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Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock
Edição 111

O retrato do atraso

Aquela meia dúzia de pessoas que compareceram à Praça Charles Miller no 1° de Maio, cooptadas pelo incentivo usual do pão com mortadela e cachê, foi contemplada pelo espetáculo do atraso

Ubiratan Jorge Iorio
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Quem acompanhou, mesmo apenas durante poucos segundos — mas que pareciam uma eternidade —, as cenas no último 1º de Maio na Praça Charles Miller teve a nítida impressão de que o tempo havia recuado cem anos. Aquela meia dúzia de três ou quatro pessoas, iludidas e cooptadas pelo incentivo usual do pentacombo, composto de pão, mortadela, groselha, ônibus e cachê, foi contemplada com um espetáculo de atraso e demagogia, um verdadeiro atestado de caducidade de ideias proporcionado pelas “falas” despejadas aos berros do palco ali armado. A conclusão é que, para tais criaturas rupestres, os erros do passado não servem de aprendizado para que não sejam repetidos, mas para que sejam considerados acertos, ou talvez que, para quem vive em uma era remota, o passado seja muito curto. É espantoso que ainda exista gente que se iluda com aquilo tudo.

Contos, narrativas, fábulas e lendas costumam exercer fascínio sobre as pessoas, porque aguçam sentimentos implícitos ou explícitos de romantismo, heroísmo, bravura, covardia, bondade, maldade, medo, terror, altruísmo, ambição e muitos outros, bons ou maus, inerentes à condição humana. Quantas mulheres quando crianças não se encantaram com Cinderela e Chapeuzinho Vermelho e se viram dançando a noite inteira com um príncipe ou salvando a vovó do lobo? E quantos homens quando meninos não se imaginaram no lugar de Hércules e Teseu, executando uma a uma as 12 façanhas ou desferindo golpes mortais no Minotauro?

O mundo imaginário retrata de certa forma a cultura, os usos, os costumes, a história e as crenças de povos e nações. As lendas modernas, presentes no mundo inteiro, são passadas de geração em geração e, assim sendo, sofrem alterações “modernizantes”, que circulam nas notícias da mídia e nas redes sociais, mas também nas universidades, principalmente na área de humanidades, especialmente na de economia.

Verdades respaldadas pela ciência

O turismo em Nárnia atrai indivíduos, grupos e até sociedades inteiras e provoca alterações de comportamento que deixam traços na personalidade das pessoas durante toda a vida, causando diversos efeitos, que variam de acordo com a idade e a cultura e que, sem dúvida, afetam o psicológico dos indivíduos, de maneira semelhante às superstições. Uma criança que cresceu com medo de dormir com os pés fora da cama por ouvir a lenda do monstro que segura pés descobertos ou que ouviu seus avós supersticiosos recomendarem que jamais passasse embaixo de uma escada porque isso dá azar provavelmente passará a vida inteira cobrindo as pernas antes de dormir e desviando-se de todas as escadas que encontrar pela frente.

Mas as lendas mais perigosas são as que são apresentadas não como narrativas fictícias, mas como verdades respaldadas pela ciência, com aparência atraente, porém repletas de buracos ilógicos — e, por isso, curiosamente fascinantes — ou de concatenações ambíguas, como certas teorias conspiratórias, cheias de mistérios e carentes de informações, dando sempre margem a que aproveitadores — sejam acadêmicos, sejam jornalistas ou políticos — preencham as “lacunas” da forma que mais convém aos seus propósitos.

A política e a economia estão repletas de lendas e superstições. Uma das mais conhecidas e arraigadas, como se viu no Pacaembu, é que os sindicatos defendem trabalhadores.

As faces do sindicalismo

A história do século 20 registra que o chamado movimento sindical pode ser empregado politicamente como tática revolucionária para implantar o socialismo, mediante ações diretas, firmes e até violentas se for preciso, para destruir o sistema capitalista. Valores como liberdade, democracia, contenção do poder e Estado de Direito, por serem meras bobagens burguesas, devem ser postos de lado. O que se deve buscar é a glória eterna, por meio do acirramento das lutas de classes, da convulsão social e da aniquilação da burguesia, que inclui a classe média — aquela que, segundo um conhecido político, comete o pecado de ter mais de um aparelho de televisão em casa.

Infelizmente, essa verborragia esquizofrênica está longe de ter sido extinta. A diferença é que, no passado, sustentou abertamente e às claras o bolchevismo russo, o fascismo italiano, o nazismo alemão, o maoismo chinês e outros totalitarismos. Hoje, “modernizou-se”, escondeu as foices e assumiu ares intelectuais mais sofisticados, mas continua sendo a mesma lenda a destilar o seu veneno. Exagero? Basta olhar para o que está acontecendo na América Latina.

A segunda face do sindicalismo apareceu como programa de organização econômica da sociedade. Não apela para que a propriedade privada dos meios de produção seja extinta e transferida para o Estado, mas para que passe a ser dos trabalhadores setoriais: petróleo para os petroleiros, bancos para os bancários, estradas de ferro para os ferroviários etc. É uma narrativa perigosa, porque suas aparentes boas intenções fizeram, por muitas décadas, com que muitos trabalhadores, ingenuamente, a considerassem como uma forma justa de melhorar as suas condições de vida. A popularidade que o sindicalismo chegou a alcançar se manifestou em várias políticas econômicas adotadas no mundo desde antes da Segunda Guerra Mundial. A essência dessas políticas sempre foi conceder privilégios a grupos minoritários, o que resultou invariavelmente em diminuição da riqueza e da renda da maioria em benefício dos donos dos sindicatos.

Os sindicatos foram desvirtuados, transformando-se de representantes legítimos dos trabalhadores em devoradores da sua renda

O modelo de organização sindical vigente no Brasil, parcialmente reformulado em 2017, tem raízes no Estado Novo, foi insculpido na Constituição de 1937 e regulamentado pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) em 1943, um documento de inspiração fascista que tinha o objetivo explícito de fortalecer os sindicatos para que dessem sustentação ao populismo de Vargas, apelando sempre para os interesses dos “trabalhadores do Brasil”, porém ignorando as soluções para suas reais necessidades.

Era das Trevas

Desde então, partidos que se diziam e ainda dizem representar os trabalhadores brotaram como tiririca em jardim, começando pelo PTB de Getúlio, passando pelo PDT de Brizola e chegando ao PT — que nasceu dentro de um sindicato. Não foi por acaso, durante a Era das Trevas que se abateu sobre o país entre 2003 e 2016, tornou-se sem dúvida um grande negócio criar um sindicato. Entre 2010 e 2017, mais de 250 sindicatos foram criados em média por ano. O número dos que operavam no país era de 15 mil, com mais outros 2 mil aguardando registro. Só a CUT controlava 2.300, a Força Sindical 1.600 e a UGT 1.250. Todos com discursos de defesa dos trabalhadores, mas que, na realidade, se empenhavam em adquirir influência política para obter privilégios, prebendas e regalias do Estado, atuando como rent-seekers (“rentistas”, ou “buscadores de rendimentos”), para utilizarmos a nomenclatura econômica.

Uma vez no poder, o partido não decepcionou as suas bases: instalou no país uma república sindicalista, fortalecendo um modelo de relação trabalhista que era uma autêntica caixa-preta, em que os sindicatos, apesar de financiados com recursos públicos, não eram sujeitos à prestação de contas nem, portanto, à qualquer comprovação de transparência. A estrovenga dava margem a fraudes, em que algumas entidades eram utilizadas somente como meio para que seus dirigentes se perpetuassem em cargos com altos salários, mantendo sua remuneração original sem a contrapartida de precisarem pegar no batente e sem possibilidade legal de serem demitidos. Outros entraram para a carreira política vendendo ilusões e fazendo da greve uma regra e não um recurso a ser recorrido extraordinariamente. Sustentados por uma absurda receita compulsoriamente criada e garantida pelo Estado, os sindicatos foram desvirtuados, transformando-se de representantes legítimos dos trabalhadores em devoradores da sua renda.

A gandaia era — e ainda é — colossal. Antes das mudanças promovidas pela reforma de 2017, havia 4 milhões de processos na Justiça Trabalhista brasileira (por sinal, uma jabuticaba que precisa ser extinta), número que caiu para 1 milhão. Segundo o parecer do relator da reforma no Senado, o Brasil concentraria 98% das ações trabalhistas no mundo — ignorando o bom senso, que recomenda só ingressar no Judiciário em última instância, depois de esgotados acordos, mediações e arbitragens. Os dois maiores passivos das empresas brasileiras são o tributário e o trabalhista. Esse furor por “direitos”, que produz a incontinência judiciária, tem efeitos óbvios: espanta investimentos importantes, acarreta prejuízos imensos à competitividade e encarece o custo de contratar e de demitir mão de obra, enfraquecendo o emprego.

O caminho da modernidade

Cabe lembrar que, antes da reforma de 2017, embora ninguém fosse obrigado a se filiar a um sindicato, todos os trabalhadores com carteira assinada tinham de pagar anualmente, mediante desconto em folha, a Contribuição Social Sindical, chamada popularmente de imposto sindical, equivalente a um dia de trabalho, ao sindicato de sua categoria, sentindo-se ou não representados por este. Felizmente essa orgia acabou, tanto que as entidades que dizem representar os trabalhadores (centrais, federações e confederações) viram suas receitas caírem de mais de R$ 2 bilhões, em 2017, para pouco mais de R$ 21 milhões, em 2021.

A reforma aprovada no governo do presidente Michel Temer foi um avanço no caminho da modernidade e sua importância pode ser comparada à reforma previdenciária do atual governo, ressaltando-se que ambas foram parciais, ou seja, que poderiam ter sido mais profundas. As mudanças de 2017 sem dúvida arejaram as relações trabalhistas e removeram boa parte da poeira acumulada durante décadas, embaladas por lendas como a do monstro que atacava pernas descobertas, uma boa comparação com a ilusão de que os empregados não sindicalizados teriam não apenas as pernas, mas todo o seu corpo devorado pelos patrões.

Para uma boa indicação de que a reforma trabalhista, embora carecendo de aprofundamentos, foi positiva, basta observar quem sempre a criticou e quem mais está hoje tentando argumentar contra as mudanças que promoveu. Quem? A saber, os que de fato perderam receitas, rendas, regalias, influência política e votos com ela: os sindicalistas rupestres, atingidos pelo esvaziamento de seu movimento, os políticos que passaram a vida espalhando uma fábula e os profissionais, tais como advogados e contadores, que, embora honestamente, obtinham rendas com a judicialização exagerada anterior à reforma.

O trabalhismo é um embuste, um conto do vigário. Capital e trabalho não são antagônicos, são complementares. É duro ainda ter de desenhar isso em 2022.


Ubiratan Jorge Iorio é economista, professor e escritor. Instagram: @ubiratanjorgeiorio

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14 comentários
  1. Sarkis Arakelian
    Sarkis Arakelian

    caro, sou contador tenho 83 anos, tenho escritório de contabilidade a 55 anos, continuo trabalhando, dando um duro desgraçado, agora, falar que contadores lucraram com o maldito imposto sindical, o senhor cometeu uma TREMENDA E IMPERDOÁVEL INJUSTIÇA, REDIMI-SE, PEÇA PERDÃO, FICO NO AGUARDO.

  2. Fabio Augusto Boemer Barile
    Fabio Augusto Boemer Barile

    Esse artigo é histórico, disseca com precisão e analisa de forma incisiva o atraso em que vivemos mergulhados pode décadas.

  3. Luiz Antonio Guimarães Brondi
    Luiz Antonio Guimarães Brondi

    Òtimo artigo para se ler, reler, relembrar, tirar nossas conclusões, para que jamais deixemos de ser iludidos por pessoas que nos trouxeram tantos problemas e cometeram e tentam continuar cometendo os erros do passado.

  4. Vanessa Días da Silva
    Vanessa Días da Silva

    Melhor artigo dessa edição. Bravo!

  5. Cristiano Sousa de Araujo
    Cristiano Sousa de Araujo

    Este sub mundo dos sindicatos criados e cultivados pela filosofia trabalhista quase devorou o Brasil quando assumiu o poder . Eles chegaram com muita sede ao pode e devastaram as estatais e viraram milionários . Agiram como ratos roendo tudo . Precisamos acabar com todos os sindiatos para o bem do Brasil moderno

  6. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Bota esses sindicalistas todos no Xadrez

  7. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    Ser sindicalizado é um direito e uma opção de cada trabalhador, nunca uma obrigação.

  8. Luiz Mattua
    Luiz Mattua

    Estive recentemente no centro oeste dos EUA. Muitas lojas contratando. US$ 18 / hora.
    Lá você trabalha quanto quer e recebe por isso. Férias? A combinar, mas se vc. não trabalha, não ganha. Quem precisa reforçar o orçamento, trabalha mais horas, quem está estudando ou quer ter mais tempo com a família, trabalha menos e ganha menos, combinado com o patrão. FGTS, multa rescisória, IRRF, imposto sindical? Nada disso. Pague o seu seguro social e se aposente contando com o que você pagou, recebendo de uma vez ou em parcelas menores. Acabou a grana, um abraço. O governo não vai lhe sustentar durante 60 anos tendo pagado 3 como se faz por aqui. Quer ganhar mais? Compre ações, abra um negócio, assuma riscos. Claro que lá, numa economia estável, com regras claras, é muito mais fácil fazer e planejar seu futuro. Por aqui somos um soviete travestido de capitalismo.

  9. Edson Carlos de Almeida
    Edson Carlos de Almeida

    E por essa e outras, que os petralhas falam tanto em revogar a reforma trabalhista .

  10. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    É sempre um alento ler os textos esclarecedores do Prof. Ubiratan Jorge.

  11. Elaine Reimberg
    Elaine Reimberg

    Sr. Ubiratan, sou leitora da Oeste e acompanho aqui as notícias com muito gosto.
    Não imagino de onde o senhor ouviu ou viu, quando fala que os contadores lucravam com a questão dos sindicatos. Os contadores em geral, dos que sei, nunca, nunca ganharam nada com isso, a não ser trabalho. Para nós foi a melhor coisa que aconteceu, o fim de diversas contribuições. Nunca ganhamos com isso, seria prudente que o senhor conversasse com seu contador, se tiver um, para saber a realidade dos fatos.
    O senhor está sendo injusto ao informar em sua matéria que os contadores lucravam com isso.
    Trabalho a 33 anos num escritório de contabilidade com meu marido e uma equipe que adorou e aplaudiu quando as contribuições sindicais caíram. Para nós foi um alívio. Nossos clientes ficaram muito felizes. Pode ser que contador de sindicato ganhasse algo, mas contador de empresa nunca ganhou um centavo com isso. Advogado judicializa, o pobre do contador só se ferra e nunca ganhou nada a mais por isso.

  12. Evilásio José Nogueira Cerqueira
    Evilásio José Nogueira Cerqueira

    Parabéns Iorio. Trabalhei por mais de 25 anos no Banco do Brasil e sempre tive ojeriza a sindicado. Quando o Banco apareceu em 1986, com o tal do PDV – Plano de
    Demissão Voluntária, que de voluntária mesma não tinha nada. Nessa época os sindicatos sumiram, não se sabe onde eles se esconderam.

  13. Ayrton Pisco
    Ayrton Pisco

    É uma verdade incontestável que a extinção pura e simples dos direitos trabalhistas, incluindo 13º e férias, além de todo o resto, levaria imediatamente as taxas de desemprego a algo próximo ou igual a zero. É matemático.
    Quanto maiores os “direitos” do trabalhador, menor a empregabilidade.
    As negociações bilaterais, com contratos garantidos pela justiça comum, respeitados os princípios básicos da dignidade e segurança humana, são a melhor solução.

  14. Júlio Rodrigues Neto
    Júlio Rodrigues Neto

    Tudo indica que chapeuzinho vermelho vai ser engolida pelo LOBO MAU

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