A febre anti-Rússia que tomou conta do Ocidente depois que Vladimir Putin invadiu a Ucrânia atingiu um novo patamar. Ela agora está ameaçando devorar o cosmonauta soviético Yuri Gagarin. O primeiro ser humano a ir ao espaço sideral. Um dos maiores exploradores da história da humanidade. E um dos russos mais populares do século 20, amado e celebrado por norte-americanos, britânicos e outros que não gostavam da União Soviética, mas se importam muito com as conquistas históricas de Gagarin. Até mesmo esse russo adorado corre do risco de se tornar vítima da russofobia de observadores e instituições ocidentais que parecem incapazes de distinguir entre Putin e o povo russo, entre as coisas horríveis que estão sendo feitas pela classe política russa e as coisas impressionantes que foram concedidas à humanidade pelos russos ao longo da história.
Acho que era só uma questão de tempo até que o jingoísmo anti-Rússia fosse atrás de Gagarin. Afinal, ele já colocou Tchaikovsky na mira (a Orquestra Filarmônica de Cardiff, capital do País de Gales, cancelou uma performance da Abertura 1812), está de olho em Dostoiévski (a Universidade de Milano-Bicocca declarou — antes de recuar — que iria adiar um curso sobre o autor russo) e está colocando uma pressão imensa para que maestros, cineastas e esportistas de destaque russos vivos condenem Putin, sob o risco de expulsão da vida pública. Só que é um problema se eles o fizerem — e também é um problema se não o fizerem. Valery Gergiev, maestro russo de renome mundial, foi dispensado da Filarmônica de Munique por não denunciar Putin. E então Alexander Malofeev, prodígio russo do piano, foi cortado de apresentações, apesar de ter se oposto à guerra contra a Ucrânia. Nesse clima horrível, em que qualquer pessoa russa — viva ou morta, pró ou anti-Putin — pode ser constrangida ou ostracizada, era inevitável que até mesmo o túmulo de Gagarin fosse tripudiado.
E foi assim que, nas palavras da Vanity Fair, Gagarin foi parar no “buraco da memória” de um grupo de defesa do espaço. A Space Foundation anunciou que um evento que aconteceria no mês que vem, conhecido nos últimos sete anos como “Yuri’s Night”, ou “Noite do Yuri”, passará a se chamar “A Celebration of Space: Discover What’s Next” (Uma Celebração do Espaço: Descubra O Que Vem a Seguir). Por quê? Por causa dos “acontecimentos mundiais da atualidade”, claro. Essa expressão deprimente se tornou a justificativa para toda forma de cancelamento histérico anti-Rússia. “Diante da atual conjuntura”, os canceladores sempre dizem: “Decidimos silenciar Tchaikovsky, jogar Dostoiévski no lixo, cancelar o novo filme russo que você queria muito ver…” Pior ainda, foi relatado que, na cidade de Mondorf-les-Bains, em Luxemburgo, uma estátua de Yuri Gagarin foi coberta, escondida sob um tecido cinza, como se o cosmonauta, por força de sua “russidade”, fosse agora uma figura vergonhosa e desprezível. A cultura do cancelamento fez muitas coisas ruins, mas burocratas covardes que nunca vão chegar perto das alturas vertiginosas da história alcançadas por Gagarin jogarem um cobertor da vergonha sobre a imagem dele? Sim, esse pode ser o ponto mais baixo.
“Lá vamos nós!”
A loucura de cancelar Yuri Gagarin não pode ser exagerada. Em primeiro lugar — e é um sinal da insanidade dos tempos que isso precise ser dito — Gagarin não tinha nada a ver com Putin. Ele morreu 54 anos atrás, em 1968, quando o presidente russo era um estudante de 16 anos da Escola nº 193. Gagarin nem viveu na mesma nação que Putin. Ele foi um cidadão da URSS, não da Federação Russa, que Putin governa. Em segundo lugar, e ainda mais importante, existe a questão dos feitos de Yuri Gagarin, de suas imensas contribuições para a compreensão humana do espaço. Em 1961, ele fez nascer a Era Espacial ao partir no Vostok 1 e se tornar a primeira pessoa a chegar ao espaço sideral. “Lá vamos nós! Adeus, queridos amigos! Até breve”, ele disse, ao ser lançado à estratosfera. “Lá vamos nós!” se tornou um brado para as pessoas dos países governados pelos soviéticos que admiravam e apoiavam essa impressionante nova era de exploração espacial.
Gagarin ficou famoso no mundo todo. Ele visitou diversos países e foi recebido por grandes multidões como um herói da humanidade. Três meses depois de sua visita ao espaço, visitou Londres e Manchester, onde as pessoas lotaram as ruas para ver o astronauta russo. Milhares de manchesterianos enfrentaram chuva pesada para ver e quem sabe até apertar a mão desse homem que nasceu em uma família camponesa, mas chegou às alturas mais impressionantes. Eles levantaram faixas que diziam “Bem-vindo, Yuri Gagarin!”. Houve uma torrente de sentimento popular em homenagem a esse piloto soviético. Como o jornalista do The Times escreveu sobre a visita de Gagarin ao Reino Unido em 1961:“[Quem] não… andaria algumas centenas de metros para ver esse [homem] incrível?” Ele é um homem do espaço e, no entanto, “vem nos visitar e conversa conosco”.
Há uma sombria tendência stalinista nesse novo movimento anti-Rússia
Éramos tão mais maduros naquela época, tão mais tolerantes. Isso foi em 1961. A Guerra Fria estava em seu momento mais intenso. A Crise de Berlim, que levaria à construção do Muro de Berlim, estava em pleno curso quando Gagarin estava provocando suspiros em adolescentes, trabalhadores e trabalhadoras de Londres e Manchester. A Crise dos Mísseis de Cuba estava fervilhando. A derrota da Revolução Húngara pelos soviéticos era uma memória bem recente. E, mesmo assim, jornalistas, políticos locais e cidadãos se enfileiraram aos milhares para tentar cumprimentar Yuri Gagarin pelo que ele havia feito pela humanidade.
Cultura do cancelamento, estilo JFK
Claro, havia política no meio. Parte do apoio proletário a Gagarin dialogava com um ceticismo de base a respeito da ideia de a União Soviética, ou o comunismo em termos mais amplos, ser um mal único. Alguns políticos britânicos ficaram irritados com a popularidade de Yuri Gagarin. John F. Kennedy chegou a bani-lo dos Estados Unidos, com medo de que o amor por ele se transformasse em solidariedade pelos soviéticos. Cultura do cancelamento, estilo JFK. E, no entanto, é impressionante que, mesmo quando o Ocidente estava envolvido em uma “Guerra Fria” cada vez mais tensa e, às vezes, quente com a União Soviética, nosso instinto geral não foi cancelar um dos grandes cidadãos dessa União Soviética, mas reconhecer que suas conquistas transcendiam nacionalidade e política e tocavam um desejo mais profundo por grandeza e conhecimento que todos os seres humanos conseguem compreender.
Uma nação sarnenta de oligarcas
Não mais. Agora, em nossos tempos menores e mais sórdidos, nesta era trágica de intolerância, não sabemos mais distinguir entre uma nação e seus habitantes, entre um país que no momento é governado por tiranos e o que esse país deu ao mundo. A maneira como as elites culturais ocidentais estão tratando a Rússia, como um fim de mundo, uma nação sarnenta de oligarcas, senhores de guerra e cidadãos manipulados, é profundamente preocupante. As contribuições russas para o conhecimento, a literatura, a música, a exploração e o pensamento político são vastas. Desconsiderá-las, em uma tentativa de afrontar Putin, é filisteu, imoral e quase racista. Eu discordo da maneira como a palavra “racista” é usada com descuido hoje em dia, mas, sério, de que outra forma descrever o cancelamento iminente de alguém como Yuri Gagarin? Seu único crime, até onde eu sei, é ter sido russo.
Como o pesquisador eslavista Gary Saul Morson afirmou recentemente: “Até mesmo no auge da Guerra Fria, ninguém cogitou banir a literatura, a arte ou a música da Rússia”.
Morson diz que a ironia do atual cancelamento de figuras culturais e históricas russas é que era “assim que a União Soviética operava”. Exatamente. Há uma sombria tendência stalinista nesse novo movimento anti-Rússia. E a atitude vergonhosa em relação a Gagarin captura a que ponto esse neo-stalinismo chegou. Esse foi um homem que, quando adolescente, sabotou operações nazistas na cidade onde cresceu, Gzhatsk (atual Gagarin). Um homem que foi de uma origem excepcionalmente humilde para a linha de frente das conquistas humanas modernas. Um homem que morreu de forma trágica durante um exercício de treinamento de rotina, em 1968, com apenas 34 anos, o que significa que ele nunca chegou a ver o homem caminhar na Lua — um feito para o qual abriu caminho. Ele deveria ser celebrado no mundo todo, assim como muitos outros russos. O jingoísmo anti-Rússia, vingativo e censurador, que tomou conta de muitos no Ocidente é o extremo oposto da bravura e do humanismo que alguém como Yuri Gagarin personificava.
Brendan O’Neill é repórter-chefe de política da Spiked e apresentador do podcast da Spiked, The Brendan O’Neill Show. Você pode se inscrever aqui. Ele está no Instagram: @burntoakboy
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Acredito que, no futuro, o tempo presente será chamada de A Era da Imbecilidade.
Infelizmente a falta de sensatez e discernimento estão tomando conta de inúmeras pessoas; desistiram de pensar, desconhecem o bom senso.
Essa sanha canceladora é a maior prova disso e, como dito no excelente texto, tem um forte verniz stalinista. Quem diria?
Quanto mais eles cancelam, mais eu me interesso pelos cancelados
Bilhões de seres humanos deste lindo planeta azul já cancelaram Jesus Cristo. Nada mais me surpreende. Nada mais.
Excelente texto. Parabéns. Realmente, a estupidez, imbecilidade humana não tem limites.
Escrevam ai!!
O atual “OCIDENTE” JÁ PERDEU!!!
Esse presidente Ucrâniano é um incendiário,,,, irresponsável, deslumbrado com a recente notoriedade ….
Quer arrastar o ocidente para uma guerra nuclear…
Então é uma de chamar a OTAN de covarde, que o Ocidente DEVE para a Ucrânia,,,
que a Polônia tem de ajudar mais, etc, etc etc,,,
UM INCENDIÁRIO!!
OCIDENTE!!
Tirem a escada desse Deslumbrando, DEIXE ELE COM A BROXA NA MÃO, Baixem a Bola dele antes que a terceira guerra seja, no futuro, escrita nos livros de história…causada por um COMEDIANTE…alçado ao poder por manobra do Ocidente em 2015..
SIM! Vou uma “primavera árabe” que colocou esse canalhinha experto no poder.
Eu, Marcelo Danton da Silva, AGRADEÇO ao PUTIN, por desnudar e assim,, colocar um FIM às politicas da agenda 2030.
Depois desse boicote aos Russos, qualquer nação digna dessa definição, fechará suas fronteiras econômicas, financeiras e culturais.
Onde já se viu quebrarem regras BÁSICAS de fluxo financeiro e fornecimento produtivo,
Só o fato de congelarem o OURO Russo depositado em organismos internacionais, já seria motivo para decretar guerra…Só pelo fato de quererem matar o povo russo de fome (óbvio não vão conseguir) já é um crime contra a humanidade.
Vocês não estão vendo/percebendo que é MUITO ALÉM DA GUERRA?!
É GENOCÍDIO!
Ocidente sempre foram HIPÓCRITAS!!
SEMPRE!
Desde a época Grécia Antiga exercitam essa hipocrisia.
A imbecilidade tomou conta do Mundo. Os dirigentes mundiais atuais são uns imbecis, e o povo está sendo imbecilizado e, como todo imbecil, não percebendo, gostando e aplaudindo.