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Manuela d'Ávila, Fernando Haddad, Ciro Gomes e Dilma Rousseff | Foto: Montagem Revista Oeste/ Divulgação
Edição 102

Deus nas urnas

Religião e política se misturam em ano eleitoral no Brasil. E o voto cristão tem sido cada vez mais decisivo na reta final

Silvio Navarro
Rute Moraes
Rute Moraes
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A cada dois anos, a história sempre se repete: à medida que o calendário eleitoral avança, a fé dos políticos ressuscita. É aquele período em que os candidatos se lembram de ir à missa aos domingos, fazem selfie com pastores evangélicos, incorporam trechos da Bíblia ao vocabulário cotidiano, tornam o figurino mais conservador. Até os comunistas aprendem a rezar.

Por causa das restrições da pandemia, o Brasil não tem mais um censo atualizado sobre esse tema. O levantamento deveria ter sido feito em 2020, mas o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) adiou o trabalho de campo para agosto deste ano. A última vez que uma pesquisa sobre religião no país foi feita, há dois anos, o instituto Datafolha revelou que metade da população se declarava católica e 30%, evangélica.

O fato é que, acredite-se ou não no Datafolha, os estatísticos do IBGE há tempos afirmavam, em projeções desde 2010, que católicos e evangélicos teriam o mesmo número de fiéis até o final desta década. Juntos, representariam 80% da população.

Haddad foi à missa com Ana Estela, sua mulher, e Manuela d’Ávila, candidata à vice | Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Diante desses dados, não é preciso consultar nenhum cientista político para confirmar o mantra dos marqueteiros políticos: em campanha, tem que rezar e ponto. Talvez isso explique, por exemplo, uma das imagens que marcaram a corrida presidencial de 2018, quando a comunista millennial Manuela d’Ávila cerrou os olhos em prece ao lado de Fernando Haddad. Entusiasta da campanha feminista “Lute como uma garota”, Manuela passa longe de qualquer bandeira conservadora. Virou um dos assuntos mais comentados no Twitter na semana passada, ao comemorar a aprovação do aborto até 24 semanas de gestação na Colômbia.

A postagem gerou repúdio nas redes sociais. Jornais noticiaram que o ex-presidente e candidato Luiz Inácio Lula da Silva telefonou pedindo para que ela apagasse a publicação, porque isso prejudicaria não só a sua campanha, mas a de boa parte dos seus aliados.

Opus Dei

O que Manuela pensa nunca foi um problema para o PT, muito menos para a legião de progressistas e feministas de esquerda. Mas é um problema para Lula. Tampouco foi um ato isolado. O ex-presidente sempre detestou falar sobre religião. Em novembro do ano passado, o PT editou um vídeo dele, acompanhado de Gleisi Hoffmann, presidente da sigla, e da deputada Benedita da Silva (RJ), com dois pastores evangélicos. O desconforto de Lula é visível (assista abaixo).

A gravação até que seguia bem, até Gleisi abrir o jogo: “Na nossa caminhada, nunca fizemos disputa religiosa. Sempre respeitamos todas as religiões, a fé e o credo das pessoas”, disse. “Nossa disputa sempre foi política.” O corte na edição foi drástico porque a fala não era mais aos evangélicos numa live dedicada exclusivamente a esse público. Nem Lula conseguiu sustentar. “Precisamos de mulheres e homens de todas as religiões”, disse.

YouTube video

A distância entre o PT e as pautas conservadoras é também um dos entraves para a chapa de Lula com o ex-governador paulista Geraldo Alckmin como seu vice. Apesar do namoro nas manchetes dos jornais, o ex-tucano tem enfrentado questionamentos de antigos aliados do interior paulista se teria abandonado a Igreja. Alckmin é católico fervoroso e, nas campanhas anteriores, teve de explicar sua relação com a Opus Dei — prelazia mais conservadora da Igreja Católica.

Geraldo Alckmin, Eduardo Suplicy e Fernando Haddad rezam uma oração de mãos dadas | Foto: Rafael Arbex /AE

A reportagem de Oeste ouviu pastores e líderes evangélicos na Câmara dos Deputados sobre qual candidato à Presidência se aproxima mais das chamadas pautas inegociáveis. A resposta foi unânime: o atual presidente.

“Momento de fé e meditação”

“Ideologicamente, Jair Bolsonaro é alinhado em 90% com tudo o que nós pensamos”, afirmou o deputado Sóstenes Cavalcante (RJ), líder da bancada evangélica na Câmara. “A esquerda deveria ter vergonha e aprender a fazer política de verdade, respeitando o que ela pensa. É desrespeito se aproximar da igreja e de líderes locais em período eleitoral.”

O deputado-pastor Marco Feliciano (PL-SP) segue a mesma linha. “É uma aproximação sorrateira da esquerda. Quando eleitos, foram pedir a bênção de Fidel Castro e Nicolás Maduro.”

Segundo os parlamentares, a trincheira no Congresso será a mesma na próxima legislatura, independentemente do resultado nas urnas: impedir qualquer flexibilização sobre aborto e drogas, barrar a legalização de jogos, a linguagem neutra nas escolas (“todos, todas e todes”) e defender o endurecimento da legislação penal — especialmente a redução da maioridade para 16 anos. Bolsonaro concorda com todas elas — no caso dos jogos, a única que pode avançar neste ano no Congresso, já afirmou que vetará.

“Com exceção dos ‘progressistas’, que defendem pautas identitárias, todo o restante do eleitorado tende a ser conservador”, diz o advogado Thiago Rafael Vieira, que dirige o Instituto Brasileiro de Direito e Religião e tem doutorado sobre o Estado constitucional e liberdade religiosa. “Essa maioria dos eleitores é a favor de pautas morais, pró-vida, defende liberdades civis e econômicas, é contra a ideologia de gênero. São pessoas que não são religiosas, são conservadoras.”

Essas são pautas, por exemplo, que o sempre presidenciável Ciro Gomes (PDT) provavelmente nunca sustentaria fora da campanha eleitoral. A foto abaixo, ao lado do folclórico Cabo Daciolo num culto, não tem muita explicação. A legenda no Instagram diz: “Momento de fé e meditação com Giselle (sua esposa) e Cabo Daciolo no culto na Igreja do Senhor Jesus, em Fortaleza”.

Cabo Daciolo e Ciro Gomes em um culto evangélico | Foto: Reprodução/Instagram

O ex-juiz Sergio Moro, que ainda não conseguiu se firmar como o nome da “terceira via” contra Lula e Bolsonaro, também já saiu em busca do voto religioso. No início do mês, redigiu uma “carta aos cristãos”, com 14 tópicos. Disse que se compromete a combater a sexualização precoce de crianças e a ampliação das possibilidades de aborto.

Outro dado importante é o crescimento da frente evangélica no Congresso Nacional. Em 2019, quando os deputados tomaram posse, a bancada alcançou seu maior número desde a redemocratização: 196 deputados, quase 40% da Casa. Não é exagero afirmar que, se o grupo votar unido, a aprovação de um projeto de lei é quase certa.

“A minha impressão é que o Congresso vai aumentar o número de religiosos neste ano”, disse Thiago Rafael Vieira. “Esse assunto nunca esteve tanto em voga, e nesse sentido o voto religioso terá um grande peso”,

Ele não é o único que sustenta essa tese. A migração da base de Bolsonaro para o PL e a guinada conservadora do PTB, além de PP, Republicanos e PSC, levam à conclusão de que a possibilidade de a frente evangélica ter metade da Câmara no ano que vem é real. No Senado, como só há chance de renovação de um terço das cadeiras, o perfil deve permanecer o mesmo — de dez a 15 representantes. Em 2022, Deus estará nas urnas como nunca.

Leia também “Fábrica de pesquisas”

8 comentários
  1. JOSE FERNANDO CHAIM
    JOSE FERNANDO CHAIM

    ESSES IDIOTAS, ACHAM QUE ENGANAM A QUEM? SÓ SE FOR OUTROS IDIOTAS!!!

  2. Davilson Gomes Miranda Jr
    Davilson Gomes Miranda Jr

    Cabo Daciolo lendo a bíblia com Ciro Gomes, você não tem vergonha nesta sua cara?

  3. Antonio Carlos Neves
    Antonio Carlos Neves

    Estranho mesmo é o ex governador Alckimin que como ex tucano sempre admirei, sendo um político conservador e extremamente religioso estar compondo chapa com LULA para presidente. Ou parou de rezar, ou pior, pretende dar um golpe no PT, com a conivência do LULA. Qualquer dessas condições não é apropriada para um homem de extrema fé católica. Entendo que Alckimin se não tivesse cometido esse desgaste de sua imagem, poderia ser vice é de Bolsonaro para levar ex tucanos centro direita a reeleição do presidente em 2022, e, em 2026 inverter a chapa para Alckimin/Bolsonaro.
    Penso que seria um período de relevante democracia e alta prosperidade para o pais.

  4. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Excelente texto. Parabéns. Quem se diz cristão, católico, protestante e vota na esquerda para mim não o é de jeito nenhum. É inconcebível se religioso e votar em esquerdopata.

  5. Rubens Nunes de Andrade
    Rubens Nunes de Andrade

    Ocorre que, possivelmente por fatores culturais, grande parte dos petistas, contraditoriamente não sabem que o PT é um partido comunista, que nunca assumiu esse nome por fatores eleitorais. É verdade que, possivelmente, Lula não é ateu nem religioso, talvez nem comunista, apenas vive a conveniência do momento, de cada momento.

  6. José Carlos Falcão De Andrade
    José Carlos Falcão De Andrade

    A única cerimônia religiosa que a esquerda aceita é a pajelança (em sentido figurado) para unir qualquer um que seja contra Bolsonaro e tentar ganhar votos. Tais aliados de ocasião serão – claro – descartados no instante seguinte, como sempre fizeram as esquerdas com os otários que lhes apóiam.

  7. Samuel Gomes da Silva
    Samuel Gomes da Silva

    Tenho certeza que não tem nenhum nenhum cordeirinho na política, política e religião não combina, Cristo foi conhecer Pilatos porque o levaram preso , senão nunca teria colocado os pés onde tem o poder da carne,e quem falou com Cristo foi Pilatos e não Cristo,
    Religiao e sobre salvação da alma, política é sobre a carne,

  8. Juan atalla gonzalez
    Juan atalla gonzalez

    Quando os judeus , oprimidos pelo domínio romano , vieram ao encontro de Jesus para torna-lo rei , ele se afastou e disse
    ” Meu reino ( governo ) não faz parte deste mundo .”
    Política partidária e religião não deveriam estar na mesma prateleira .
    É apenas a minha opinião , evidentemente .

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