“The worst is not
So long as we can say
‘This is the worst’”
(Shakespeare, King Lear, IV, 1)
No século 20, alguns dos maiores escritores e intelectuais europeus chamaram a atenção para a estreita relação entre linguagem e totalitarismo. Impressionara-os particularmente a criação, por parte de regimes totalitários como o comunista e o nazista, de uma “novilíngua” massificada pela propaganda, devotada a ocultar vastas porções da realidade, impedindo-as de serem expressas e — uma vez que a língua serve também à autocomunicação — até mesmo concebidas.
Em relação ao tema, o nome mais conhecido é obviamente o de George Orwell, que, no clássico 1984, cunhou a palavra “novilíngua” (newspeak) para se referir à linguagem totalitária: “A novilíngua foi concebida não para ampliar, mas para diminuir o alcance do pensamento”. Mas, além do escritor inglês, poderíamos citar vários outros autores. Por ora, fiquemos apenas com um deles, o economista austríaco Friedrich Hayek, que resumiu a questão em O Caminho da Servidão (obra, aliás, resenhada por Orwell aproximadamente na mesma época em que concluía 1984): “Poucos aspectos dos regimes totalitários despertam tanta confusão no observador superficial e são, ao mesmo tempo, tão característicos do clima intelectual desses sistemas, como a completa perversão da linguagem, a mudança de sentido das palavras que expressam os ideais dos novos regimes”.
Um dos modos característicos dessa perversão da linguagem é o uso de eufemismos para mascarar a violência política perpetrada pelos representantes desses regimes. O emprego de eufemismos é particularmente notório no desenrolar de processos genocidas, nos quais as práticas mais monstruosas são descritas numa linguagem burocrática, inócua e impessoal, cuja frieza ressalta ainda mais, por contraste, todo o horror subjacente. Como escreveu a psicanalista francesa Régine Waintrater numa obra de referência sobre o tema: “Todos os genocídios estão sujeitos a esse empreendimento de eufemização”.
No que diz respeito ao nazismo, o fenômeno foi notado, entre outros, por Karl Kraus e Victor Klemperer, dois dos maiores conhecedores da língua alemã e do processo de sua corrupção política. Em A Terceira Noite de Walpurgis, ensaio satírico concebido em resposta à ascensão nazista ao poder, Kraus esmiúça as aberrações linguísticas introduzidas no debate público pela propaganda nazista. O satirista, poeta e dramaturgo austríaco dedica boa parte da obra a desnudar os odiosos eufemismos criados por Joseph Goebbels, a exemplo de “custódia protetiva” (Schutzhaft) — o instituto da prisão preventiva por tempo indeterminado, decretado após o famigerado episódio do incêndio do Reichstag, e justificado como medida de “proteção” dos próprios detidos — e “alinhamento” (Gleichschaltung) — termo usado para se referir à conformidade forçada às diretrizes do partido. Já em A Linguagem do Terceiro Reich, o filólogo judeu Victor Klemperer, na condição simultânea de estudioso e vítima, observa que “o nazismo se embrenhou na carne e no sangue das massas por meio de palavras, expressões ou frases, impostas pela repetição, milhares de vezes, e aceitas mecanicamente”. E complementa: “O que acontece se a língua culta tiver sido constituída ou for portadora de elementos venenosos? Palavras podem ser como minúsculas doses de arsênico: são engolidas de maneira despercebida e parecem ser inofensivas; passado um tempo, o efeito do veneno se faz notar”.
Uma das características da linguagem nazista que chamaram a atenção de Klemperer foi justamente o uso de eufemismos para nomear os crimes mais bárbaros. “Constam em meu levantamento os anúncios cheios desse eufemismo mentiroso que teve um papel tão importante na estrutura da linguagem nazista. O destino dessas vítimas não era mais trágico do que o das lebres abatidas em uma caçada” — escreve o autor, que alude em seguida ao destino da correspondência enviada às casas dos judeus removidos aos campos de concentração, no portão das quais se afixavam bilhetes com os dizeres: aqui viveu o judeu fulano de tal. “Então o carteiro sabia que não precisava mais se preocupar em encontrar o novo endereço; o remetente recebia a correspondência de volta com o eufemismo: Adressat abgewandert [Destinatário partiu, emigrou]. De forma que esse significado particular e cruel de abgewandert consta da linguagem do Terceiro Reich, na seção dedicada aos judeus” — conclui Klemperer.
Lembrei desse uso perverso dos eufemismos ao ver grande parte da imprensa utilizando expressões como “procedimento” e “interrupção da gravidez” para descrever (e incentivar) o aborto realizado numa menina de 11 anos em Santa Catarina, que resultou na morte de uma bebê com 29 semanas de gestação, plenamente formada e viável fora do útero. Ocorre que, estando o bebê nessa fase gestacional — na qual já consegue abrir e fechar os olhos, ouvir os batimentos cardíacos, reconhecer a voz da mãe e, obviamente, sentir dor —, o assim chamado “procedimento” consiste na seguinte sequência de eventos:
1) a administração via oral de mifepristona, remédio destinado a bloquear a atuação da progesterona no organismo da mãe, ocasionando degeneração das paredes do útero, o que priva o bebê de receber o oxigênio e os nutrientes necessários ao seu desenvolvimento;
2) a injeção no corpo do bebê, mediante longa agulha inserida via abdômen ou vagina da mãe, da droga digoxina (às vezes acrescida de cloreto de potássio), utilizada para tratar problemas cardíacos, mas que em alta dosagem é fatal, provocando parada cardíaca (segundo informação do jornal Brasil Sem Medo, foram necessárias duas doses letais para matar o bebê no ventre da menina de Santa Catarina);
3) administração para a mãe de misoprostol e pitocina (hormônio sintético), substâncias indutoras do trabalho de parto, com objetivo de dar à luz um bebê já morto. Se o bebê for muito grande, há eventual necessidade de removê-lo aos pedaços, logo depositados numa bandeja metálica antes de virar lixo hospitalar.
Foi essa sequência que o jornalismo autoproclamado profissional chamou de “procedimento”, como se o destino do feto “não fosse mais trágico que o das lebres abatidas em uma caçada” — talvez dissesse Victor Klemperer, sem saber que, para a sensibilidade contemporânea, a morte de uma lebre é, na verdade, tida por muito mais trágica que a de um bebê humano no ventre materno. Para a maioria da imprensa brasileira, entusiasta de um pretenso “direito ao aborto legal” inexistente na nossa legislação (que apenas admite excludente de ilicitude em caso de risco de vida da mãe, feto anencéfalo e gravidez decorrente de estupro), tudo ocorrera como se, ao fim do “procedimento”, aquela pequena pessoa de 29 semanas — cuja sobrevivência mesma foi vista como obstáculo incontornável ao bem-estar psíquico e à felicidade futura da jovem mãe — houvesse simplesmente abgewandert (“partido”, “emigrado”), tal como os destinatários judeus não encontrados pelo carteiro.
Zimmer não apenas se empenhou em preservar a vida do bebê, como também em poupar a menina de um fardo emocional que, futuramente, poderia pesar demais
Compreende-se, pois, o ódio que, disfarçado de sentimento humanitário, os propagandistas da causa abortista devotaram à juíza Joana Ribeiro Zimmer, que tentou convencer a menina e seus familiares a preservarem a vida do bebê, fruto da gravidez inapropriada. Pois a juíza catarinense fez o exato oposto da militância pró-aborto envolvida no caso — aí inclusa a advogada da família, colunista do blog feminista Catarinas, parceiro do The Intercept Brasil na redação da reportagem que primeiro repercutiu o caso. Diferente do que afirmou um certo jornalismo irresponsável e difamatório, segundo o qual a juíza “coagiu” a menina a abrir mão do seu “direito” ao “aborto legal”, Zimmer não negligenciou em nenhum momento o sofrimento gerado na jovem mãe por uma gravidez tão prematura. Mas, sem deixar de considerá-lo, e adotando sempre um tom acolhedor, fez questão também de evitar os eufemismos desumanizantes na comunicação com a menina, que até então vinha sendo incentivada a realizar o “procedimento” sem que dele tivesse a exata noção.
Com efeito, ao contrário dos demais adultos no entorno da menina, que ignoraram solenemente o destino do bebê e banalizaram a sua morte, a juíza foi a única a tentar explicar para a jovem mãe o corolário inevitável de sua eventual decisão de “interromper a gravidez” — expressão demasiado vaga para uma menina de 11 anos. Com uma experiência de quase 20 anos de atuação na área da Infância e Juventude, e ciente dos pormenores do caso que corria em segredo de Justiça, Zimmer não apenas se empenhou em preservar a vida do bebê (sugerindo entregá-lo para adoção), como também em poupar a menina de um fardo emocional que, futuramente, poderia pesar demais, à medida que o real significado de “procedimento” fosse ganhando maior nitidez numa consciência cada vez mais madura.
Num país adoecido espiritualmente, no qual a ascensão de psicopatas a posições de poder espalhou na cultura um misto de insensibilidade moral para com a vida humana e suscetibilidade histerioforme a miudezas, é óbvio que a atitude teria um alto custo. A coragem ofende os covardes assim como a honra ofende os infames, e a perseguição movida pelo lobby pró-aborto contra a juíza prova-o inexoravelmente. Vislumbrando os próprios vícios recalcados no espelho invertido da virtude alheia, restou aos militantes pró-aborto abafar o som da má consciência individual na algazarra coletiva do linchamento “do bem”, um simulacro satânico da verdadeira compaixão.
Compaixão que, por sua vez, não faltou na atuação da juíza catarinense. Em vez de lavar as mãos e agir protocolarmente como o faria a maior parte dos magistrados na sua posição, a magistrada ousou fazer o moralmente correto, agindo no sentido de proteger as duas crianças envolvidas. Sim, porque o que ia no ventre da menina não era uma coisa, uma pedra no caminho, um “amontoado de células” ou algo que o valha. Era uma pessoa. E descartar uma pessoa apelando a abstrações, frases feitas, slogans feministas e eufemismos é a expressão acabada do que Hannah Arendt chamou de “banalidade do mal”. Desafiando a inércia e a insensibilidade burocráticas comuns ao seu ambiente de trabalho, Joana Ribeiro Zimmer recusou-se a banalizar o mal.
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Parabéns pelo texto Gordon.
O artigo da Revista Oeste, de Flávio Gordon, intitulado “O PROCEDIMENTO”, trouxe-me a DEFORMADA, MONSTRUOSA E TERRÍVEL realidade do aborto, efetuado em SC, em menina de 11 anos. Inicialmente, posicionei-me concordando com a necessidade do mesmo, porque fiquei em choque, imaginando uma garotinha sendo estuprada e tendo que carregar, traumáticamente, o resultado disso, por nove meses. Pensei: A vida dessa criança terminou. Obrigada a assistir em sí mesma o resultado de terrível violência, vai passar por um processo de assistir o próprio corpo ficar enorme, e não vai haver Psicólogo que reestruture essa alma. E a partir de extremamente comovida com sua situação , acreditei ser a melhor solução. Por algum motivo, que Deus explica, somente hoje, com calma, tomei conhecimento que o feto tinha INACREDITÁVEIS 29 semanas. FORAM DOIS CRIMES, E NÃO APENAS UM. Quero, com honestidade de Espírito, desculpar-me com toda e qualquer pessoa que tenha tomado conhecimento de minha opinião anterior. E assumo perante Deus, a resultante na medida JUSTA, da influência que minha opinião póssa ter causado. Profissionalmente, muitas oportunidades em minha vida surgiram, de mulheres com intenções decididas em abortar. Sempre incentivei CONTRA, e SEMPRE incentivei a adoção. E muitas crianças tenho ajudado. Obtive sucesso muitas vezes. Felizmente. Obrigado pelo espaço.
Lindo artigo. Esse caso é uma distorção ética em vários aspectos, a começar pelo fato de chamar um bebê prematuro de produto de aborto e destinado só lixo. Crianças com mais de 500g têm de ser sepultado e não são mais consideradas abortamento e sim prematuridade extrema. Fico muito chocada com a concordância por parte daqueles que fizeram seu juramento profissional, em acatar uma decisão de assassinar um bebê viável.
Espero que essa menina que foi submetida a essa violência não fique com marcas ou sentimentos de culpa no futuro
Esses órgãos e associaçães criadas pelos esquerdistas para promover uma sociedade anárquica são evidentes paradoxos. Se fala do direito da menina de 11 anos, onde fica os inimputáveis menores de idade quando cometem crimes?
Um grande texto que esclarece o grande absurdo vivido nos dias de hoje. Que tenhamos coragem diante do desastre moral que nos enreda e vai nos tornando bestiais…
Excelente artigo. Parabéns. Temos que ter muito cuidado com o que lemos hoje em dia.
Acho que a humanidade já entendeu que, tecnicamente, um feto já é uma pessoa concebida. Precisa agora entender isso moralmente também. Para isso, devíamos parar de adotar “datas de nascimento” para cada pessoa, e adotar “datas de concepção”. Seria uma afirmação inequívoca de que já há vida desde a concepção.
Parabéns pelo texto lúcido ao extremo !
Excelente e preciso.
A satisfação de ter acesso a um grande texto. Parabéns, Flávio.
Não diria ser “incompreensível”, pois, na verdade, é “vergonhoso” ver, a todo momento, pessoas sendo acusadas, processadas e condenadas por alguma referência feita à cor ou a preferências sexuais de outra pessoa, enquanto se veem livres e impunes defesas e incentivos à prática assassina do aborto sob a alegação de que o útero e a placenta pertencem à mulher.
Prezado Flavio Gordon, parabéns por desnudar essa monstruosidade.
A descrição do dito assassinato a sangue frio de um inocente, travestido de “procedimento” é de embrulhar o estômago!
É a materialização da banalidade do mal.
Não tem como ler esse artigo sem sofrer fortíssima emoção. As palavras que descrevem o tal “procedimento” me levaram ao pranto. Que sentido tem esse assassinato bárbaro de um bebê quase pronto??
Excelente artigo para profunda reflexão.
Grande artigo! O “Procedimento” retrata uma realidade social onde a politização da biologia se transformou no maior escândalo da ética e da moral da atualidade, e na maior aberração da consciência. A humanidade retrocede sob o tenebroso soar de trombetas apocalípticas do globalismo abortista.
A primeira parte deste brilhante editorial, explica o frio na espinha que sinto toda vez que escuto alguns iluminados repetir a manjada frase: EM DEFESA DA DEMOCRACIA!!
Sobre o “procedimento” realizado na coitadinha de Santa Catarina, faltou salientar que no Brasil por ano são realizados por volta de 22k partos em crianças de 09 a 13 anos, com um índice baixíssimo de complicações.
Flávio, obrigado pelo texto limpo, direito e esclarecedor.
Este caso do aborto é mais um triste episódio desse pesadelo brasileiro em que vivemos. A corrupção da linguagem, a falta de percepção da realidade, a falta de senso das coisas fazem de nós brasileiros um dos povos mais cruéis e assassinos do mundo.