(Mensagem de Julia Ioffe, jornalista norte-americana nascida na Rússia)
Em 21 de setembro, sete meses depois que os tanques da Rússia entraram na Ucrânia, a guerra finalmente chegou até o povo russo. Durante sete meses, foram basicamente os ucranianos que conviveram com o que Putin desencadeou. Eles sentiram os efeitos diariamente, fugindo de casa ou morrendo nela enquanto caíam mísseis russos que mataram cerca de 30 mil civis ucranianos. Enquanto isso, os russos, especialmente os que vivem em Moscou e São Petersburgo, podiam fingir que a guerra só existia na TV estatal. Durante todo o verão, a festa não parou. Os restaurantes estavam cheios, assim como os parques, os clubes e os teatros. Claro, houve sanções, mas os russos que tinham condições fizeram compras, viajaram; a vida basicamente prosseguiu, sem problemas.
E, então, em 21 de setembro, depois do impressionante sucesso de duas contraofensivas ucranianas, “Vladimir Putin anunciou o que foi chamada de ‘mobilização parcial’”. A convocação para a guerra, declarou Putin, seria limitada a 300 mil homens com experiência militar — reservistas —, mas ficou claro imediatamente que isso era uma mentira. A Inteligência ucraniana afirmou que o número real estava mais próximo de 1 milhão, e logo surgiram relatórios sobre os canais de Telegram russos e da mídia independente exilada russa que faziam eco a essa informação: aparentemente, uma cláusula secreta na ordem de mobilização definia o limite não em 300 mil, mas em 1,2 milhão.
Com o recrutamento que se seguiu ao anúncio de Putin, o pânico se abateu sobre uma nação que havia conseguido colocar a guerra nas margens de sua consciência. Homens sem nenhuma experiência militar começaram a receber convocações. É o caso de um especialista em TI de 32 anos em Sberbank que viralizou. Um homem de 21 anos com TEA e esquizofrenia, que não fala e não consegue cuidar de si mesmo, também recebeu a notificação. Recrutadores militares começaram a aparecer nos escritórios, retirando trabalhadores de suas mesas e arrastando-os para os postos de alistamento militar. Em pouco tempo, as empresas russas precisaram apelar para que o Kremlin parasse: o Exército da Rússia estava levando tantos funcionários que elas mal conseguiam manter suas operações.
Dezenas de chefs de restaurantes premiados com estrelas Michelin foram requisitados no fim de semana. (Afinal, o Exército precisa comer.) Médicos de clínicas de luxo em Moscou também foram solicitados, e médicos dos hospitais estatais estão sendo levados diretamente de seu local de trabalho. (Afinal, o Exército precisa tratar seus feridos.) Nenhum deles tem experiência militar.
Outros relataram o contrário. Uma amiga me contou que seu tio, um oficial de artilharia aposentado, foi chamado a um posto de alistamento e “esclarecer sua condição”. O tio tem 76 anos.
Muitos e muitos outros não esperaram as convocações chegarem. Em menos de 24 horas depois da declaração de Putin, enormes congestionamentos se formaram em todas as principais vias que atravessam as fronteiras da Rússia. As pessoas, principalmente homens jovens, esperaram horas — e enquanto este texto é escrito, diversos dias — para fugir para a Geórgia, a Finlândia, o Cazaquistão, a Mongólia. Na manhã de segunda-feira, o engarrafamento na fronteira com a Geórgia, que passou de 30 quilômetros, podia ser visto do espaço. As pessoas começaram a abandonar seus carros e atravessar para a Geórgia a pé ou com scooters. Na terça-feira de manhã, o Serviço Federal de Segurança russo estava enviando material bélico para interceptá-las, e o Exército montou um postos de alistamento na fronteira, entregando convocações para homens que tentassem sair do país.
Outros foram de avião. Passagens de avião, já difíceis de obter desde que a Europa fechou seu espaço aéreo para aeronaves russas, aumentaram muito de preço e então desapareceram por completo. Voos para a Turquia que costumavam custar algumas centenas de dólares foram supervalorizadas, chegando a US$ 10 mil. Durante todo o fim de semana, aviões decolando para a Turquia, Uzbequistão, Quirguistão, Israel, o Golfo — qualquer lugar para onde os russos pudessem viajar sem visto — estavam cheios de homens desesperados para escapar de seus próprios militares. Logo, houve relatos de que o Serviço Federal de Segurança estava fazendo russos darem meia-volta na fronteira e não permitindo que embarcassem depois que os militares entregaram listas de recrutamento para a guarda da fronteira.
Alguns recrutas ouviram que teriam duas semanas de treinamento antes de ser enviados para enfrentar um Exército ucraniano altamente motivado, equipado com HIMARS
Mas essas eram possibilidades para pessoas com meios para fugir. Os pobres, que não tinham carro nem dinheiro suficiente para viajar de avião e começar a vida em outro lugar, se esconderam em casa ou mudaram de endereço. Outros ainda recorreram a medidas mais desesperadas: ateando fogo a postos de alistamento militar, quebrando seus próprios braços ou pernas.
“Deixem nossos filhos viverem!”
Com todas as pesquisas que mostraram que dois terços ou três quartos da população russa apoiavam a guerra, os eventos da semana passada mostraram uma história diferente. Os russos claramente estavam felizes em celebrar a invasão da Ucrânia — ou pelo menos declarar isso ao funcionário do instituto de pesquisa —, quando o discurso é que seria fácil e, mais importante, quando nada seria exigido deles. Mas quando a guerra chegou até eles, quando foram convocados a lutar pessoalmente ou enviar entes queridos para as trincheiras, o verniz de patriotismo desapareceu da noite para o dia.
Protestos irromperam não apenas nos lugares de sempre, como Moscou e São Petersburgo, mas em áreas muito mais dóceis e leais. Durante toda a semana, na região predominantemente islâmica de Dagestan, manifestantes, em especial mulheres, têm entrado em conflito com a polícia e com recrutadores militares. Muitas são mães enfrentando burocratas locais, perguntando se eles ao menos entendem por que seus filhos estão sendo enviados para a guerra. Na também predominantemente muçulmana Cabárdia-Balcária, mães enfrentaram autoridades e policiais. Uma mulher avançou com tamanha fúria que arrancou seu véu e gritou: “Eu gostaria de ver como você se sentiria se seu filho estivesse lutando lá!”. Em Iacútia, mães cercaram policiais e dançaram ao redor deles como um mastro sinistro, cantando: “Deixem nossos filhos viverem!”
Esses enclaves de repúblicas étnicas, cujas populações muitas vezes são sujeitadas a um racismo grotesco nas mãos da maioria russa eslávica, enviou um número desproporcional de soldados para a guerra na Ucrânia. Eles lutaram e morreram em maior número pela visão pan-eslávica de Putin e, ao que parece, não querem mais fazê-lo. No início da guerra, muitos homens das muçulmanas Ciscaucásia e da Buriácia, onde as pessoas descendem de tribos indígenas mongóis, se juntaram à guerra voluntariamente, alistando-se para contratos militares que lhes trouxeram muito mais dinheiro do que qualquer outro trabalho local. Mas quando ficou claro que a “mobilização parcial” recaiu de forma mais pesada sobre essas chamadas repúblicas étnicas, enquanto os centros urbanos mais ricos foram deixados basicamente em paz (a cota oficial de Moscou foi apenas 16 mil, enquanto sua população ultrapassa em muito os 15 milhões), a fúria transbordou. A guerra intraeslávica na Ucrânia, tudo indica, também tinha se tornado uma campanha de limpeza étnica dentro da Rússia.
Os absorventes internos
Os homens que não fugiram, que acabaram sendo levados pela rede do alistamento, rapidamente revelaram a sabedoria de todo os que de fato fugiram. Alguns recrutas ouviram que teriam duas semanas de treinamento antes de serem enviados para enfrentar um Exército ucraniano altamente motivado, equipado com HIMARS (High Mobility Artillery Rocket System) e outros equipamentos ocidentais. Mas não foi sempre assim. Um homem que foi forçado a se juntar a uma divisão de tanques disse a defensores dos direitos humanos que ele e seus colegas de serviço estavam sendo enviados para a frente de batalha sem nenhum preparo. E, como se quisesse provar isso, na terça-feira, militares ucranianos postaram um vídeo de um soldado russo de 45 anos que foi feito prisioneiro. Ele afirmou ter sido convocado em Moscou em 21 de setembro de 2022 — no dia do anúncio de mobilização de Putin.
Os recrutas receberam rifles enferrujados e foram levados para bases militares que não tinham camas nem banheiros. Outros, feitos de madeira danificada, pareciam ter sido montados em outro século. Esses novos soldados pareciam ser os sortudos. Vídeos circularam nas mídias sociais mostrando recrutados dormindo em bancos; outros se aqueceram com fogueiras em uma área aberta.
Um vídeo mostrou uma oficial aconselhando os recrutas sobre o que deveriam levar de casa: sacos de dormir, água oxigenada, torniquetes (“não tenho torniquetes para todos vocês!”) e absorventes menstruais. “Sabem por que os absorventes internos?”, ela pergunta aos homens perplexos à sua volta. “Se você sofrer um ferimento à bala, coloque um absorvente interno ali, ele vai se expandir e pressionar todas as paredes. Aprendi isso na Chechênia.”
Isso significa apenas uma coisa: sem treinamento e mal equipados, esses homens estão sendo enviados para a Ucrânia como bucha de canhão. Nada mais. E todo mundo na Rússia sabia disso. Talvez seja por isso que de fato acabaram indo ao encontro do destino depois de receber a convocação e tenham se embebedado tanto que mal conseguiam andar.
Putin queria recrutar 300 mil homens, mas, de acordo com o Serviço Federal de Segurança, mais de 260 mil homens russos haviam fugido do país no domingo à noite, apenas quatro dias depois do anúncio da “mobilização parcial”. De acordo com os governos da Finlândia, do Cazaquistão e da Geórgia, cerca de 200 de cidadãos russos atravessaram a fronteira para chegar a essas repúblicas. Isso não inclui as dezenas de milhares de outros que fugiram para lugares como a Turquia, o Quirguistão, a Mongólia, o Uzbequistão e Israel.
Ficou óbvio agora por que Putin evitou fazer isso por tanto tempo. Manter a guerra como uma aventura distante e limitada possibilitou aos russos apoiarem o conflito e a ele mesmo. Contanto que a população russa não tivesse de enfrentar a realidade da guerra, do que significa lutar, e da fraqueza, da desorganização e da corrupção de suas Forças Armadas, ela podia continuar passiva, uma postura que foi treinada para manter nos 22 anos do reinado Putin. Mas ele cometeu um erro seguido de outro, primeiro iniciando a guerra e, depois, ao desconsiderar tanto os militares ucranianos quanto os apoiadores ocidentais. Enquanto a Ucrânia recuperava seu território com uma velocidade alarmante, ele teve uma escolha impossível de fazer: perder a guerra ou prejudicar o equilíbrio político em casa. Ele parece ter feito as duas coisas.
É o que temos até o momento, amigos. Não se esqueçam de ouvir nosso podcast, The Powers That Be, e de me ouvir no podcast de Preet Bharara, Stay Tuned, na quinta-feira. Até lá, boa noite. Amanhã será pior.
Julia
Leia também “Cem dias de guerra”
Descaradamente Putin.
É nisso que dá permitir poder demais a um só homem. Aqui no Brasil também temos alguém de alguma forma semelhante. Que o exemplo russo nos sirva de carapuça. Acho um horror esse negócio de destruir vidas ou carreiras por motivos fúteis.
Luladrao
A guerra separa homens de meninos.
Só existem dois tipos de caminho.
Oferecer direito ao indivíduo, como citado na declaração dos direitos humanos, ou concentrando poder no estado. Não há nada no meio.
Com o poder todo ali, bem concentrado, o maluco sempre aparece, e há mil exemplos disso, simplesmente porque um monte de carne atrai naturalmente urubus, não pardais. E o dia em que ele aparece, com o apoio de propaganda e um bando de idiotas úteis, ele vai te tirando tudo com a desculpa de “um bem maior” até que entra em sua casa e leva seu bem mais precioso, seus filhos.
Enquanto as pessoas tiverem preguiça de assumir seus próprios problemas e de seus irmãos, assumindo suas responsabilidades como verdadeiros seres humanos, isso nunca vai acabar.