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Edição 124

O animal político

Confiança e abertura completa são incompatíveis: quem confiaria em você se todo mundo soubesse tudo o que você pensa?

Theodore Dalrymple
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A política é uma atividade suja, e se a experiência de diversos milênios nos ensinou alguma coisa, vai continuar sendo. Nem mesmo a política das pequenas instituições costuma funcionar sem características encantadoras como mentiras, hipocrisia, difamação, duplicidade, chantagem, traição, etc. — e isso quando apenas coisas pequenas estão em jogo!

Tenho dois princípios para me guiar em minha vida profissional: nada de grandes deslocamentos e nada de política corporativa. Naturalmente, esses dois princípios de alguma forma dificultaram minha ascensão profissional, mas o sacrifício pareceu valer a pena.

Ainda que a sujeira da política seja um truísmo, na Europa Ocidental a classe política raramente é vista com tanto ódio e desprezo quanto agora, pelo menos não na memória viva. Em parte, pode ser porque sabemos mais sobre isso do que antes; em parte, porque temos uma inclinação natural a acreditar que tudo, do gosto de uma fruta ao serviço oferecido pelos Correios, era melhor antigamente (o que se torna mais antigamente conforme envelhecemos). O que também parece ser verdade é que figuras da política são odiadas com um veneno desproporcional por causa dos erros que cometeram.

Até certo ponto, depende dos padrões com que os julgamos. Existe um tipo de normal ideal, de acordo com o qual os políticos são comparados com santos que nunca fazem nada errado, que operam milagres e estão ungidos com benevolência. Existe um padrão mais realista de comparação, digamos, com figuras políticas do passado, nenhuma das quais era santa.

Mas o ódio pelos governantes atuais reina livre de qualquer comparação, e nós os odiamos porque atribuímos a eles como indivíduos todas as nossas mazelas e insatisfações atuais. Isso tem a vantagem de nos permitir nunca olhar para dentro, ou nos perguntar por que votamos neles. Principalmente, votamos neles porque queremos acreditar em suas mentiras. Como o finado marechal Mobutu Sese Seko, do Zaire, comentou certa vez, são necessárias duas pessoas para corromper.

Segunda divisão

No Reino Unido, por exemplo, muitas pessoas, em especial aquelas de inclinação ao pensamento correto, odeiam Boris Johnson, que foi recentemente deposto como primeiro-ministro. Claro, ele teve muitos defeitos e cometeu muitas idiotices de moral duvidosa: mas pelos padrões dos malfeitores históricos ou do mundo, ele foi distintamente medíocre em seus pecados. Ninguém acreditaria nisso considerando a veemência do ódio direcionado a ele.

Boris Johnson, ex-primeiro-ministro britânico | Foto: Alan Santos/PR

O mesmo pode ser dito sobre o presidente Macron, da França. Ele não é um homem muito atraente: frio, arrogante, insensível aos seres humanos normais e está longe de ser tão competente quanto gostaria de acreditar que é. Mas, mais uma vez, pelos padrões mundiais ou históricos de malefício, ele está na segunda divisão. No entanto, conheço pessoas que quase não conseguem dizer o nome dele sem cuspir.

Emmanuel Macron, presidente da França | Foto: Wikimedia Commons

Um dos fatores que levam as pessoas a odiar tanto os políticos é uma qualidade da vida moderna muitas vezes celebrada, a saber, a abertura. Podemos ver isso na dificuldade do Reino Unido de encontrar um sucessor para Boris Johnson como primeiro-ministro. No passado, essa figura seria escolhida mais ou menos por um grupo de políticos de destaque de seu partido. Mas, claro, em uma era democrática isso não é mais aceitável. Todos os membros pagos do partido precisam ter voz, o que significa que os candidatos ao cargo precisam fazer uma campanha eleitoral, com debates e tudo.

Não se deve perguntar como as salsichas e a política são feitas

Em eleições modernas, a principal forma de argumentação é o insulto do candidato de oposição. Ele é um monstro com todo defeito humano possível. Ele não tem virtudes, só vícios. É incompetente, desleal, mentiroso, desonesto, vira-casaca, burro, ignorante, inexperiente, totalmente inadequado para o cargo. Se eleito, o céu vai desabar.

No entanto, quando o pleito acaba, ele se torna um colega valioso, um homem de confiança, mãos à obra, pensador profundo, a quem o número dois ou três no governo pode ser confiado.

Oportunistas inescrupulosos

Não é uma surpresa quando as pessoas concluem, a partir disso, que os políticos como um grupo são oportunistas inescrupulosos, porque não é possível que eles, os políticos, acreditem que uma pessoa é totalmente inadequada ao cargo e, pouco tempo depois, que ela é adequada, sim. Da mesma forma, essa pessoa aceita o cargo das mãos de alguém que, pouco tempo antes, ela havia caracterizado como totalmente indigno da liderança e a quem ela agora jura sua lealdade eterna, subitamente enxergando todas as virtudes nele.

A inconsistência só se explica pela suposição de que os políticos são canalhas que nunca são sinceros, que são salvos da acusação de mentir apenas porque desconhecem o conceito de verdade.

Agora, se tudo fosse decidido a portas fechadas, como antigamente, nada disso aconteceria em público. Ainda haveria esperança de que a pessoa escolhida se tornasse digna, em vez de alguém sabidamente mau, como sua campanha pela liderança revelou que ele é. Isso, por sua vez, remete à sabedoria das famosas palavras de Bismarck, que não se deve perguntar como as salsichas e a política são feitas.

A abertura cada vez maior, então, leva a menos confiança, não mais, e a confiança é essencial para qualquer vida política e social tolerável. Não significa que a confiança deve ser absoluta, isso seria estupidez; mas a desconfiança deve ser exercida com cuidado e discernimento. Se você parte da premissa de que todos os políticos são canalhas (tendo assistido ao funcionamento de sua ascensão à liderança), você passa a vida em um estado de quase paranoia, o que é desconfortável. Como dr. Johnson disse, às vezes é melhor ser enganado do que nunca confiar. Confiança e abertura completa são incompatíveis: quem confiaria em você se todo mundo soubesse tudo o que você pensa?

Tudo bem odiar os políticos como classe, mas, sendo um animal político, essa classe veio para ficar. Uma das razões por que os odiamos tanto é: quando olhamos em seus olhos, o que vemos é um reflexo de nós mesmos.

Leia também “A pior corrupção que pode existir”

3 comentários
  1. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Ótimo artigo. Parabéns. Qualquer semelhança com o Brasil atual não é mera coincidência. Estão demonizando o presidente Bolsonaro e santificando o Aborto do Súcubo, demônio dos nove dedos.

  2. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Os europeus são velhos na política já sabem que o caminho é menos corrupção, já o Brasil precisa envelhecer na política. Não podemos admitir que essa classe seja corrupta capilariamente

  3. José Luiz Almeida Costa
    José Luiz Almeida Costa

    Os políticos gostam de contar “fábulas”, estórias de povos tristes mas que eles se propõem a ser heróis de um final feliz.
    Em termos políticos, somos animais infantilizados que não entendeu a moral da fábula “A Revolução dos Bichos” de George Orwell

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