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Washington Olivetto | Foto: Robson Fernandes/Estadão Conteúdo/AE
Edição 120

O crime de Washington Olivetto

Seu texto foi um oásis no deserto mortal da mídia politicamente responsável, um purgatório de caras amarradas, azedas e intolerantes, prontas o tempo todo a castigar, proibir e excomungar

J. R. Guzzo
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Washington Olivetto, um dos poucos publicitários brasileiros capazes de escrever um texto que supere os limites da composição infantil, ou possivelmente o único, publicou há pouco um artigo particularmente feliz sobre o Rio de Janeiro — simpático no todo e em partes, bem escrito, bem organizado, inteligente, caloroso e dotado de vida humana, qualidade praticamente impossível de encontrar no Saara implacável que é a imprensa brasileira de hoje. É o tipo da coisa que o sujeito lê, se distrai e diz: “Poxa, que legal este artigo. Gostei de ler”. É, também, o tipo de coisa que provoca acessos de neurastenia em primeiríssimo grau na elitezinha intelectual um quarto-de-boca do Rio, mesquinha, subdesenvolvida e infeliz. O artigo de Washington, um relato muito bem armado sobre as virtudes do Rio, essas que fazem milhões de pessoas continuarem se encantando com a vida carioca, foi considerado um crime inafiançável pela Inquisição local. Por quê? Porque não falava em miséria, crime e desgraça — e não falar disso, no sistema mental dos intelectuais de esquerda do Rio, não é uma opção válida. No caso, gerou uma tempestade de indignação histérica, despeito em estado puro e, mais que tudo, de pura e simples estupidez.

É gente que lembra aqueles frades sinistros da polícia religiosa da Igreja Católica, para quem qualquer tipo de coisa graciosa era pecado mortal

Washington descreve em seu artigo uma visita de seu filho e de quatro amigos ao Rio de Janeiro, durante uma semana — uma coleção de programinhas gostosos, inocentes e só disponíveis no Rio. Foram recebidos, ao chegar, com as empadinhas de camarão do “Caranguejo”, de Copacabana. Andaram a pé pelo Arpoador, Ipanema e Leblon. Jantaram com amigos pessoais como o cantor Jorge Ben. Ficaram oito horas na feijoada da Portela. Jantaram no “Margutta”, no “Satyricon” e no “Sud”. Foram ao Museu de Arte Moderna, ao Corcovado e ao Pão de Açúcar. Jogaram frescobol, caíram n’água, almoçaram num rodízio em Botafogo. Foram ao Jardim Botânico, ao Museu do Futebol do Maracanã e ao “Bracarense”. Ouviram samba no Beco do Rato. Passaram pelo Copa. Viram televisão em casa — e mais do mesmo. Foi isso, então? Foi isso. Onde estão, nesse caso, os crimes que cometeram em seu passeio — e cuja descrição detonou chiliques de ódio tão intransigentes e tão esquisitos? É simples. Na lavagem cerebral de alta voltagem e baixa qualidade em que vivem hoje as classes culturais do Rio (e do resto do Brasil), o sujeito está proibido de olhar para a estátua do Cristo Redentor e dizer: “Isso aqui é a estátua do Cristo Redentor”. Tem de dizer, sob pena de cometer infração social de natureza grave: “Isso aqui é uma agressão do homem branco, do colonialismo cultural e da masculinidade tóxica contra o homem pobre, discriminado e reprimido pela polícia no Rio de Janeiro”. O artigo de Washington não disse. Pena de morte para ele.

Artigo do Washington Olivetto | Foto: Reprodução

É impossível, nos dias de intensa cretinice impostos ao Brasil pela bolha semi-intelectual que se deu o direito de pensar por “toda a sociedade”, ler a imprensa brasileira e ser levado a dar um sorriso. O texto de Washington fez isso — foi um oásis no deserto mortal da mídia politicamente responsável, um purgatório de caras amarradas, azedas e intolerantes, prontas o tempo todo a castigar, proibir e excomungar. É gente que lembra aqueles frades sinistros da polícia religiosa da Igreja Católica, para quem qualquer tipo de coisa graciosa era pecado mortal. Tem pouca ou nenhuma experiência em comportamentos afáveis; seus circuitos cerebrais só operam em modo de calamidade. Você quer escrever sobre Rio de Janeiro? Então você é obrigado a escrever sobre a miséria do morro, da favela e do trem da Central. Tem de denunciar o genocídio, o autoritarismo e o descalabro do governo Bolsonaro. Tem de falar do racismo sistêmico. Tem de falar dos “33 milhões” que passam “fome”. Tem de falar da “letalidade policial”. Tem de falar da violência contra as mulheres. Tem de falar dos “atos antidemocráticos” que deixam o STF à beira de uma crise nervosa. Se não fizer isso você é um elitista de direita, inimigo do povo e genocida de pobre.

Que diabo uma empadinha de camarão teria a ver com algum dever moral, social ou “político”? É óbvio, até para uma criança com 10 anos de idade, que não tem nada a ver. Mas para a intelectualidade policial do Rio tem. Por sua reação ao texto de Washington a esquerda carioca parece indicar que deveriam ser declaradas ilegais no Rio de Janeiro, e extintas, quaisquer atividades que não sejam diretamente ligadas a algum horror — do barzinho do Leblon ao pernil do Bracarense. É terminantemente proibido, da mesma forma, fazer sucesso no trabalho, ganhar dinheiro e ter um apartamento na Avenida Vieira Souto. A propósito disso, um humorista da esquerda local (em cuja opinião, aliás, Washington nem poderia escrever na imprensa do Rio, porque estaria ocupando o lugar de “jornalistas demitidos”) disse que o autor deveria doar para a ex-babá de seu filho o apartamento que tem com vista para o mar. Washington escreveu que a moça, moradora do Rio, é parte da família — e o humorista acha que ela deveria entrar na justiça e pedir o apartamento para si mesma. É um desses momentos em que o ódio, a inveja e o ressentimento acabam ficando menores que a idiotice. O cidadão pensou que estava sendo irônico. Acabou, apenas, sendo primitivo.

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