de história! Como colocado num dos comentários, uma história não tão conhecida por muitos por aqui. Obrigada por compartilhar conosco!
Mais um excelente artigo, entre tantos outros do Dr Evaristo. Sempre com argumentos históricos em suas narrativas. Desda vez, acho que desconhecidos para a maioria. Mais orgulhoso agora de fazer parte desse segmento, com a colaboração de alguns cães, gatos e peixinhos
Excelente artigo! Até me fez refletir seriamente em adquirir um cachorro, que há tempos não possuo. Aliás, esta coluna do Dr Evaristo é excepcional, sempre com algo novo, com contexto histórico; consegue demonstrar em diversos aspectos a importância do agronegócio até em questões mínimas que passariam totalmente despercebidas. Parabéns e compartilhando…
Dr. Evaristo sempre nos ilustra. Hoje aprendi sobre a importância dos cães para uma melhor qualidade de vida dos indígenas.
Mais um foco de luz sobre uma parte do agronegócio pouco identificado pelo leitor.
E com a plenitude de informações caractrística do Professor Evaristo.
Em síntese, bom pra cachorro!
O talento deste colunista é uma cachorrada com nós, relés leitores. Que categoria para pesquisar e escrever sobre temas tão relevantes ao Agro. Parabéns!
MUITO BOM, COMO SEMPRE EVARISTO. O MERCADO DE PET CRESCE EM NUMEROS ASSUSTADORES, TALVEZ EVIDENCIANDO A MAIOR CONFIANÇA DOS HUMANOS EM SEUS COMPANHEIROS DE 4 PATAS