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Novos casos de Covid-19 surgiram na China. A região foi bloqueada. Equipe médica em traje de proteção branco na rua | Foto: Shutterstock
Edição 132

A ideologia do lockdown é uma ameaça à sociedade

Os brutais fechamentos que ainda acontecem na China são um lembrete da insanidade da “covid zero”

Brendan O'Neill, da Spiked
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Lembra da “covid zero”? A ideia de que a única maneira de lidar com a covid-19 era promover sua eliminação? Apenas quando todo e qualquer vestígio do vírus fosse erradicado da sociedade seria seguro deixar as massas saírem de novo, insistiam os fanáticos. Esses ideólogos estavam por toda parte. No establishment médico, na elite política, na mídia. No começo de 2021, os principais jornalistas do Guardian estavam dizendo que Boris Johnson deveria “combater o vírus com uma estratégia “covid zero”. Matar a covid-19 para salvar a sociedade.

Como vai essa ideia hoje em dia? Pergunte à China. O sofrimento do povo chinês sob a ideologia da covid zero é absurdo. O lockdown pode ser uma lembrança que, ainda bem, está desaparecendo para nós no Ocidente, mas continua sendo implacável para os chineses. Os números são assombrosos. Sessenta e oito cidades na China estavam em lockdown parcial ou total há alguns dias, incluindo a megalópole Chengdu, onde 21 milhões de homens e mulheres foram orientados a ficar em casa. Apenas uma pessoa de cada casa tem permissão para sair e fazer compras básicas. Nada de exercícios, passeios no parque ou ir ao trabalho. Sair rapidamente para comprar comida é a única liberdade civil de que os moradores de Chengdu usufruem.

O lockdown de Chengdu é realmente distópico. Não só milhares de seres humanos foram colocados em prisão domiciliar, outros foram forçados a fixar residência no local de trabalho. Chengdu é uma potência econômica, instalação de atores globais nos mercados automotivo e tecnológico, incluindo a Volkswagen e a Foxconn Technology Group. E, para garantir que o lockdown não prejudique demais a produção, algumas fábricas estão operando em “closed loop systems”, ou sistemas circulares fechados, em que os “trabalhadores são isolados do restante da comunidade”. Esses funcionários ficam no local de trabalho, no campus, longe dos demais cidadãos e da família, e fazem testes de covid o tempo todo. Tudo isso para continuarem sendo uma engrenagem na locomotiva da vasta economia chinesa. Sob a política da covid zero, você é um vetor em potencial da doença que precisa ser fechado em casa ou uma máquina que deve ser apartada da sociedade para continuar produzindo em nome do lucro. A covid zero desumaniza a todos.

Desinfecção durante o “Período Silencioso” de Xangai | Foto: Shutterstock

Pânico

O anúncio do lockdown em Chengdu levou a um pânico disseminado e um surto de compras. Vídeos nas redes sociais mostraram “residentes desesperados” comprando o máximo de itens essenciais que podiam. Essas imagens aflitivas não são surpreendentes, considerando que em outros lockdowns recentes as pessoas ficaram sem alimentos. A população de Chengdu pode estar pensando na cidade de Xi’an, a noroeste da China, que foi colocada em lockdown em dezembro e janeiro. Alguns dias depois, até mesmo o direito de sair de casa para comprar itens essenciais foi suspenso. Impressionantemente, 13 milhões de habitantes foram proibidos de sair de casa por qualquer razão, até mesmo para adquirir formas de subsistência. Em vez disso, as autoridades criaram um sistema de entrega de alimentos. Não deu certo. As pessoas recorreram às redes sociais para denunciar que não estavam recebendo comida suficiente. Um homem desesperado propôs trocar seu console de Nintendo por macarrão instantâneo e pãezinhos cozidos no vapor. Outro ofereceu detergente para lava-louça em troca de maçãs. Xi’an teve um retorno à “sociedade primitiva”, afirmou um residente.

Como algo saído de um filme distópico de segunda categoria, drones com alto-falantes anunciavam que as massas confinadas deviam “controlar o desejo da alma por liberdade!”

Entre os lockdowns de Xi’an e Chengdu, houve o lockdown de Xangai, possivelmente o mais assustador da China até o momento. Foi em abril e maio. Durou dois meses. As restrições na vida dos 25 milhões de moradores foram aplicadas de maneira implacável. Mais uma vez, as pessoas ficaram sem alimentos. Algumas estavam tão desesperadas que comeram vegetais selvagens e, como consequência, ficaram doentes. Foi um “lembrete assustador do Grande Salto para a Frente… quando gente faminta arrancou cascas do tronco das árvores”, afirmou um observador. Da noite para o dia, grandes cercas de metal verde foram colocadas do lado de fora de cada prédio de apartamentos em que um residente teve resultado positivo num teste de covid-19 — lares foram transformados em prisões improvisadas. Alarmes foram instalados na porta dos infectados, para alertar as autoridades se eles saíssem de casa —, uma versão moderna da cruz preta que era pintada na porta dos contaminados com a peste negra em Londres na década de 1660.

Como algo saído de um filme distópico de segunda categoria, foram lançados no céu de Xangai drones com alto-falantes que anunciavam que as massas confinadas deviam “controlar o desejo da alma por liberdade!”. Houve evacuações forçadas e separações das famílias. Comunidades inteiras foram realocadas. As pessoas do bairro residencial de Pingwang foram transferidas em massa para instalações de quarentena a mais 160 quilômetros de distância. Os milhares de residentes da cidade de Beicai foram obrigados a se mudar para uma acomodação temporária para que a cidade fosse “desinfetada”. As crianças com diagnóstico de covid-19 foram retiradas dos pais. Pessoas ficaram com fome, trancadas em casa e presas por cercas — é impressionante que isso estivesse acontecendo na metrópole moderna e reluzente de Xangai apenas três meses atrás, enquanto o Ocidente seguia sua vida pós-lockdown normalmente.

Os danos da covid zero estão se tornando cada vez mais claros. Como o British Medical Journal comentou, houve até “relatos de moradores de Xangai que morreram de causas não relacionadas à covid porque não tiveram acesso a seus medicamentos habituais”. Todo o juramento da medicina — em primeiro lugar, não causar dano ou mal — é virado do avesso quando a sociedade se dedica de forma tão singular e psicótica a combater um único vírus. A saúde espiritual, a saúde social e até a saúde física — todas foram sacrificadas na cruzada da China para chegar à covid zero. Vamos agradecer que Boris não tenha ouvido o apelo do Guardian sobre a estratégia da covid zero. Na verdade, os horrores de Xangai parecem ter feito até esse mesmo Guardian mudar de ideia. “Medo, paranoia, raiva — essa é a vida sob a estratégia de covid zero da China” anunciou uma manchete em abril.

Chengdu, centro da cidade fechado devido à política de covid zero | Foto: Shutterstock

Tirania

E, mesmo assim, enquanto rejeitamos a tirania na China que se espalha como um vírus em Chengdu, não precisamos imaginar que jamais faríamos algo parecido. Já fizemos. Nossos lockdowns não foram tão severos quanto os da China, mas colocamos drones para espionar pessoas que levavam cachorros para passear durante o primeiro lockdown, em março de 2020. Restringimos o direito das pessoas de saírem de casa. Reprimimos as críticas à estratégia de combate à covid nas redes sociais, assim como a China está fazendo agora. Os gigantes das mídias sociais do Vale do Silício ficaram em pé de igualdade com Pequim em termos de reprimir a “desinformação” sobre a covid-19 e o lockdown. E, sim, prejudicamos a saúde dos nossos cidadãos ao transformar a covid-19 na única questão na pauta. Cânceres não diagnosticados e problemas de saúde mental são apenas duas das crises de saúde pública que parecem ter sido exacerbadas pelo lockdown.

Aliás, a impostação ocidental do autoritarismo à moda chinesa foi uma das coisas mais preocupantes da era da covid-19. Quem consegue esquecer Neil Ferguson, do Imperial College London, dizendo que ele e outros defensores do lockdown nunca imaginaram que fossem “conseguir” o que a China fez em Wuhan — mas então “a Itália o fez, e nós percebemos que também podíamos fazer”. Em julho em 2020, Jeremy Hunt, membro do Parlamento e ex-líder do Partido Conservador britânico, pareceu elogiar a abordagem chinesa e sugerir que também deveríamos ter mirado na “infecção zero e na erradicação da doença”. Vá dizer isso para a gestante em Xangai que postou um mensagem desesperada nas redes sociais dizendo que só tinha o suficiente para se alimentar por mais dois dias.

A covid zero foi um ato de autossabotagem para a China. Seu impacto está sendo enorme na estabilidade política e na economia chinesas. Isso tudo é um lembrete útil e deprimente do que acontece quando o Estado coloca a ideologia acima da razão. Quando os cidadãos são reduzidos a vetores de uma doença que precisam ser administrados e controlados, em vez de serem tratados como indivíduos sábios e bons, dignos da confiança de que vão agir com responsabilidade. O pesadelo na China é uma denúncia do regime de Pequim, assim como de alguns fanáticos do lockdown aqui no Ocidente que teriam nos conduzido alegremente pelo mesmo caminho de destruição social.


Brendan O’Neill é repórter-chefe de política da Spiked e apresentador do podcast da SpikedThe Brendan O’Neill Show. Ele está no Instagram: @burntoakboy

Leia também “O autoritarismo escondido numa “emergência climática”

2 comentários
  1. Jorge Apolonio Martins
    Jorge Apolonio Martins

    Abaio o lockdown, abaixo a tirania, viva a demorcracia.

  2. Antonio Rodrigues
    Antonio Rodrigues

    Socialismo-comunismo – retrocesso sem precedentes

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