Quando Nancy Pelosi, então presidente da Câmara norte-americana, estendeu a mão para o ex-presidente Donald Trump, antes da apresentação do discurso anual do Estado da União, ele se recusou a apertá-la e virou as costas de forma grosseira. Ao fim do discurso, Pelosi rasgou a transcrição ostensivamente, como se o texto não valesse o papel em que foi impresso e devesse ser expurgado por completo dos registros históricos.
Esses dois gestos, infantis e impulsivos, podem ser considerados insignificantes, mas na verdade foram emblemáticos da maneira como a oposição política, não apenas nos Estados Unidos, foi transformada em algo muito mais profundo — um ódio e uma animosidade reais. Faz alguns anos que não vou aos EUA, mas amigos de lá me contam que pessoas de visões antagônicas quase não suportam estar na mesma sala juntas, e pais, se quiserem manter relações com os filhos, se sentem obrigados a evitar certos assuntos, sobre os quais existe discordância. Isso significa que eles ficam o tempo todo pisando em ovos, que nunca podem relaxar de fato com sua prole quando chegam a uma certa idade.
Por isso, leio com consternação que o presidente Bolsonaro não esteve presente na posse de seu sucessor e, portanto, não entregou a faixa presidencial. É um mau auspício para uma democracia em funcionamento, que, afinal, depende de uma certa delicadeza em aceitar a derrota, seja qual for o turbilhão interno que isso possa causar no perdedor. Não aceitar uma derrota dessa maneira é colocar, em ordem de importância, a si mesmo e à sua vida privada acima do país, e é uma manifestação de egoísmo em grande escala. Naturalmente, a gentileza precisa ser uma via de mão dupla, é difícil ser gentil com aqueles que são abertamente desdenhosos conosco, ainda que talvez isso seja possível para os santos. A santidade, entretanto, não é uma qualidade que se costuma encontrar na vida política, e, dessa forma, não se pode contar com ela para a promoção de um comportamento decente. Apenas a cultura da tolerância pode fazer isso.
Existe um culto de sinceridade no mundo moderno de acordo com o qual nada que esteja na mente de alguém deve ser contido
Lamentavelmente, quanto mais a tolerância é alardeada como uma grande virtude, ou até mesmo como a maior das virtudes, menos ela é praticada na vida cotidiana. Se as pessoas fossem tolerantes, não haveria necessidade de exaltá-la. Isso me faz lembrar a situação do rei da Espanha, que precisava mandar repetidas vezes seus decretos para seus vice-reis na América do Sul, porque eles tinham tão pouco efeito prático. Aos recebê-los, os vice-reis diziam: “Obedezco, pero no cumplo”. Somos assim com os preceitos morais sobre a tolerância: somos tolerantes, mas odiamos pessoas que não concordam conosco.
A tolerância requer um devido exercício de falta de sinceridade. Toleramos apenas o que nos causa desagrado, porque não há necessidade de tolerar coisas de que gostamos. Podemos pensar que alguém que tem uma opinião diferente da nossa é um canalha ou um idiota, mas não podemos ter uma discussão civilizada com essa pessoa se revelarmos nossa opinião sincera. Precisamos manter a hipocrisia e fingir que achamos que essa pessoa está apenas equivocada e, sendo alguém de inteligência e boa vontade, vai mudar de ideia graças à genialidade da nossa argumentação, e às evidências que apresentamos em favor da nossa própria opinião. Claro, a pessoa precisa fazer o mesmo.
Infelizmente, existe um culto de sinceridade no mundo moderno de acordo com o qual nada que esteja na mente de alguém deve ser contido. Porque, se for, vai infectar e acabar causando uma espécie de septicemia psicológica, que vai entrar em erupção como algo terrível, uma Cracatoa de fúria. Nessa escala de valores, a hipocrisia é o pior dos pecados, e não algo muitas vezes virtuoso e necessário, o óleo que mantém a vida tranquila e relativamente sem fricção.
Ao mesmo tempo, a opinião — política e social — se tornou a medida do altruísmo, talvez até a única medida do altruísmo, especialmente para a classe intelectual. São muitos os que me disseram que tinham medo de expressar suas opiniões na companhia de intelectuais, por medo de serem vistos como pessoas más, ainda que suas opiniões fossem comedidas e moderadas. A diferença de opiniões é, para os intelectuais modernos do Ocidente, o que a heresia era para a Inquisição em seus dias de glória. A excomunhão, até agora apenas de facto, e não de jure, se tornou o instrumento favorito de silenciar as dúvidas e gerar conformidade. Em nenhum lugar isso é mais verdadeiro do que nas universidades, onde, prima facie, seria possível esperar que a discussão aberta brotasse como em nenhuma outra parte. Ao contrário, o medo está à espreita nos bosques da academia. E é nos bares e nos botequins que se podem ouvir discussões genuinamente livres — além de, claro, muita bobagem, que é o primeiro fruto da liberdade.
Dessa forma, estamos vivendo sob dois imperativos opostos: o primeiro é ser sempre sincero, e o segundo, ser ao mesmo tempo tolerante. Só podemos reconciliar esses dois imperativos se transformamos a necessidade da tolerância em seu oposto, ou seja, afirmando que opiniões diferentes ou opostas à nossa são, em si, manifestações de intolerância, a única coisa que não podemos tolerar. Assim, começando na tolerância chegamos ao totalitarismo, isto é, o totalitarismo em nome da tolerância.
Nessas circunstâncias, é inevitável que a oposição política se torne uma hostilidade de fato, como se não houvesse nada capaz de unir pessoas de opiniões diferentes que fosse mais importante que as diferenças que nos separam, ou capaz de se sobrepor a elas. Um odium theologicum passou a permear a sociedade como um miasma, e a entrega de cargo de um presidente ou líder político para o outro se tornou praticamente uma guerra civil. O que nos separa é muito mais importante do que o que nos une: o que, claro, significa que a imposição da uniformidade deve ocorrer em nome da diversidade. Precisamos adotar a novilíngua, como em 1984, romance de George Orwell em que tudo significa o oposto do que significava antes, mas com algum vestígio da conotação antiga, como na nossa língua nativa.
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Li pelo menos 11 de seus livros. Abro com solenidade sua coluna aqui na Oeste. Mas não diria que tenha havido alguma quebra na liturgia quando Trump negou-se a cumprimentar Nancy. Esta senhora é uma cobra venenosa que destila seu veneno para qualquer ente republicano. E, claro, Trump finge desconhece-la; é um mestre arte da provocação. Um único sorriso seu basta. No caso de Bolsonaro os ingredientes são completamente distintos. Ele foi vítima de ataques sórdidos, de perseguição sistemática da claque petista. E Lula, pela inveja e ignara arrogância ataca sempre com golpes baixos. E, com que naturalidade Bolsonaro iria cumprimentar alguém que roubou a eleição numa escala que se reproduz mais ou menos neste cotejo; Lula não consegue reunir mil pessoas, ultimamente inclusive está na faixa abaixo dos 100. Bolsonaro junta um milhão e meio de patriotas na Avenida Paulista, na Esplanada dos Ministérios e por anda arrasta multidões, seja no Amazonas, no Rio Grande do Sul. Confira o que ele fará na Avenida Paulista neste Sete de Setembro.
Não concordo com o autor da matéria quando compara a discordância de ideias com relação a não coroação do rei no dia de sua posse. Essa “desfeita” ao eleito, tem outras nuances graves ignoradas pelo autor. Debater ideias mesmo sendo contrárias ao que acreditamos é positivo e desafiador, pois, se temos convicção naquilo que acreditamos devemos ser persuasivos e verdadeiros nos argumentos e nos exemplos principalmente.
adorei.
No caso americano foi apenas grosseria de ambas as partes no brasileiro havia o perigo real de Bolsonaro ser preso durante a posse.
Quando um escritor fica famoso, ele acha que pode escrever sobre qualquer assunto, mesmo que não entenda nada. Lamentável esse texto, o autor não entende nada de Brasil, não faz a mínima ideia do tamanho da fraude e de todas as articulações cabulosas protagonizadas pela cúpula imoral do judiciário, não tem a mais mínima ideia de quem seja o ex presidiário, os crimes que ele cometeu etc. Realmente, nós, brasileiros só temos a lamentar que um escritor do peso do Theodore , escreva sobre o que não sabe e não entenda. Perdeu uma ótima oportunidade de não escrever bobagens e de não manchar o seu currículo.
Eu concordo com você, o Bolsonaro teve motivos para não entregar a faixa e eu esperava isso dele. Mas o autor do texto, para mim, não parece estar criticando Bolsonaro, mas apenas mostrando como vivemos em um mundo que prega a tolerância, mas de fato é intolerante, não só nessa questão política. Veja o trecho logo após que ele cita Bolsonaro, ele comenta que a gentileza precisa ser uma via de mão dupla. Eu achei o texto muito bom, pois estamos vivendo de fato essas contradições, um totalitarismo, que impõe uma tolerância, e esmaga opiniões divergentes. Ou seja, intolerante.
Alguém deveria ter avisado ao excelente escritor britânico que a “derrota” não foi limpa, portanto aceitá-la seria compactuar com a fraude.
Bom texto, mas no tocante à realidade brasileira, a não passagem da faixa presidencial é menos uma birra que uma estratégia, a passagem da faixa, como pede o protocolo, sinalizaria uma aceitação do resultado, sendo que essas eleições devem sempre receber o carimbo da fraude!
Já que discorreu sobre intolerância e citou o Brasil, por que não foi mencionado o ditador, rei da intolerância que manda prender pessoas por crime de opinião, o Sr. Cabeça de ovo? Por que não citou o comportamento dos reitores, docentes e alunos de universidades que chegam a ameaçar quem pensa diferente? Ficou só no maniqueísmo Lula-bolsonaro, falando bonitinho, porém superficial.
Bolsonaro foi esfaqueado e Lula disse que foi armação. Lula, condenado em mais de uma instância, foi liberado pelo STF e empossado na presidência pelo TSE. É preciso ser uma barata para tolerar Lula na presidência e todo esse acinte ao povo.
Lamentável, texto demonstra total desconhecimento do autor sobre a realidade política brasileira. Que decepção, se o autor quer escrever numa revista deve antes estar bem embasado caso contrário ocorre um desastre como esse. Cuidado para não perder o emprego.
Ser tolerante com psicopatas é função de psiquiatras ou psicólogos! Eu não sou nenhum dos dois.
Meu Deus, ia fazer um comentário aqui mas o seu já lavou minha alma! Disse tudo!
Este texto só faz sentido para um país com uma democracia consolidada a séculos como os EUA…onde os freios e contrapesos institucionais realmente funcionam.
Surpreendentemente, Theorode Darlymple nao está por dentro dos detalhes do processso eleitoral no Brasil
O autor parece que tá num parque de diversões. Muito infantil
Theodore estranhou a intolerância de Bolsonaro e sua sinceridade porque não considerou que no Brasil destes nossos dias, a excomunhão é de “jure” e já chegamos ao totalitarismo. Entregar a faixa para um criminoso descondenado, aclamado presidente pelo Tribunal Superior Eleitoral, em uma eleição inaferível, com processo enviesado e inconstitucional, seria compactuar com a fraude. O crime, a ilegalidade e a mentira não podem ser tratados com condescendência.
O Sr precisa se informar melhor sobre o que aconteceu no Brasil.
Que decepção! Eu que sempre respeitei o Theodore como escritor e confesso, ficava ansioso para ler os textos escritos aqui na Oeste, escreveu uma bobagem sem tamanho. Obviamente ele não faz a menor ideia do que acontece no Brasil.
O problema desses modernistas é achar que tem que haver tolerância com o mal, o erro, a mentira…
Um ótimo artigo para compreender a profundidade intelectual do autor, ou não profundidade.
Seu texto está completamente deslocado e absolutamente contraditório
O Sr se coloca ante os “Intelectuais modernos do ocidente”, porém é o Sr. mesmo quem vos é este “intelectual” e deixa isso claro com o artigo escrito.
O seu primeiro traço marcante de um intelectual atualíssimo é a relativização de verdade e mentira, o Sr. coloca no mesmo balaio de gato honestidade e hipocrisia, diz que “A tolerância requer um devido exercício de falta de sinceridade… Infelizmente, existe um culto de sinceridade no mundo moderno… Precisamos manter a hipocrisia e fingir ”
Primeiro que não existe esse “culto à sinceridade” no mundo, pelo contrário, existe sim um “culto a hipocrisia” na qual o Sr se releva um praticante e enseja que os leitores sigam seu eloquente conselho.
Outro traço indispensável ao “intelectual moderno” que V.S.ª
compartilha é a exalação elevada de uma alta virtude, ou falsa virtude?
Na verdade não se trata V.S.ª de um mero praticante, claramente é um exímio hipócrita, pois é evidente a auto-imagem que busca passar de um verdadeiro tolerante. Que como ensinou no seu artigo, requer altas doses de falsidade na sua prática de dia a dia.
V.S.ª Tenta legitimar seu argumento absurdo de que é necessário ser hipócrita para ser “civilizado” “Podemos pensar que alguém que tem uma opinião diferente da nossa é um canalha ou um idiota, mas não podemos ter uma discussão civilizada com essa pessoa se revelarmos nossa opinião sincera.”
Mas estou aqui fazendo exatamente isso, lhe informando da sua monumental baboseira escrita, constatando sua hipocrisia confessada, e informando que estou tolerantemente aberto para uma discursão civilizada acercas dessas opniões.
Exatamente!
Este artigo me tirou uma dúvida a respeito do escritor inglês: se trata-se de um autor de primeira ou segunda categoria. Os exemplos que ele usa, a saber, a Inquisição católica e a questão de passar a faixa presidencial pro ladrão mafioso, mostra que ele nada sabe sobre estas matérias, que as usa de forma irresponsável e leviana, não me deixaram outra escolha: Dalrymple é um autor menor, de segunda categoria.
“Quem não sabe desprezar, não sabe respeitar.” – Friedrich Nietzsche
“Mostrar respeito a quem não o merece é aviltar a dignidade humana. Mas, no Brasil, é a primeira das obrigações cívicas.” – Olavo de Carvalho
Pode a tolerância se dar com a desonestidade intelectual? Ainda, caso supuséssemos que o lado oposto simplesmente busca o melhor por uma via diferente, talvez as afirmações deste artigo pudessem ser válidas, de entendimento. Mas e quando a premissa é oposta, ou seja, alguém tem por objetivo único destruir tudo o que é valor para o seu próximo, qual é a receita, senhor Dalrymple?
Passar a faixa a um criminoso, habilitado a concorrer por juristocratas ideologizados e comprometidos com um projeto de poder, mediante eleições eivadas de toda sorte de vícios e suspeitas, seria passar atestado de idiota e deixar com cara de palhaço milhões de brasileiros que foram escancaradamente enganados.