Qual sistema político-econômico é adequado para suprir as necessidades humanas? Nos últimos séculos, diversos países tentaram responder à questão e experimentaram diferentes modelos de organização social, como o socialismo, o comunismo, o anarcocapitalismo, o minarquismo e a social-democracia.
Segundo o escritor e jornalista Gabriel de Arruda Castro, mestre em Administração Pública pela Universidade da Pensilvânia e em Política pelo Hillsdale College, nenhum desses sistemas trouxe respostas satisfatórias. E isso ocorre por um simples motivo: estão centrados no campo das ideias, não da vida prática.
Em O Estado Eficaz, livro lançado em 2021 pela Editora Maquinaria, Castro propõe uma solução, que dá, inclusive, título à obra. “O Estado eficaz exige uma estabilidade democrática, um claro sistema de leis e princípios”, explica. “Por outro lado, é preciso haver um mínimo de estrutura para lidar com os casos emergenciais. O Estado pode dar o peixe e ensinar a pescar ao mesmo tempo.”
A seguir, os principais trechos da entrevista.
Como surgiu a ideia de escrever O Estado Eficaz?
O livro nasceu de uma reportagem que escrevi para a Revista Oeste, chamada “A resposta liberal para a desigualdade”. Na época, a pandemia de coronavírus ainda estava no auge. O objetivo era mostrar, a partir de uma perspectiva liberal, o que poderia ser feito para remediar a pobreza e a desigualdade. A Editora Maquinaria teve acesso à reportagem e demonstrou interesse no assunto. Eles me procuraram e pediram que escrevesse um livro sobre essas questões.
Na contramão dos liberais, o senhor argumenta que a desigualdade é um problema. Por quê?
A desigualdade é um problema em pelo menos dois planos. Primeiro: defender uma economia livre não exclui a obrigação moral de ajudar outras pessoas, de agir com compaixão. A desigualdade pode não ser um problema tão grande quanto a pobreza em si, mas ainda é um problema. Há um senso moral na espécie humana que nos compele a ter preocupação com aqueles que têm menos recursos. Segundo: mesmo se considerarmos uma perspectiva mais cínica do liberalismo, preocupada apenas com os próprios interesses, também é relevante resolver o problema da desigualdade. Quando a distância entre os ricos e os pobres é muito grande, as condições que mantêm a sociedade funcionando podem ruir. É do interesse dos liberais que não haja desigualdade tão grande, porque isso pode causar uma cisão na sociedade, que eventualmente será dividida em duas — ricos e pobres.
Por que o socialismo e o comunismo não funcionam?
O erro fundamental desses dois sistemas é a presunção de que as pessoas trabalharão de maneira empenhada em prol de um regime no qual não existe a propriedade privada. Pesquisas científicas mostram o contrário: os seres humanos trabalham melhor em regimes nos quais há propriedade privada. Há mais cuidado, empenho e dedicação no trabalho quando trabalhamos por nossa família, não por algo abstrato. Na União Soviética, cujo território era gigantesco, por que um morador da Sibéria se preocuparia com um cidadão de Moscou? Por que ambos trabalhariam para o sucesso do regime socialista? Aqui nos Estados Unidos [Gabriel mora em Lawrence, Kansas], há praticamente as condições de vida que os socialistas sonharam algum dia em fornecer à população, mas nunca conseguiram.
Há exemplos práticos de como os cidadãos norte-americanos conseguem ter amplo acesso a bens e serviços?
Nos Estados Unidos, existem as famosas lojas de US$ 1, que, em virtude da inflação, tornaram-se lojas de US$ 1,25. É possível comprar quase tudo nesses estabelecimentos: comida, utensílios para casa, material de escritório, brinquedos, roupas. No Facebook, é comum os norte-americanos doarem televisões e camas. Sempre há alguém doando alguma coisa. Isso só é possível porque existe um superávit. Os Estados Unidos e os países desenvolvidos produzem tanto que os bens e serviços se tornaram mais baratos. Em razão dessa abundância, as pessoas simplesmente doam seus pertences. O sistema de livre mercado é o que mais perto chegou de fornecer à maioria da população acesso a bens e serviços. No socialismo, ocorre o contrário: a socialização da escassez.
O que é o anarcocapitalismo e por que o senhor argumenta que ele também não tem as melhores respostas para as necessidades humanas?
O problema do anarcocapitalismo é de ordem prática. A ausência completa do Estado deixa o poder econômico como o único existente. E o poder econômico não traz, necessariamente, uma grandeza moral. É possível que, nesse sistema, as pessoas mais ricas sejam as mais desprezíveis moralmente. Então, se o Estado deixasse de existir, teríamos Elon Musk, Bill Gates e Jeff Bezos como as pessoas mais ricas. Mas uma parte considerável da população não considera que essas pessoas sejam as mais sábias. No anarcocapitalismo, como o dinheiro é o poder soberano, essas pessoas teriam um poder desproporcional. Não haveria nenhum freio. Tudo passa por contratos individuais. Não existe uma terceira força, imparcial, para tomar a decisão sobre os contratos. Ainda que haja um juiz privado, alguém envolvido no acordo poderá discordar da decisão. Eventualmente, a força resolverá a questão.
Em linhas gerais, o minarquismo é um regime que defende a existência de um Estado mínimo, que ofereça basicamente justiça e segurança pública. O sistema também foi objeto de críticas em sua obra. Por quê?
Dos regimes considerados não desejáveis, o minarquismo é o melhor. Mas esse sistema deixa de reconhecer o fato de que nem toda riqueza reflete o mérito. Atualmente, Elon Musk tem R$ 1 trilhão. Ele é uma pessoa acima da média em vários aspectos. No entanto, R$ 1 trilhão é mil vezes maior que o dinheiro de apenas um bilionário brasileiro. Por sua vez, o dinheiro desse bilionário brasileiro é mil vezes maior que o patrimônio dos cidadãos de classe média alta. É muita desproporção. No capitalismo sem freios, há algo que não reflete a natureza do esforço humano. Antigamente, uma pessoa mais rica talvez fosse aquela que, ao longo da História, tenha conseguido conquistar mais terras por sua bravura, por seu trabalho, por seu empenho. A riqueza ainda era ligada a coisas físicas, que poderiam ser produzidas com as mãos. A partir da Revolução Industrial e do desenvolvimento tecnológico, a riqueza se descolou do mérito imediato daquilo que os cidadãos produzem. Então, é preciso reconhecer que pessoas como Elon Musk merecem ser ricas, mas isso não significa que 100% de sua produção é explicada pelo mérito. Há muitas pessoas que são pobres por razões que não estão sob seu controle. O empenho e o trabalho explicam muitas coisas — não tudo. É desejável que existam alguns mecanismos para ajudar temporariamente as pessoas que tiveram problemas na vida.
“O Brasil caminha na direção de um Estado que promete muito, mas não cumpre o básico”
O que o Estado poderia fazer para resolver esses problemas?
É preciso criar maneiras de não permitir que os mais ricos se apropriem do Estado. Os liberais e os conservadores sempre defenderam as grandes empresas. No entanto, perceberam que, em alguns casos, nem sempre os interesses dessas companhias se alinham com os da sociedade. Empresas como a Disney e a Amazon, por exemplo, adotam bandeiras “progressistas” no campo da sexualidade, da agenda LGBT. Talvez seja desejável que o Estado tenha algumas ferramentas para se defender de tentativas de apropriação ou de intrusão por parte das empresas.
Na mesma linha, o senhor explica que a social-democracia não funciona. E diz ainda que o Brasil é um exemplo de país que adere a esse sistema. Quais são os problemas desse modelo de Estado?
Esse sistema tenta corrigir todos os males. O Estado presume que não existam problemas que não possam ser resolvidos com programas sociais. Desde a Constituição Federal de 1988, o Brasil caminhou demasiadamente na direção de um Estado que promete muito, mas não cumpre nem o básico. Os burocratas presumem que sabem resolver todos os problemas. Também há a questão das consequências não desejadas. Quando o Estado cria um programa social, existem consequências que não foram consideradas pelos políticos. Na década de 1950, nos Estados Unidos, havia um programa social que acabava por incentivar o divórcio, porque a mulher recebia muito mais recursos do governo quando era divorciada. O Estado não desejava isso, mas aconteceu. Houve uma geração de jovens que cresceram sem pai em casa, o que trouxe problemas muito maiores. A pobreza é mais comum em lares onde não há pai nem mãe liderando.
O senhor propõe uma solução: o Estado eficaz. Como funcionaria esse tipo de organização social?
Minha proposta é ter um Estado que reconheça a liberdade econômica como o melhor sistema possível. É o sistema que mais se adéqua à natureza humana. Os cidadãos querem produzir. Antes de o Estado existir, as pessoas já plantavam, caçavam e pescavam. Elas sabiam da necessidade do trabalho, do empenho. O ser humano sabe que precisa tomar conta de sua própria família. Então, o Estado não pode ignorar isso e resolver ser o provedor da sociedade.
Na prática, quais medidas deveriam ser adotadas?
O Estado eficaz exige uma estabilidade democrática, um claro sistema de leis e princípios. Isso precisa ser compreendido e aceito pela população. A Constituição Federal brasileira é uma das mais longas do mundo. Os cidadãos não sabem exatamente quais são as leis. Muitas normas são conflitantes entre si. Portanto, o Estado precisa focalizar apenas nas tarefas essenciais. Por outro lado, é preciso haver um mínimo de estrutura para lidar com os casos emergenciais. Algumas pessoas perdem o emprego, outras sofrem um acidente, outras tiveram suas famílias destruídas e precisaram ir para um abrigo. O Estado não pode fechar os olhos para isso. Um país precisa ser próspero, para que o Estado consiga manter uma sociedade saudável e em funcionamento. O Estado pode dar o peixe e ensinar a pescar ao mesmo tempo.
O que os cidadãos podem fazer para melhorar suas vidas sem recorrer ao Estado?
Não é possível ter liberdade sem responsabilidade. Para melhorar a sociedade e não permitir intromissões do Estado, os liberais e os conservadores precisam ser melhores com a própria família. Um país com pessoas mais responsáveis fatalmente tem mais liberdade. Os governos não terão oportunidades de intervir. É preciso haver indivíduos responsáveis, famílias fortes e comunidades locais sólidas. É necessário agir nas próprias comunidades. Quem são as pessoas do bairro que precisam de ajuda? Quem são as pessoas dessa região que não conhecem com nitidez os problemas do país? Elas que precisam de ajuda. A internet criou a ilusão de que podemos apenas nos preocupar com os problemas “maiores” — a eleição presidencial, as discussões no Congresso…
Apesar de descrever alguns dos problemas enfrentados pela humanidade, o senhor destaca que o mundo está melhorando. Em quais aspectos estamos progredindo?
Há uma série de dados mostrando que o mundo se tornou um lugar mais próspero nos últimos cem anos. Há melhora na renda per capita, na expectativa de vida, nos índices de pobreza. A explicação mais evidente para isso é que a liberdade de mercado trouxe resultados incontestáveis. Até a Revolução Industrial, a maior parte das pessoas vivia nas áreas rurais, nas fazendas. Havia uma certa escassez de recursos, justamente porque a agricultura é uma atividade que envolve incertezas. Se não chover a quantidade esperada em um ano, a colheita é dificultada. Até o século 20, na Irlanda, houve uma fome gigantesca em razão de fatores climáticos inesperados. Depois da Revolução Industrial, construímos um superávit. Produzimos mais do que podemos consumir. O capitalismo criou um “problema”: há mais pessoas obesas do que pessoas subnutridas. É algo inédito na História.
Leia também “Acredite: o mundo está melhorando”
Ele está corretíssimo, o Brasil quer fazer coisas inalcançáveis, a liberdade é o oxigênio da produção
É exatamente isso, Erasmo.
Abraço!
Muito boa a entrevista. Parabéns. Conhecer novos pontos de vista é sempre bom. Só não compartilho do entusiasmo do entrevistado ao dizer que o mundo melhorou nos últimos 100 anos. Para mim, piorou.
Valeu, Robson!
Em certos pontos, a vida realmente piorou. Sigamos otimistas, no entanto. =)
Vale sempre ler o Gabriel Castro. Vou tentar encontrar o livro em versão eletrônica ou física. Muito boa a entrevista!
Bom saber que você gostou, Adezio.
Você consegue encontrar o livro (em formato físico ou digital) na Amazon.
Abraço!
Parabéns pela entrevista. Traz uma pílula de curiosidade para seler o livro.
Valeu, Luiz!
Bom saber que você gostou.
Abraço!
Gostei da entrevista. Provavelmente lerei o livro por não concordar com os argumentos referentes ao minarquismo, que ao meu ver seria o ideal a ser perseguido.
Você certamente gostará do livro, Keiner. O Gabriel é extremamente didático.
Obrigado pelo comentário.
Abraço!
O autor critica a social democracia, mas monta um argumento muito na linha de um social democrata, um pouco mais moderado.
O que mais me incomodou foi o assunto desigualdade.
Não entendo como podem argumentar que muitos ricos são problemas em si, se não estão monopolizando ou cartelizando o mercado.
O Musk ficou rico porque ofereceu produtos e serviços que os outros quiseram comprar, com mais qualidade e produtividade. Ninguém foi obrigado a deixa-lo rico. Ninguém foi prejudicado por ele ter se tornado rico. Muito pelo contrário, a super riqueza dele tornou a vida de muita gente melhor, e não apenas funcionários e fornecedores que prosperaram.
Problemático pra mim é o Bill Gates, o Zuckerberg, o Soros, que usam sua posição de riqueza para manipular a vida dos outros para a ideologia que defendem.
Querem enquadrar a riqueza puramente na questão do mérito é sinal de inveja. É querer tomar do outro porque, supostamente, teve a sorte na vida que você não teve. Não tem nada de bom que sai daí.
Aliás, tem uma justificativa evolutiva para a aversão inata a desigualdade. O ser humano tem uma tendência natural para oprimir e tirar proveito, assim como tem uma tendência natural para cuidar e ajudar. Do ancestral comum que tivemos com os chimpanzés, há cerca de 6 milhões de anos, até os homo-sapiens das cavernas, pré-agricultura, a história mostra que a pequena tribo que resultou no homo sapiens conseguiu controlar a propensão de algum macho-alfa mandar na porra toda na força, matando ou subjugando os competidores, ao contrário da tirania instável do mundo dos chimpanzés.
Ou seja, são 6 milhões de anos evoluindo para suprimir a opressão do mais forte.
A história da revolução agrícola até a era axial, com o surgimento das grandes religiões monoteístas, que dominam a cultura até hoje, mostra um aumento gradativo da força do macho alfa subjugando os outros pela força. Foi há pouco mais de 2 mil anos que essa escalada inverteu a curva e a violência foi diminuindo até chegar aos níveis relativamente baixos que temos hoje.
Os motivos que levaram esse instinto arraigado contra a desigualdade, que tem uma razão evolutiva, produzem mais mal do que bem no mundo atual, onde tudo está interligado, a riqueza acaba distribuída em rede, os mais ricos acabam, indiretamente, criando riqueza generalizada e não tem mais o poder de oprimir e subjugar. Um mundo sem milionários, bilionários e ate trilionários é um lugar menos próspero para todos. Controlar a desigualdade pode até responder a um instinto arraigado, mas ele é moralmente corrosivo, pois está ligado a inveja e ressentimento, produz infelicidade e estagnação e, no agregado, é um tiro no pé, pois priva a humanidade de mais prosperidade, produtos e serviços inovadores.
Olá, Iury. Seus argumentos são interessantes.
No livro, o Gabriel argumenta que uma desigualdade abissal tem capacidade para destruir o tecido social, a harmonia entre os cidadãos. Isso está mais bem detalhado na obra, vale a pena conferir.
Obrigado pelo comentário.
Abraço!
Ah, Daniel, Hayek é outro nível.
Me desculpem o que possa parecer, mas a mim o artigo é puro blá-blá-blá. Começa um assunto e não chega a uma conclusão convincente ao menos para que nos interessamos mais no autor. Aliás, essa falta de conclusão parece vir dele próprio. Digo com mais convicção, pois estou lendo um clássico: “Os erros fatais do Socialismo” de F. A. Hayek e recomendo pela apresentação consistente e fundada em referências bibliográficas incontestáveis.
VC JÁ LEU O LIVRO?
É uma entrevista, não um tratado.
Olá, Daniel.
Na verdade, trata-se de uma entrevista, não de um artigo. A intenção é ouvir aquilo que o autor tem a dizer sobre o livro. O Gabriel é um excelente escritor e jornalista.
O livro que o senhor está lendo, o do Hayek, é muito bom. Já o li. Quem sabe, em outra ocasião, não publico uma resenha sobre a obra?
Abraço!
Opa! Grato pela atenção e pela sugestão para entender melhor o autor. Uma resenha sobre Hayek será estupendo! Saudações, Edilson Salgueiro!
Imagine, Daniel. Conte conosco.
Em breve, lanço algumas publicações sobre o Hayek. =)
Abraço!