O restaurante nem sempre esteve conosco. Ele é fruto do nascimento do moderno. E permitiu que o talento e a criatividade deixassem os confins dos castelos e das grandes propriedades que podiam bancá-los e democratizassem a culinária para as multidões. O restaurante possibilitou que as maiores e mais fabulosas delícias da vida estivessem ao alcance de qualquer pessoa.
Isso também aconteceu com a pintura, a arquitetura, a música, a educação e todos os bens consumíveis. Mas a questão é especialmente presciente na área da gastronomia, que durante muito tempo foi considerada propriedade da aristocracia. A invenção do restaurante de acesso público foi um belo exemplo do que Benjamin Constant chamou de “diferença na liberdade dos antigos e dos modernos”.
No mundo antigo, ser livre significava ser legalmente privilegiado por nascimento, título ou posição com acesso ao poder. Você tinha alguma participação na administração da vida pública, alguma medida de controle sobre as leis sob as quais vivia. Todos os demais estavam excluídos do acesso: camponeses, mercadores, escravos e plebeus — os 99% destituídos e marginalizados.
Isso começou a mudar no fim da Idade Média. Conforme as pragas acabaram, o feudalismo gradualmente entrou em decadência. As relações comerciais se tornaram mais decisivas do que as políticas, e as massas depararam com algo que parecia impossível: oportunidades de ter uma vida melhor. Elas podiam ganhar dinheiro e guardá-lo. As estradas se tornaram mais seguras para que pudessem viajar. Podiam abrir um negócio e ter esperança de uma vida melhor.
A lenda do primeiro restaurante
Fico absolutamente extasiado de anunciar que existe um filme maravilhoso sobre como o restaurante figura nessa bela história. Seu título é Delicioso: da Cozinha para o Mundo (2021) e é baseado na lenda de um evento do século 18. Tratado de maneira brutal por seu senhor por inventar um novo prato, o chef brilhante que servia um duque foi demitido. Ele voltou para casa numa área rural e se ocupou de outras tarefas. Uma mulher aparece e pede para se tornar sua aprendiz. O chef reluta por não ver futuro na cozinha se ela só significasse deferência servil à aristocracia francesa pré-revolução.
Depois de um tempo, o duque tenta trazê-lo de volta — ninguém era capaz de cozinhar tão bem — e manda avisar que gostaria de comer na casa do chef. Quando chega o dia, depois de semanas de preparo, o duque e seu séquito passam direto. Diante de mais uma esnobada ultrajante, o chef decide abandonar a culinária para sempre. Então seu filho e a aprendiz têm a ideia de abrir uma casa pública para servir uma comida que fosse diretamente da plantação para a mesa. E onde as pessoas pudessem trazer seu próprio dinheiro e pagar pelo que consumissem.
Fechar os restaurantes foi um ato revanchista, um retorno à era pré-moderna, em que apenas as elites gozavam do acesso a coisas mais refinadas
O resultado é o que a lenda chama de o primeiro restaurante moderno. Pouco depois ocorre a revolução política, mas o filme deixa claro que a revolução econômica veio antes. O comércio e os negócios trouxeram direitos à plebe. As atividades comerciais locais lançaram talentos e os ofereceram de forma democrática potencialmente para todas as pessoas, não importando a classe, a linguagem, a posição social e assim por diante.
Essa história é linda e raramente é contada. É como o nascimento da modernidade está ligado a ambições sem classe social da economia comercial, que rompeu as castas, democratizou os privilégios materiais das elites e criou a possibilidade de progresso operacional genuíno na vida das massas.
A revanche das elites
Tudo isso aponta para uma realidade impressionantemente sombria do nosso tempo: de março de 2020 em diante, governos do mundo todo fecharam os restaurantes em alguns lugares, por até um ano ou quase dois. Nunca fez sentido. A estratificação etária e sanitária da gravidade da covid-19 sempre se concentrou nos mais velhos e menos saudáveis, ainda que tenha havido milhares de pretextos. Mesmo que o vírus pudesse se espalhar nos restaurantes, ele também poderia se espalhar em casa ou em qualquer local onde as pessoas se reúnem. Mesmo assim, toda a ideia de liberdade não é as pessoas poderem decidir se aceitam o risco ou não?
Nada ligado à ciência importa aqui. O que importa é o simbolismo. Fechar os restaurantes foi um ato revanchista, um retorno à era pré-moderna, em que apenas as elites gozavam do acesso a coisas mais refinadas. Foi tudo parte da realização do pedido de 28 de fevereiro de 2020 do New York Times de “ter uma reação medieval” ao vírus. É profundamente emblemático de como os controles do vírus inauguraram um novo feudalismo.
Os governos foram extremamente relutantes em reabri-los, e, quando finalmente o fizeram, em muitas partes do mundo novos protocolos foram instaurados. Havia limitações de lotação, como se os cérebros de galinha da burocracia soubessem exatamente quantas pessoas podem estar num espaço antes que o vírus perceba que tem a chance de infectar. Limites de lotação privilegiam necessariamente os restaurantes grandes em detrimento dos pequenos. Um pequeno café com capacidade para 25 pessoas só podia atender 12, o que não é lucrativo. Mas um grande restaurante de uma rede com capacidade para atender 250 clientes ainda consegue se manter servindo 120.
Os pequenos negócios devem ser defendidos de modo feroz por todo amante da liberdade, dos direitos, da igualdade e da democracia
Outro protocolo estranho exigia que os comensais colocassem máscara ao entrar, mas permitia que ficassem sem máscara enquanto estivessem sentados. Os atendentes, por outro lado, por estarem em pé e andando de um lado para o outro (presume-se que o vírus flutue pelo ar a 1,5 metro do chão), precisavam ficar de máscara. O simbolismo disso é totalmente grotesco: uma imagem perfeita do privilégio versus servidão. É surpreendente que qualquer um tenha tolerado, porque isso vai contra o éthos democratizado do mercado, em que as pessoas com a mesma liberdade e direitos iguais servem umas às outras com respeito mútuo.
O significado revolucionário dos restaurantes
Felizmente, a maior parte dessa bobagem está acabando. Mas é preciso que acabe de vez. Precisamos refletir sobre o éthos profundo por trás dessas regras e o porquê de elas terem sido instituídas. Era uma questão de reagir de forma medieval e, portanto, rejeitar por completo a questão emancipatória da vida comercial pós-feudal. A taverna, o café e o restaurante tiveram um papel enorme na disseminação da ideia dos direitos universais. As pessoas podiam se reunir em espaços públicos respeitáveis. Podiam compartilhar ideias. Podiam desfrutar as delícias que outrora eram reservadas apenas às elites.
Mas, com os lockdowns, as elites voltaram, e, assim, bares, restaurantes e cafés tiveram de ser fechados. Foi necessário para o controle não do vírus, mas do povo, porque “o povo” não merece se sentar a uma mesa. Foi necessário para conter não a disseminação do vírus, mas a disseminação de ideias.
Nunca mais se deve permitir que isso aconteça. Os pequenos negócios — o restaurante local em particular — devem ser defendidos de modo feroz por todo amante da liberdade, dos direitos, da igualdade e da democracia. Existe uma história profunda e profundamente importante aqui. Aqueles que fechariam os restaurantes provavelmente também desejam impossibilitar o significado revolucionário de seu surgimento e sua existência, nos lançando de volta a um passado em que apenas as elites gozam da prática e dos frutos da liberdade.
Jeffrey A. Tucker é fundador e presidente do Instituto Brownstone e autor de milhares de artigos publicados na academia e na imprensa popular em cinco línguas. Liberty or Lockdown é o mais recente deles. Ele também escreveu The Best of Mises. Tucker fala sobre uma série de temas relacionados a economia, tecnologia, filosofia social e cultura
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Brilhante contribuição Jeffrey A. Tucker. Realmente, “Os pequenos negócios — o restaurante local em particular — devem ser defendidos de modo feroz por todo amante da liberdade, dos direitos, da igualdade e da democracia.”
Sensacional. Perfeito. Parabéns. Nunca tinha visto essa questão da peste chinesa e todas as medidas tomadas contra ela por essa ótica. Muito interessante.
Texto perfeito. E o mais importante: as pessoas se deram conta da violência que nossas liberdades foram atropeladas? Das medidas totalmente absurdas e sem lógica a que fomos submetidos? E o pior: permitiremos passar por tudo isso novamente?
Silvia, a considerar a quantidade de BESTAS QUADRADAS que insistem em andar com essas focinheiras patéticas, mesmo não sendo obrigatórias, parece que é muito provável os tiranos repetirem a dose.
Texto impecável.
E ainda haviam restaurantes nos quais se podia frequentar nos sábados, mas nos domingos não. Tem explicação?
E outros que fechavam no horário do almoço, para evitar aglomerações kkkkkk
Sempre considerei o fechamento dos restaurantes e lojas de modo geral uma enorme crueldade para com todos os q dependem deles para sua subsistência. Tanto proprietários quanto empregados. Se olharmos por essa ótica, então, a coisa se torna infinitamente mais odiosa !