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Pôr do sol no rio Guaporé - Itenez (terra Indígena Vale do Guaporé). Rondônia fronteira com a Bolívia | Foto: Pedro Carrilho/Shutterstock
Edição 147

A dimensão humana na Amazônia

Além da demarcação das reservas, não é proporcionado aos índios o desenvolvimento de atividades econômicas que lhes deem sustentação

General Eduardo Villas Bôas
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As questões de Estados, como sempre, não fazem parte das preocupações dos governantes, dos parlamentares e de decisores em geral. Na última campanha, tais temas estiveram absolutamente ausentes. A Amazônia foi lembrada apenas em troca de acusações, ainda assim restritas às questões ambientais.

Desde o início da nossa conversa aqui em Oeste, tenho apresentado diversas nuances da realidade amazônica e levantado questões e tópicos importantes. Discutimos a importância da floresta para o Brasil; o ambientalismo como arma do imperialismo; a conquista, a ocupação e a defesa da Amazônia e, na edição mais recente, estratégia e geopolítica.

Agora, ao nos debruçarmos na elaboração de um planejamento para a Amazônia, do ponto de vista metodológico, alguns requisitos devem ser observados. Primeiramente, é preciso definir as dimensões principais que deverão balizar o processo de implantação. São elas: a dimensão humana ou social, a ambiental, a da ciência e tecnologia e a do desenvolvimento econômico.

Essas quatro ideias-forças, aplicadas com a ênfase requerida por cada contexto, permitirão que se compatibilizem todas as diferentes visões e atendam às necessidades dos múltiplos atores envolvidos.

Casa de madeira nativa e árvores na Floresta Amazônica | Foto: Shutterstock

Ensino, saúde, lazer, transporte e comunicações

Decorrente da necessidade fundamental e urgente de recolocar a pessoa humana como foco e razão principal de ser de todas as ações e de todo e qualquer projeto voltado para a Amazônia, a primeira delas deve ser a dimensão humana ou social.

Há cem anos, quando a Amazônia e suas populações se encontravam ainda totalmente livres de ameaças ambientais, Euclides da Cunha já observava que “…entre as magias daqueles cenários vivos, há um ator agonizante, o homem”.

Desde o advento do conceito de desenvolvimento sustentável, surgido na ONU, na década de 1980, o ser humano foi perdendo a importância relativa diante dos demais fatores. Os valores politicamente corretos adquiriram enorme poder de inibir outras visões, a ponto de impor um verdadeiro pensamento único, suprimindo da sociedade um mínimo de pragmatismo capaz de promover a alteração das realidades. O resultado é que estamos submetidos a um verdadeiro fundamentalismo ambiental, aplicado com caráter de intocabilidade.

Necessitamos resgatar os fundamentos de nossa cultura e mentalidade nacionais, compatível com nossa história, tradição cultural e fundamentos religiosos, principalmente diante de uma população que não consegue a satisfação de suas necessidades mais elementares. Nenhuma ação, independentemente de sua natureza, terá garantida a sustentabilidade se não for acompanhada da implantação das ações de caráter social e econômico que gerem uma expectativa de progresso para essas pessoas.

A capacidade de que desfrutam os meios de comunicação para chegarem aos mais remotos rincões provoca o surgimento de expectativas e de novas demandas, principalmente entre as gerações mais novas. Com isso, os projetos que não contemplarem ensino, saúde, lazer, transporte e comunicações acabarão por despertar, principalmente entre os mais jovens, o desejo de deslocar-se para onde lhes seja possível o acesso a esses benefícios.

Iniciativas altamente meritórias, em todos os sentidos, visando a proporcionar algum tipo de sustento a comunidades de natureza diversa, têm pecado por não conter em seu bojo, na perspectiva das pessoas teoricamente beneficiadas, a possibilidade de uma evolução integrada.

Vista aérea de uma típica oca indígena | Foto: Shutterstock

Expectativa de vida: 30 anos

No tratamento que se tem dado às questões indígenas, fica muito nítida essa inversão que se processa em relação ao ser humano. Ele perde o papel de protagonista, que, em contrapartida, passa a ser ocupado pela cultura a que ele coletivamente pertence. Como consequência, os indivíduos são sacrificados em prol da preservação da intocabilidade cultural, como se essa condição pudesse ser assegurada pela colocação de uma redoma sobre as comunidades a que pertencem. Os exemplos pontuais que se colhem por meio do convívio com aquelas realidades são inúmeros e acabam por demonstrar a existência de uma situação generalizada.

Os valores politicamente corretos adquiriram enorme poder de inibir outras visões, a ponto de impor um verdadeiro pensamento único, suprimindo da sociedade um mínimo de pragmatismo capaz de promover a alteração das realidades. O resultado é que estamos submetidos a um verdadeiro fundamentalismo ambiental, aplicado com caráter de intocabilidade

A comunidade Yanomami de Surucucu, no Estado de Roraima, junto à fronteira com a Venezuela, bem demonstra essa realidade. Moram em maloca circular, fechada lateralmente por madeira e coberta com palha, em cujo interior as famílias delimitam seu espaço com redes em torno de um fogo. Nesse ambiente, respiram um ar carregado de fumaça, que, associado à inexistência de hábitos de higiene elementares, e submetidos ao clima relativamente frio e úmido peculiar da altitude da Serra de Surucucu, resulta num alto índice de doenças respiratórias, mormente entre as crianças. A expectativa de vida entre aquela população pouco ultrapassa os 30 anos.

Maloca circular da comunidade Yanomami de Surucucu | Foto: Shutterstock

Uma prática comum naquela comunidade é a do infanticídio. Como é próprio da cultura original, as índias se dirigem para o interior da mata quando vão dar à luz. Por força de hábito cultural, é comum o sacrifício do recém-nascido se ele apresentar alguma deformidade, ou se nascerem gêmeos, ou ainda se o primeiro filho for do sexo feminino.

Esse “relativismo cultural” foi denunciado pela revista Veja, em sua edição de 16 de agosto de 2007, acompanhada da informação de que entre 2004 e 2006, cerca de 200 crianças de comunidades indígenas daquela região teriam sido sacrificadas, e que esta prática ocorre em pelo menos 13 etnias nacionais.

Na época, foi bastante divulgada a história da indiazinha Hakani, da etnia suruwaha, do sul do Estado do Amazonas, nascida em 1995. Por não se desenvolver como as outras crianças, foi condenada à morte. Acabou sendo salva por um casal missionário, que a levou da aldeia e depois adotou a menina. Esses fatos, denunciados pela revista Veja, podem ser confirmados no site que já foi hakani.org, hoje é atini.org.br, disponível na internet.

Reconhecemos a extrema importância que a preservação da identidade cultural indígena requer, em razão de sua fragilidade, quando em contato com outras culturas. A pergunta que se faz é: não teriam as ciências sociais desenvolvido alguma metodologia capaz de proporcionar àquelas populações um nível mínimo de hábitos que lhes permitam evoluir em sua qualidade de vida sem que necessariamente ocorra a perda da identidade cultural?

O que a realidade tem demonstrado é que a tentativa de manter intocados os universos culturais indígenas resulta em uma prática falaciosa, inviável e contraproducente, pois o contato acaba inexoravelmente acontecendo. Caso não seja assistido e orientado, ocorre por meio do descaminho ou de atividades ilícitas, ensejando, geralmente, o vício da embriaguez entre os homens, a prostituição entre as mulheres jovens, o garimpo irregular e a extração ilegal de madeiras.

Bioma preservado

Por outro lado, o tratamento dado à questão indígena em nosso país tem sido marcado por um forte viés geopolítico. Além da demarcação das reservas, não é proporcionado aos índios o desenvolvimento de atividades econômicas que lhes deem sustentação. Permanecem abandonados e é comum vê-los ameaçados em sua sobrevivência física e cultural.

Essa conjuntura fica muito clara quando se visita a comunidade Yanomami de Maturacá, aos pés do Pico da Neblina, poucos quilômetros ao sul da fronteira com a Venezuela. Os cerca de 1,6 mil habitantes, embora já não vivam em malocas, e sim em residência familiares, restringem seu consumo de proteínas ao que obtêm por meio da caça e da pesca, por não terem ainda alterado o traço cultural de não criar animais.

Trata-se de uma região em que os rios apresentam baixíssimo índice de piscosidade, e a caça já começa a rarear, exigindo dos homens vários dias de caminhada para obter um bom rendimento. O pouco que conseguem precisa ser moqueado (tipo de defumação realizada pelos índios), para que chegue em condições de consumo às famílias. Essa carência tende a se agravar, tanto pelo crescimento da população como pelo escasseamento natural da caça disponível.

Um dado importante a ressaltar é que aquela região tem seu bioma absolutamente preservado, não tendo até então sofrido nenhum tipo de dano pela ação de não índios. A tendência que se verifica é que, caso não se introduzam alterações nos hábitos regionais por meio de alguma atividade que lhes supram as necessidades, sérios problemas necessitarão ser administrados no médio prazo.

A pergunta que se faz é: não teriam as ciências sociais desenvolvido alguma metodologia capaz de proporcionar àquelas populações um nível mínimo de hábitos que lhes permitam evoluir em sua qualidade de vida sem que necessariamente ocorra a perda da identidade cultural?

Ironicamente, a consequência do agravamento dessa situação produzirá argumentos que irão engrossar o coro dos que advogam em favor da manutenção das comunidades indígenas em situação de total isolamento, criando-se, assim, um círculo vicioso.

Por outro lado, não há limites físicos nem distâncias que impeçam o contato eventual entre índios e não índios, principalmente coletores de grande mobilidade, como os seringueiros e os garimpeiros. Nesses contatos fortuitos, é comum algum tipo de escambo, no qual, em troca de alimentos, o não índio oferece seus utensílios. Se for, por exemplo, uma panela, a índia vai com certeza incorporá-la aos seus hábitos, sem conhecer a necessidade de lavá-la. A consequência, em pouco tempo, será a ocorrência de uma inevitável epidemia de diarreia na comunidade.

Garimpo em terras ianomâmis | Foto: Shutterstock

Esses e outros numerosos exemplos, frequentemente testemunhados por quem tem algum tipo de contato com as comunidades indígenas, mostram as dificílimas condições de vida a que estão sendo relegadas aquelas populações. Essas condições dificilmente serão revertidas caso não se restabeleça, também em relação a esses brasileiros, sua condição de seres humanos, acima de ideologias ou de doutrinas de qualquer natureza.

É chocante, após conviver com essas realidades, constatar o quanto elas são distorcidas quando trazidas à opinião pública nacional. Rarissimamente são divulgadas manifestações por parte dos índios, se elas não estiverem alinhadas com os argumentos ideologicamente filtrados.

Resumindo: no afã de preservar a cultura, sacrificam-se as pessoas.

Leia também “Conquista, ocupação e defesa da Amazônia”

11 comentários
  1. Ivan Dantas de Andrade
    Ivan Dantas de Andrade

    Como é bom ler um artigo escrito por quem entende do assunto. Infelizmente a hegemonia gramscista está entranhada no tecido social como uma metástase. Nós perdemos uma ótima oportunidade de ver chegar o futuro do país do futuro, cujo presente foi tomado pelos inimigos da Pátria.

  2. Muriel Virginio Cavalcante Franceira
    Muriel Virginio Cavalcante Franceira

    É necessário tratar cada vez mais sobre o assunto, principalmente sobre as condições dos Yanomamis, pois a grande mídia já está monopolizando a narrativa.
    Esta semana já há a denúncia sobre mortes infantis. O que está realmente acontecendo? O que houve durante os últimos 4 anos e que a imprensa não mostrou por causa da pandemia?

    O artigo é interessante, mas com pouco alcance. Há a necessidade premente de popularizar informações que não estejam contaminadas, como tenho visto em sites e TV.

  3. fabio de souza arcas
    fabio de souza arcas

    Mais uma aula brilhante sobre a Amazônia, a cada artigo lido fico contente e envergonhado de saber tão pouco sobre esse pedaço gigantesco do Brasil.
    Artigo excelente.

  4. Giovani Santos Quintana
    Giovani Santos Quintana

    Simplesmente perfeita a matéria! Sensacional. Parabéns Gen. Eduardo e a revista Oeste pelo trabalho de excelência e principalmente verdadeiro. Essas matérias sobre a Amazônia são importantíssimas pois para nós é uma realidade muito distante…uma humilde sugestão: Produzir um material que mostre um pouco da rotina e da cultura destas comunidades indígenas da Amazônia, seria muito bacana.

  5. Antonio Carlos Neves
    Antonio Carlos Neves

    Com esta extraordinária visão da realidade brasileira pelo General Villas Boas e outros do alto comando do Exercito Brasileiro como Mourão e Braga Neto, como foi possível assistir essa trama que conduziu um condenado a se eleger novamente Presidente da República com o aval do alto comando do Judiciário e de estranhas personalidades políticas como os tucanos FHC, Alckimin e outras figuras que admirei no passado, e hoje aos 77 anos tenho vergonha ter sido tucano. Não haveria necessidade de qualquer golpe, mas simplesmente as FFAA poderiam impor a autoridade que possuíam junto da população brasileira, que as urnas eletrônicas fossem AUDITÁVEIS com o VOTO IMPRESSO.
    Assim sempre se manifestou o presidente Bolsonaro, que entregaria a faixa para o vencedor com eleições transparentes e auditáveis. Logicamente estariamos pacificados se realmente fosse o desejo da maioria da população brasileira a volta do condenado à cena do crime, como disse Alckimin em passado recente.

  6. Galeno Magalhaes
    Galeno Magalhaes

    Esse tema deveria ser discutido nas midias, nas escolas, universidade e etc. Porem não vemos isso infelizmente. Excelente artigo

  7. Luiz Fraga
    Luiz Fraga

    O que adianta, Sr. General, todo esse papo sobre “Conquista, Defesa e Preservação da Amazônia” se o ‘inimigo’ tomou o Poder Central em Brasília?!
    O senhor, por acaso, já leu o artigo de Rodrigo Constantino desta mesma edição de Oeste?!
    Com todo o respeito, mas o senhor está vivendo em algum País Paralelo?!
    Não é DEVER das FFAA, previsto na CF, a Mnt da Lei e da Ordem, bem como dos Poderes Constituídos?!
    O senhor ainda acha mesmo que:
    O Brasil é uma “democracia robusta e amadurecida”?
    As nossas Instituições são “fortes”?
    Nós vivemos hoje a plena normalidade constitucional e democrática?
    O nosso EDD funciona à quase perfeição?!
    As nossas urnas são infalíveis?!

  8. Antonio Ruotolo
    Antonio Ruotolo

    Muito esclarecedor este artigo. Parabéns

  9. Valesca Frois Nassif
    Valesca Frois Nassif

    Muito interessante e informativo! Parabéns, general! Espero que continue a nos brindar com seu conhecimento que é certamente enorme! Sempre digo que muito mais pessoas deveriam ter acesso à revista Oeste e poder desfrutar do brilhantismo de seus colaboradores!

  10. FERNANDO
    FERNANDO

    Brilhante General!!!!!

  11. Marcos Antônio Braz lucas
    Marcos Antônio Braz lucas

    O Presidente Bolsonaro foi quem mais defendeu a independência dos indígenas.

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