Assim que Ricardo Vélez Rodríguez, o primeiro ministro da Educação do governo Bolsonaro, assumiu o cargo, em 2019, uma de suas medidas foi criar uma Secretaria de Alfabetização. A decisão é justificada diante de um grande desafio para o Brasil, que é vencer o analfabetismo entre adultos. Segundo dados do IBGE, 11,8 milhões de brasileiros com 15 anos ou mais são analfabetos.
Para ocupar a nova secretaria, Rodríguez indicou Carlos Nadalim. Natural de Londrina (PR), Nadalim é formado em Direito pela Universidade Estadual de Londrina, com especialização em filosofia e mestrado em educação pela mesma instituição. Apesar da formação jurídica, a paixão do secretário é mesmo o ensino de crianças. Em mais de uma hora de conversa, ele discorreu sobre a importância de priorizar a alfabetização até os 6 anos de idade e como as famílias podem contribuir para facilitar o processo de aprendizagem e estimular o hábito de leitura. “Há evidências científicas que demonstram que crianças que ouvem histórias na primeira infância aprendem a ler com mais facilidade e cultivam os hábitos de leitura ao longo da trajetória escolar”, afirma.
Em 2018, recebeu o Prêmio Darcy Ribeiro de Educação, concedido anualmente a três personalidades ou entidades que apresentaram trabalhos na promoção da educação no Brasil. Na época, Nadalim era coordenador pedagógico de uma escola em Londrina, e se destacou por oferecer um programa de educação infantil com metodologia inovadora. Ele também é coautor do curso on-line Ensine seus Filhos a Ler — Pré-Alfabetização, composto de seis módulos, com duração de 12 semanas.
A pasta da Educação já contabilizou quatro diferentes ministros — Ricardo Vélez Rodríguez, Abraham Weintraub, Milton Ribeiro e o atual, Victor Godoy — desde o início deste governo. Nadalim, que ocupa um cargo de confiança, sobreviveu a todos. Em Brasília desde o fim de 2018, ele diz que está plenamente adaptado e que adora morar na cidade. De passagem por São Paulo para realizar uma bateria de exames médicos, o secretário concedeu entrevista pessoalmente e falou sobre a criação da Política Nacional de Alfabetização e os programas oferecidos pela secretaria, em conjunto com o Ministério da Educação (MEC). Ainda, mencionou ações inéditas implementadas em sua gestão para melhorar a qualidade da educação no país.
A seguir, os principais trechos da entrevista.
Como o fechamento das escolas durante a pandemia impactou no aprendizado das crianças em fase de alfabetização?
Sabemos que a atuação em sala de aula é insubstituível, sobretudo para as crianças pequenas. O uso de máscaras, por exemplo, dificultou o processo de alfabetização. As crianças que estão no período de aprendizagem da fala precisam fazer uma leitura orofacial — ou seja, ouvir e ver os movimentos dos lábios e do rosto, para acionar as representações que estão envolvidas na comunicação da linguagem oral. No ciclo de alfabetização, a criança precisa, de forma consciente, acionar os órgãos do aparelho fonador — a posição da língua, dos dentes, dos lábios, para a pronúncia de certos sons da fala.
O Ministério da Educação lançou a política nacional de recuperação das perdas e danos no pós-pandemia. O que está sendo feito na prática para recuperar os prejuízos com o fechamento das escolas?
Primeiro, é preciso dizer que o Brasil já registrava um gargalo na aprendizagem antes da pandemia. A situação não era favorável. Com o retorno das atividades presenciais, os instrumentos de avaliação são fundamentais para mapear a situação dos alunos. O MEC disponibilizou, em conjunto com as secretarias de alfabetização, educação básica e outras, uma plataforma de avaliações diagnósticas. No âmbito da alfabetização, oferecemos avaliações para aferir o desempenho dos alunos em língua portuguesa, matemática e fluência em leitura oral. Os dados são preocupantes.
Em abril de 2019, foi instituída a Política Nacional de Alfabetização (PNA), por meio de um decreto, conduzida pelo Ministério da Educação (MEC) e pela Secretaria de Alfabetização (Sealf). O que motivou a criação da PNA?
Em 2019, já tínhamos um mapa da situação da alfabetização no Brasil, nas duas últimas edições da antiga Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA). Os dados de desempenho dos alunos em leitura, escrita e matemática eram preocupantes. Tínhamos cerca de 55% dos alunos no fim do 3° ano do ensino fundamental com baixo desempenho em leitura. Traduzindo em miúdos: significa que esses alunos, entre 7 e 8 anos, não eram capazes de localizar e extrair uma informação explícita na primeira linha de um texto curto. No Pisa [Programa Internacional de Avaliação de Estudantes], o desempenho dos jovens também não é animador. Ocupamos as últimas posições no ranking. Essa avaliação tem como objetivo saber como os adolescentes entre 15 e 16 anos chegarão ao mercado de trabalho, e, para isso, os domínios avaliados são: compreensão e desempenho em leitura, matemática e ciência. Na última edição do Pisa, 50% dos jovens brasileiros, levando em consideração uma escala que vai de 1 a 6, ficaram no nível 1 ou abaixo de 1. É preocupante. Há uma correlação entre o sucesso ou o fracasso na aprendizagem da leitura nos anos iniciais escolares e depois, durante a trajetória escolar.
Qual o objetivo da PNA?
A PNA é uma bússola que orienta o Ministério da Educação com relação à alfabetização, literacias [conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes relacionados à leitura e à escrita] e matemática básica. A política fornece diretrizes, estabelece público-alvo e instrumentos de implementação, e dela decorrem os programas da Secretaria de Alfabetização. Por exemplo, a PNA recomenda que a alfabetização deve ser priorizada no 1º ano do ensino fundamental, ou seja, com crianças até os 6 anos de idade. Uma pesquisa feita nos EUA mostra que, para alunos que não aprendem a ler da forma esperada até o fim do 1º ano do ensino fundamental, a probabilidade é que 90% deles não tenham um bom desempenho de leitura no 3º e 4º anos do ensino fundamental, e 70% a 75% deles tenham a trajetória escolar comprometida.
Tínhamos cerca de 55% dos alunos no fim do 3° ano do fundamental com baixo desempenho em leitura. Isso significa que esses alunos não eram capazes de localizar e extrair uma informação explícita na primeira linha de um texto curto
O artigo 1º da PNA diz que a educação no Brasil deverá basear-se em evidências científicas. A PNA estabelece algum método de alfabetização para ser aplicado nas escolas?
A política não trata de métodos. Não existe uma bala de prata para resolver o problema da alfabetização. Os países bem-sucedidos em educação levam em consideração um currículo bem estruturado, com metas claras e ambiciosas, manuais para alunos e professores, instrumentos de avaliação eficientes e foco na formação dos professores. Não se resolve o problema da educação e da alfabetização apostando só numa dessas balas. A política trata de componentes que são essenciais para a alfabetização de crianças, jovens e adultos, levando em consideração as conclusões do National Reading Panel — um documento elaborado nos Estados Unidos para identificar as abordagens mais eficientes na alfabetização de crianças. Por exemplo, um dos seis componentes que constam na PNA é a fluência em leitura oral. Ao fim do 1º ano do ensino fundamental, a criança deve ser capaz de ler de 55 a 60 palavras por minuto. A compreensão em leitura está muito atrelada à fluência, que é um termômetro para saber se o indivíduo está compreendendo ou não aquilo que ele lê.
Embora alfabetizar crianças na primeira infância não seja um objetivo da PNA, alguns críticos dizem que incluir esse público como prioritário poderia incentivar a alfabetização precoce. Como o senhor responde a essas críticas?
Essas críticas não fazem sentido. Na primeira infância, antes da alfabetização formal, precisamos ampliar o vocabulário dos pequenos. Crianças de famílias pobres, aos 4 anos, ouviram 30 milhões de palavras a menos do que crianças de família de classe média alta. Essa questão da riqueza ou pobreza do vocabulário de uma criança tem impacto na aquisição da leitura. Temos, primeiro, de trabalhar com as crianças a compreensão oral. É importante ampliar o vocabulário, melhorar a pronúncia das palavras, modelar a linguagem das crianças naquele período em que elas aprendem a falar as primeiras palavras. As crianças ouvem, falam, depois aprendem a ler e a escrever. Se queremos formar futuros leitores hábeis, não vamos alfabetizá-los primeiro, vamos calibrar certas habilidades que estão muito relacionadas à compreensão oral, à consciência fonológica e ao conhecimento alfabético.
A PNA brasileira se baseou em modelos internacionais para a elaboração de suas diretrizes?
Sim, vários documentos internacionais foram analisados. Chamou muita atenção a experiência portuguesa. Portugal já foi considerado a estrela europeia em ascensão na educação. Na gestão do ex-ministro da Educação de Portugal Nuno Crato, entre 2011 e 2016, o índice de educação do país superou o da Finlândia em um estudo internacional que afere o desempenho de matemática de alunos do 4º a 8º ano do ensino fundamental. Como ele fez isso? Por meio da elaboração de um currículo forte, investimento na formação de professores, elaboração de manuais e calibrando sistemas de avaliação. Isso tudo em um período de recessão e de cortes salariais de professores. Em Portugal, as práticas de literacia familiar [conjunto de hábitos e conhecimentos que as crianças vivenciam e adquirem com seus pais no seio familiar] são comuns, e entre as exigências feitas pelo ex-ministro aos especialistas que elaboraram as metas curriculares estavam: alfabetização das crianças até o final do 1º ano do ensino fundamental; a criação de indicadores de fluência em leitura; e a criação do cânone mínimo de obras literárias que as crianças devem ler. Em qualquer livraria em Portugal, há obras infantis com a indicação da faixa etária e que são contempladas pelo Plano Nacional de Leitura de Portugal. Além de Portugal, nossa política de alfabetização tem inspiração em sistemas da Inglaterra, Cingapura e outros países.
O que é o programa Conta pra Mim e o que motivou sua criação?
A ciência diz que os pais são os primeiros e mais importantes professores de seus filhos. Explico: ninguém manda uma criança para escola para aprender a falar. A fala se desenvolve no seio familiar. As crianças são expostas naturalmente à língua materna e, com o passar do tempo, começam a falar. Há evidências científicas que demonstram que crianças que ouvem histórias na primeira infância aprendem a ler com mais facilidade e cultivam os hábitos de leitura ao longo da trajetória escolar. Primeiro é preciso abastecer o vocabulário receptivo das crianças, para que, no futuro, elas acionem o expressivo.
A adesão à PNA é voluntária para Estados e municípios. O senhor está satisfeito com a participação e o engajamento dos professores às diretrizes da PNA?
A adesão aos programas do MEC é voluntária, em respeito à autonomia dos entes federados. O MEC não tem o poder para coagir os entes federados a adotarem determinada política. Estou satisfeito, porque os números demonstram o interesse dos professores. O curso on-line com o maior número de inscritos na plataforma do MEC se chama Práticas de Alfabetização. Tem quase 500 mil inscritos. Qual é a característica? É um curso de cunho prático. Os profissionais da educação estão sedentos por formações práticas, que são chanceladas pelas evidências científicas. Trago como exemplo o testemunho de uma professora com mais de 25 anos de experiência em alfabetização, da cidade de Capim Branco (MG). Ela conta que sempre alfabetizou sua turma até o fim do 1º ano do fundamental. Com o programa Tempo de Aprender, ela conseguiu alfabetizar 80% da turma ainda em março, no início do ano letivo, sendo que os outros 20% eram de alunos que não frequentavam a escola de maneira regular. Ou seja, ela disse que com as orientações do MEC ficou muito mais fácil ensinar as crianças. Hoje são mais de 5 mil entes federados participando do programa e oferecemos formação aos profissionais que coordenam a sua implantação na ponta.
Além da PNA, quais outras iniciativas da Secretaria de Alfabetização o senhor pode destacar?
A adesão do Brasil a dois estudos internacionais — o PIRLS [Estudo Internacional de Progresso em Leitura] e o TIMSS [sigla para Trends In International Mathematics and Science Study] —, ambos de natureza curricular, diferente do Pisa. Pela primeira vez, o Brasil participa desses estudos, que são fundamentais para avaliar nossas políticas do ensino da leitura, como também da matemática e das ciências. São iniciativas da Secretaria de Alfabetização em parceria com a Secretaria de Educação Básica e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), autarquia vinculada ao MEC. Essa medida vai contribuir com dados importantes para calibrar nossos programas e ações e melhorar a qualidade da educação no país. Além disso, em pouco tempo, o Brasil alcançou o primeiro lugar no ranking mundial de downloads do GraphoGame — um aplicativo finlandês que ensina crianças a ler jogando. É a primeira vez que o Brasil disponibiliza esse jogo traduzido para o português. Ele não substitui a atuação do professor em sala de aula, mas é uma ferramenta de apoio, e tem como público alvo crianças entre 4 e 9 anos.
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Ótima entrevista. Parabéns ao entrevistador e entrevistado. Toda iniciativa para acabar com a ideologia do ensino de Paulo Freire é bem vinda. Ainda que demore para erradicar da educação brasileira essa praga que foi o Paulo Freire.
Brilhante Secretario. Continue firme!!!
Aproveita o PNA desse Secretário atual do MEC e entra no ensino fundamental, Simone Tebet, “Mulher vota em mulher”
Brilhante. Espero que essa política continue.