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Quadro Independência ou Morte! (O Grito do Ipiranga) , de Pedro Américo (1888) | Foto: Acervo Museu Paulista/Wikimedia Commons
Edição 129

Há 200 anos, o Brasil decretava independência da Corte (de Portugal)

O “independência ou morte” de 1822 guarda grandes semelhanças com nosso momento atual

Flavio Morgenstern
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“Amigos, as Cortes Portuguesas querem escravizar-nos
e perseguir-nos. A partir de hoje as nossas relações estão quebradas”,
disse D. Pedro I, no 7 de Setembro de 1822

Por que o Brasil precisou decretar independência e deixar de fazer parte do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves? Porque as Cortes Gerais Portuguesas haviam anulado todo o Poder Executivo, preferindo governar sozinhas. A justificativa era que estavam implantando ideias iluministas, inspiradas pela Revolução Francesa. Soa familiar?

A história do Brasil é contada como uma série de eventos quase atomizados a serem decorados porque caem no vestibular. Assim, você precisa responder uma pergunta sobre a Independência do Brasil, mas não entender os fatos que culminaram com o grito do Ipiranga. Dessa forma, tem-se a impressão de que D. Pedro I, um português, apenas estava bravo com Portugal, sem nenhum reflexo para a população — dando um grito de insatisfação curiosamente em uma viagem a cavalo.

A história é longa, mas tem alguns paralelos curiosos com o Brasil atual.

As Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa haviam sido criadas como o primeiro Parlamento, no sentido atual do termo, da história portuguesa. Criadas em resposta à Revolução Liberal do Porto, em 1820, foram responsáveis pela primeira Constituição de um Estado agora não mais absolutista.

As Cortes Constituintes de 1821, pintura de Veloso Salgado, 1920-1923 | Ilustração: Domínio Público

As Cortes Gerais seguiam a ideologia iluminista que varreu a Europa a partir das Guerras Napoleônicas. Essas que são usadas como justificativa para o atual controle despótico sobre o aparelho estatal, à despeito da vontade popular, no Brasil atual. As Cortes do “Soberano Congresso” de Portugal do século 19 iniciaram um longo processo de fervura para diminuir o poder da Família Real portuguesa, mesmo que o povo tivesse sua vontade identificada com o Imperador.

Sessão das Cortes de Lisboa, pintura de Oscar Pereira da Silva (1867-1939) | Ilustração: Domínio Público

O dia de dez horas

Apesar do nome pomposo, o Iluminismo é uma crença, não um argumento. A vontade irracional do controle absoluto, criando o primeiro enorme totalitarismo da história. Apenas em um exemplo, queriam controlar o calendário, inventando o calendrier républicain français, com 12 meses de 30 dias, semanas de dez dias, totalizando 360 dias, com uma gambiarra de cinco ou seis dias a mais, porque a natureza e a realidade vencem sempre a abstração. Também o dia teria dez horas com cem minutos de cem segundos. Evitando esse tipo de loucura que os britânicos se apegaram ao empirismo: conhecimento também vem da experiência — e da tradição e dos costumes, que eram fontes do Direito, até iluminados as ignorarem. Por isso os anglo-saxões passaram a odiar o sistema métrico e tratá-lo como oposto da liberdade: um símbolo contra quem fez o primeiro genocídio a ultrapassar 1 milhão de mortes — muito mais do que Hitler, para a população do mundo pré-industrialização.

Napoleão Bonaparte espalhava o tal “Iluminismo”, imposto pela guilhotina, onde quer que passasse, a leste e oeste. O passado precisava ser extirpado: a religião, a tradição, os costumes ultrapassados — e nada encarna melhor a tradição do que a Família Real. Na Europa Ocidental, principalmente as famílias Windsor, Orleans e Habsburgo. As duas últimas em Portugal, com um acordo com a primeira.

Napoleão Bonaparte e o Iluminismo | Ilustração: Reprodução

Para se livrar de um sistema internacional como a monarquia, nada melhor do que impulsos nacionalistas: da Marseillaise à Semana de 22 no Brasil, o nacionalismo é antes um impulso revolucionário. Apenas com a destruição da tradição e o subsequente socialismo internacional é que virou um prêmio de consolação para conservadores.

O “jovem brasileirinho”

Com a Família Real transferida para o Brasil para evitar ser guilhotinada iluministicamente, os políticos portugueses dividiam-se entre os liberais iluministas e aqueles fiéis à Família Real. Quem acredita que a “polarização” é uma ideia nova definitivamente não conhece bem a história. A solução em um inédito regime constitucional? Apelar para os tribunais. Foi assim que forçaram a volta da Família Real a Portugal. Não por amor ao rei, mas por amor a controlá-lo. Assim, seriam dois Poderes contra um. Ou, na verdade, menos do que um: o rei D. João, além de forçado a retornar a Portugal, ficara resumido a uma figura decorativa. Seu filho, D. Pedro, que ficara no Brasil, era tratado como um reles “jovem brasileirinho”. Duas palavras pejorativas seguidas.

Com um Reino Unido dividido, e com o profundo desprezo português pelos políticos brasileiros (alguns no Brasil há poucas gerações), D. Pedro só podia confiar no Exército, e, mesmo assim, virou um joguete nas mãos dos militares — o que o faria abdicar dali a uma década, em vez de permitir que militares voltassem ao governo, iniciando o conflito entre os Poderes e as Forças Armadas.

Retrato de Dom Pedro I, pintado por Benedito Calixto, 1902 | Foto: Wikimedia Commons

Havia muitos movimentos de independência inspirados na Revolução Francesa e no nacionalismo e no nativismo do século 19. Por isso, muitas forças heterogêneas se reúnem ao redor da figura de D. Pedro quando as Cortes dão um golpe fatal na liberdade do povo brasileiro: o governo por decretos. Era como se aquela parcela do povo que acompanha o noticiário soubesse mais o nome dos membros das Cortes Extraordinárias do que do próprio príncipe regente: todo dia, um decreto novo revogava algo desejado pelos brasileiros.

Desde 1808, até os tribunais criados por D. João VI eram meros fantoches dos desejos das Cortes. Uma estrutura de Estado iluminista, cheia de “divisão entre Poderes”, que, na prática, se encastelava na burocracia e minava justamente a única força política em quem o povo se via representado.

Playboy juvenil

Para piorar, eliminaram até mesmo o Tribunal de Relação no Rio de Janeiro, que agora seria subordinado ao Supremo Tribunal do Reino Português, em Lisboa. Quando entendemos que até a Justiça de um país foi trocada pelo desejo de um tribunal que não tem a mínima relação com a cultura, a tradição, os desejos e os anseios de um povo habitando um país continental, fica facílimo entender por que tivemos uma Independência cantada em hino, pintada e celebrada.

Portugal podia ter a burocracia. Mas como viveria sem a pujante economia brasileira?

Em 1821, todos os governos das províncias do Brasil ficam subjugados às Cortes Portuguesas. O próprio D. Pedro, pela enorme burocracia estatal que começava a ser criada em nome do iluminismo, nem sequer tinha mais um cargo político. A história pode não se repetir, mas pode rimar.

Zombado pelas Cortes Portuguesas (a historiografia revisionista esquerdista, que virou nosso modelo único, aproveita-se disso para pintar D. Pedro como um playboy juvenil), o povo passou a se identificar ainda mais com seu príncipe regente. Sua mulher, Leopoldina de Habsburgo, defende a causa brasileira e insta o marido a permanecer no Brasil no “Dia do Fico”: o equivalente hoje a uma afronta a uma decisão judicial superior.

“Dia do Fico”: aclamação de Dom Pedro I, em 1822, no Campo de Sant’Ana, no Rio de Janeiro. Quadro pintado por Jean Baptiste-Debret | Foto: Domínio Público/Wikimedia Commons

Sangue, honra e Deus

Conflitos armados se seguiram, e D. Pedro viu em José Bonifácio, homem de extrema cultura, maçom e com bom trânsito em Portugal, ministro do Reino e dos Negócios Estrangeiros no começo de 1822. Leopoldina, que administrava o país durante as viagens a cavalo de D. Pedro, foi quem enviou uma carta ao marido no dia 5 de setembro, que só o encontrou dois dias depois. As Cortes Portuguesas haviam anulado o gabinete de Bonifácio, revogado todos os seus atos, negando o seu poder.

Foi exatamente o que D. Pedro lera antes de decretar: “Amigos, as Cortes Portuguesas querem escravizar-nos e perseguir-nos. A partir de hoje as nossas relações estão quebradas. Nenhum vínculo unir-nos mais”. E, arrancando a braçadeira azul e branca de Portugal, o jovem português, que chegara ao Brasil aos 7 anos, proclamou: “Tirem suas braçadeiras, soldados. Viva independência, à liberdade e à separação do Brasil. Para o meu sangue, minha honra, meu Deus, eu juro dar ao Brasil a liberdade. Independência ou morte!”

Proclamação da Independência, de François-René Moreaux (1844) | Foto: Wikimedia Commons

Portugal podia ter a burocracia. Mas como viveria sem a pujante economia brasileira? Em pouco tempo, o país realmente importante para o mundo seria o Brasil, com um Imperador aclamado pelo povo — e com uma acelerada profissionalização que só seria destruída, mais uma vez, com a crença no controle iluminista, aliado ao positivismo e outras “racionalidades” para controlar o povo, protegidos pela casta estatal.

Seria como o Brasil decretar a “independência” de uma Corte ou tribunal, vivendo em paz alheio a ele. A burocracia contra o povo. Se soubéssemos da história da Independência, em vez de reduzi-la a apenas um grito, poderíamos refletir sobre quanta liberdade conseguimos conquistar a partir de nossa história e tradição.

Leia também “Milton Neves: ‘A imprensa escolheu um lado'”

12 comentários
  1. MARCELO GONÇALVES VILLELA
    MARCELO GONÇALVES VILLELA

    Os monarquistas e os esquerdistas brasileiros têm algo incomum: o desconforto com a presença do Exército na vida política do Império e da República. Para quem despreza a histórica participação do Exército na vida nacional, a boa notícia é a seguinte: hoje, o Exército não tem relevância na Política Nacional. Podem dormir tranquilos: os monarquistas que sonham em ressuscitar D. Pedro II e os esquerdistas que desejam retornar à cena do crime.

    1. MARCELO GONÇALVES VILLELA
      MARCELO GONÇALVES VILLELA

      correção: tem algo comum

      1. Marinês Aparecida Josefi
        Marinês Aparecida Josefi

        Proclamando a independência ou não , não está tudo dominado. Excelente artigo Flavio Morgenstern. Parabéns!

  2. Raul José De Abreu Sturari
    Raul José De Abreu Sturari

    Flávio, parabéns!
    Sua sutileza e sua perspicácia, estampadas nesse artigo, são dignas de passar para a História.
    Você tem muito a ensinar aos jornalistas de sua geração.

  3. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Ótimo artigo. Parabéns. Como é sempre bom aprendermos mais sobre a história do nosso país. Qualquer semelhança com os dias atuais não é mera coincidência. Tem sempre alguém se julgando “iluminado” para proteger o povo.

  4. Walter Cesar Gomes
    Walter Cesar Gomes

    Parece que o ontem continua hoje.

    Bolsonaro ( junto com competente equipe e as FFAA), consegue quebrar este cancro ” iluminista tupiniquim “

  5. Benjamin Gonzalez Martin
    Benjamin Gonzalez Martin

    Os “CARRAPATOS” do Brasil estão morrendo por “AB$TINÊNCIA”. E o brasileiro honrado e trabalhador não tem mais medo de se manifestar e não quer mais se abster de votar, porque finalmente encontrou alguém tb honrado que o representa.

  6. Claudia Aguiar de Siqueira
    Claudia Aguiar de Siqueira

    Excelente paralelo, Flávio!

  7. Jose Carlos Rodrigues Da Silva
    Jose Carlos Rodrigues Da Silva

    E ainda hoje estamos clamando por liberdade, nosso grito de liberdade será em 02 de outubro. Será a volta da corrupção ou continuar avançando a passos um pouco curto, mas estamos indo.

  8. Andre mendonça
    Andre mendonça

    Também achei meio confuso. Fica uma lição: muitas vezes as leis tem que ser desobedecidas. D. Pedro fez isso e proclamou a independência (ato absolutamente ilegal). Nossa constituição é falha, fruto de pressões de corporações e interesses escusos. Ela não tem o dom da onisciência. Nem seus “guardiões”. Suas ordens loucas deveriam ser solenemente ignoradas.

  9. Iury de Salvador e Lima
    Iury de Salvador e Lima

    Ficou meio confuso, Flávio.

  10. Agnelo A. Borghi
    Agnelo A. Borghi

    Sempre aprendendo com o Flávio. Sensacional!

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