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Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock
Edição 141

A política da bola

Copa do Mundo, ideologia, demagogia e geopolítica se misturam desde 1930

Dagomir Marquezi
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Se você está impressionado com a obsessão política da cobertura que a velha imprensa está dando à Copa do Mundo do Catar, é bom lembrar: sempre foi assim. Algumas Copas foram mais polêmicas, outras menos. Mas todas estiveram ligadas de um jeito ou de outro a interesses de governos e grupos ideológicos. É um evento grande demais para se limitar às famosas quatro linhas.

Aqui vai uma breve história dos fatos políticos que marcaram cada Copa, desde a primeira. Aconteceu de tudo: o sequestro de torneios por ditadores, inúmeros casos de corrupção, propaganda partidária e até uma guerra. A Copa do Mundo também refletiu, nesses 92 anos, as grandes transformações históricas e econômicas. Começou como um círculo fechado de europeus e sul-americanos e virou um evento global.

1930
Sede: Uruguai
Campeão: Uruguai

Vários países europeus se recusaram a viajar para a América do Sul, ainda que o governo do Uruguai pagasse a despesa. Era um sacrifício pesado transportar dezenas de atletas em navios, que demoravam semanas para chegar ao destino. Foi basicamente uma Copa Pan-Americana, com países das América do Sul, México e EUA. Da Europa, compareceram apenas Bélgica, França, Romênia e Iugoslávia.

1934
Sede: Itália
Campeã: Itália

Benito Mussolini foi o primeiro governante a reconhecer o poder midiático da Copa. O torneio foi transformado num instrumento de divulgação do regime fascista e do nacionalismo italiano. A própria Itália ganhou a Copa, e correram rumores de que il Duce escolheu pessoalmente os juízes. Altos membros do regime nazista compareceram à Copa. Quatro dias depois da final (contra a Tchecoslováquia), Adolf Hitler e Mussolini se encontraram pela primeira vez e assinaram a criação do eixo nazifascista.

Imagem da seleção da Alemanha fazendo a saudação nazista retirada da Illustrated Sporting and Dramatic News | Foto: Reprodução

1938
Sede: França
Campeã: Itália

O acordo era que as Copas alternassem sedes na Europa e na América Latina. Mas a Fifa rompeu esse acordo, causando o boicote do Uruguai e da Argentina. A Espanha também ficou de fora, por estar afundada na Guerra Civil. Dos 16 países participantes da Copa, 13 eram de seleções do continente, e apenas três do restante do mundo — Brasil, Cuba e as Índias Orientais Holandesas. A Áustria havia sido classificada, mas antes do início do torneio acabou sendo engolida pela Alemanha nazista. Segundo um artigo de Mick Hume para a revista Spiked!, a Copa de 1942 muito provavelmente seria disputada na Alemanha de Hitler. Mas a Segunda Guerra teve início no ano seguinte. E a Copa foi suspensa por 12 anos.

1950
Sede: Brasil
Campeão: Uruguai

Com o desastre provocado pela guerra, ninguém se interessava em retomar a Copa. O Brasil trouxe a Copa de volta à América do Sul. A frustração final no recém-inaugurado Maracanã virou lenda. A União Soviética e seus regimes satélites se negaram a participar. Entre os regimes comunistas, só compareceu a Iugoslávia, que era independente de Moscou.

Seleção da União Soviética | Foto: Reprodução

1954
Sede: Suíça
Campeã: Alemanha Ocidental

Uma Copa morna em termos de política e futebol. A Alemanha Ocidental ganhou, com um time amador, que havia perdido de 8 a 3 da Hungria na fase de grupos.

1958
Sede: Suécia
Campeão: Brasil

Foi a Copa que colocou o Brasil (e Pelé) no centro do futebol mundial. Um “mockumentary” (documentário falso) chamado Conspiracy 58 defendeu a tese de que a Copa de 1958 nunca existiu e que se tratou de uma conspiração entre a CIA e a Fifa como parte da Guerra Fria.

1962
Sede: Chile
Campeão: Brasil

Começou como a Copa mais violenta, especialmente num jogo entre o Chile e a Itália, que ficou conhecido como a Batalha de Santiago. O tempo esquentou quando dois jornalistas italianos descreveram o Chile em termos altamente ofensivos. A imprensa chilena respondeu descrevendo os italianos como fascistas e mafiosos. A partida entre os dois países foi tão violenta que dois jogadores foram expulsos, sobraram socos e pontapés, e a polícia teve de intervir quatro vezes. O episódio foi tão traumático que o juiz inglês Ken Aston, após o jogo, inventou o sistema de cartões amarelo e vermelho. O Chile ganhou de 2 a 0. O jogo foi descrito por um comentarista da BBC como “a exibição de futebol mais estúpida, terrível, nojenta e vergonhosa possivelmente na história do jogo”. E o Brasil, mesmo com Pelé contundido, saiu bicampeão.

1966
Sede: Inglaterra
Campeã: Inglaterra

A Fifa, uma federação tradicionalmente avessa a qualquer mudança, havia decidido que os concorrentes de três continentes (África, Ásia e Oceania), que somavam dois terços da população mundial, deveriam mandar apenas um membro para o torneio. Para piorar as coisas, o então presidente da Fifa, Stanley Rous, sugeriu permitir que o banido regime de apartheid da África do Sul participasse da competição. Segundo Rous, o país mandaria um time todo branco, em 1966, e um todo negro, em 1970. Por outro lado, a Fifa permitiu que uma das mais brutais e fechadas ditaduras do mundo, o regime comunista da Coreia do Norte, fosse autorizada a participar da Copa. E surpreendeu ao vencer a Itália por 1 a 0. Esta foi a primeira Copa com transmissão direta por TV.

1970
Sede: México
Campeão: Brasil

Depois do vexame de 1966, a Fifa escancarou o acesso ao torneio: 75 países de seis continentes participaram das fases de classificação, levando à disputa países que nunca haviam participado antes, como Israel e Marrocos. Em 1969, um dos jogos da fase eliminatória foi o estopim de uma guerra entre El Salvador e Honduras, que durou cem horas. O Brasil deu um show, com Pelé, Gerson, Tostão e Jairzinho, e ganhou todas as seis partidas das quais participou. O regime militar brasileiro, sob o comando do general Emílio Garrastazu Médici, usou a conquista para fortalecer o apoio popular ao governo. Com transmissão ao vivo e em cores, a Copa passou a ser um evento definitivamente global.

General Médici cabeceia bola de futebol, em comemoração à vitória do Brasil, no Palácio da Alvorada | Foto: Jair Cardoso/JPDoc JB

1974
Sede: Alemanha Ocidental
Campeã: Alemanha Ocidental

O número de participantes subiu para 98. A União Soviética foi desclassificada, por se negar a viajar até o Chile, onde um ano antes tinha havido o golpe militar contra o governo esquerdista de Salvador Allende. Um momento de tensão política aconteceu quando as duas Alemanhas, Ocidental e Oriental, se enfrentaram pela primeira vez. O lado comunista venceu por 1 a 0, mas no final o lado capitalista levou a taça.

1978
Sede: Argentina
Campeã: Argentina

Essa foi uma Copa politizada do começo ao fim. A partir do logotipo, que imitava um gesto do ex-presidente Juan Domingo Perón com os braços erguidos. Os militares haviam tomado o poder em 1976 e estabelecido uma ditadura brutal. A apenas 1 quilômetro e meio do Estádio Monumental estava localizada a Escola de Mecânica da Marinha, o principal campo de concentração e tortura do regime. A vitória da Argentina foi cercada de acusações de manipulação de resultados, tráfico de influência e suborno.

1982
Sede: Espanha
Campeã: Itália

O cenário político dessa Copa foi criado a partir da guerra das Falkland/Malvinas, oficialmente encerrada um dia após o início do torneio. Os governos da Inglaterra, País de Gales e Escócia ameaçaram sair da Copa se os argentinos não se retirassem. A situação era difícil, pois a Argentina era a campeã da edição anterior e tinha forte ligação diplomática com os anfitriões espanhóis. O governo de Margaret Thatcher decidiu permanecer na Copa para não dar chance de exploração política à ditadura militar argentina — que duraria só até dezembro do ano seguinte.

1986
Sede: México
Campeã: Argentina

Nas quartas de final ocorreu uma espécie de revanche da guerra das Malvinas: a Argentina ganhou da Inglaterra por 2 a 1. A grande estrela foi Diego Maradona, que marcou os dois gols, um deles ilegalmente com a mão, o outro driblando metade do time inglês. Dieguito se tornaria o grande ídolo do futebol argentino, mas seria derrotado pelo alto consumo de cocaína. Além disso, tornou-se um adulador de ditadores. Tinha tatuado na pele as figuras de Fidel Castro e Che Guevara. Chamou Hugo Chavez de “gigante”, declarou-se “chavista”, apoiou o boliviano Evo Morales, deu de presente uma camiseta autografada à ditadura dos aiatolás no Irã.

O ex-jogador Diego Maradona (à esq.) com os ditadores Fidel Castro (no centro) e Hugo Chávez (à dir.) | Foto: Reprodução/Flickr

1990
Sede: Itália
Campeã: Alemanha Ocidental

A essa altura, a Copa já reunia 116 países. O processo de seleção durava dois anos. Esta foi a Copa que marcou o fim da presença do império soviético. Países como a URSS e a Tchecoslováquia deixariam de existir em pouco tempo.

1994
Sede: EUA
Campeão: Brasil

Os Estados Unidos passaram a fazer parte definitivamente do mundo do que eles chamam de soccer. A seleção soviética foi substituída pela russa. As Alemanhas Ocidental e Oriental apareceram reunificadas pela primeira vez desde 1938. A Tchecoslováquia, em processo de dissolução, se apresentou como “Representação dos Tchecos e Eslovacos”, mas acabou desclassificada. A Iugoslávia havia sido suspensa de competições internacionais por causa da brutal guerra civil que a fracionou depois em oito países.

1998
Sede: França
Campeã: França

Outra Copa com alto grau de manipulação de resultados, segundo revelação do organizador (e craque) Michel Platini. Foi a Copa da final desastrosa do Brasil, que perdeu de 3 a 0, com Ronaldo passando mal. O toque político foi dado pelo jogo entre o Irã e os EUA, que viviam em estado de conflito permanente desde 1979, com a tomada do poder pelos aiatolás. Muitos temeram que o jogo terminaria em briga, mas os iranianos entraram em campo oferecendo flores aos norte-americanos. Irã 1 x EUA 0.

A seleção dos Estados Unidos recebeu flores da seleção do Irã em um jogo da Copa de 1998 | Foto: Reprodução

2002
Sede: Coreia do Sul/Japão
Campeã: Brasil

A primeira Copa realizada na Ásia. Japão e Coreia do Sul travaram uma feroz batalha internacional de relações públicas para sediar a Copa de 2002. Acabaram se unindo em uma parceria binacional inédita na história do certame. Essa parceria teve um significado político marcante, pois as cicatrizes da invasão japonesa durante a Segunda Guerra ainda não estão curadas. O número de países participantes subiu para 199. Numa vitória por 2 a 0 contra a Alemanha na final, o Brasil chegou ao recorde de cinco títulos.

2006
Sede: Alemanha
Campeã: Itália

Foi a Copa que trouxe os países da antiga Iugoslávia, como Sérvia e Montenegro. Outra Copa marcada por acusações de corrupção, para que a Alemanha fosse escolhida como sede. (Uma revista satírica enviou cartas à Fifa oferecendo relógios cuco e presuntos como suborno.)

2010
Sede: África do Sul
Campeã: Espanha

A primeira Copa realizada no continente africano. As acusações dessa vez foram dirigidas aos salários oferecidos aos mais 70 mil operários de construção. Acusações de corrupção pipocaram anos depois contra o comitê sul-africano, que teria pago US$ 10 milhões ao vice-presidente da Fifa, Jack Warner, pelo direito de sediar a copa.

2014
Sede: Brasil
Campeã: Alemanha

A Copa da administração petista, que gastou o que não podia em estádios enormes, que se tornariam estruturas inúteis espalhadas pelo país. Foi a Copa na qual o Brasil levou uma surra da Alemanha no esquecível 7 a 1. A então presidente Dilma Rousseff foi generosamente vaiada e xingada não só na abertura como no encerramento do campeonato. A Copa de 2014 foi um dos principais sinais de que a administração petista não tinha apoio popular — o que culminaria com o impeachment da presidente, dois anos depois.

Manifestação contra a Copa de 2014 | Foto: Reprodução EBC

2018
Sede: Rússia
Campeã: França

Parece incrível que o presidente Vladimir Putin há apenas quatro anos procurava projetar uma imagem positiva da Rússia como um país próspero, aberto ao mundo e organizado o suficiente para sediar uma Copa do Mundo. Gastou US$ 14,2 bilhões para isso. A escolha pela Fifa da Rússia como sede foi criticada por acusações de racismo, abuso de direitos humanos, preconceito contra homossexuais e pela anexação, quatro anos antes, da Crimeia, um território da Ucrânia. A Inglaterra ameaçou boicotar, mas na hora H todos os classificados compareceram. Bola pra frente.

Leia também “O show de horrores de Mark Zuckerberg”

3 comentários
  1. Danilo Amaral
    Danilo Amaral

    Faltou dizer que na Copa de 62, o brilhantismo foi do Mané.

  2. Luiz Pereira De Castro Junior
    Luiz Pereira De Castro Junior

    Muito boa Matéria !

  3. Letícia Iervolino

    Matéria incrível !

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