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Ausência dos poderes harmônicos e independentes entre si | Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock
Edição 150

Por muito mais liberdade do que dominação

Segundo Montesquieu, com os Poderes divididos em diferentes instâncias, com autonomia e limites entre eles, seria impossível a formação de um regime tirânico ou autoritário

Gustavo Segré
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Charles-Louis de Secondat, Barão de La Brede e de Montesquieu (1689-1755), foi um político e escritor francês, formado no Iluminismo que varreu o continente, e provocou mudanças radicais na forma de governar. Em sua obra O Espírito das Leis, questiona ironicamente a monarquia, criando um dos textos que pressupõem um sistema constitucionalista de governo.

Montesquieu demorou 20 anos para escrever a obra e nela expôs suas ideias a respeito da aplicação da lei de maneira uniforme e comum a todas as pessoas, independentemente de quaisquer questões. O livro foi publicado em 1748, na cidade de Genebra, primeiro de forma anônima. Contudo, pela maneira da escrita, a sociedade atribuiu rapidamente a autoria a Montesquieu (que finalmente confirmou ser o autor).

O Espírito das Leis defendia a teoria de que, para obter sucesso no poder, deve-se compreender que existem diferentes classes sociais (e econômicas), mas que os membros da sociedade tinham algumas necessidades semelhantes. A base era educar o cidadão no sentido de entender que as leis eram o caminho certo a se seguir.

O Poder Judiciário deve ser nulo e invisível, ou estaremos negando a tripartição dos Poderes

Barão de Montesquieu | Foto: Reprodução

Os principais pilares de sua tese eram cinco:

  1. Distribuição do controle dos Estados em Três Poderes;
  2. Escolha de uma única forma de governo (republicano, despótico ou monárquico);
  3. Manutenção das regras e das leis;
  4. Preservação da liberdade;
  5. Abolição da escravatura.

Na formação da República, teve importância superlativa a distribuição do Estado em Três Poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. O objetivo era afastar governos absolutos e evitar a produção de governos autocráticos (com poder ilimitado e absoluto nas mãos de uma única pessoa).

O Brasil ratificou esta modalidade republicana quando, pela Constituição brasileira de 1988, o Princípio da Separação dos Poderes foi estabelecido, no Art. 2º, sob o título dos princípios fundamentais, e constitui uma das cláusulas pétreas (lei que não pode ser alterada) do ordenamento jurídico brasileiro. Segundo Montesquieu, com os Poderes divididos em diferentes instâncias, com autonomia e limites entre eles, seria impossível a formação de um regime tirânico ou autoritário.

O filósofo delimita o papel de cada Poder, afirmando, por exemplo, que ”tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado dos Poderes Legislativo e Executivo. Se estivesse unido ao Poder Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao Poder Executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor”.

O Poder Judiciário deve ser nulo e invisível, ou estaremos negando a tripartição dos Poderes. Isso porque “o poder de julgar, tão terrível entre os homens, como não está ligado nem a certo estado, nem a certa profissão, torna-se, por assim dizer, invisível e nulo” (VASCONCELOS, 1998, p.31).

Sem quase perceber, o Brasil passou a abdicar de Montesquieu e sua divisão de Poderes — cuja ideia remonta a Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.), na Grécia antiga, e ao iluminista John Locke (1632-1704) — e passou a migrar para outra teoria de poder. Mais exatamente à “dominação legitima”, de Max Weber, que disserta sobre as formas de legitimação do poder.

O Poder Judiciário já está muito longe de ser “invisível e nulo”, e começou a “colaborar” com o Poder Executivo em diversas determinações. De um dia para o outro, a Justiça passou a ditar limites à liberdade de expressão, impedindo que determinadas palavras pudessem ser usadas para se referir a determinada pessoa. Muitos meios de comunicação sentiram a canetada de quem deveria cuidar das leis e da Constituição, ao terem seus canais do YouTube desmonetizados e com a Justiça definindo o que podia ou não ser dito.

Imagem do filósofo Aristóteles | Foto: Reprodução

Livres pensadores, jornalistas, comentaristas e até humoristas começaram a ter redes sociais em shadowban (ficam como redes fantasmas), contas bancárias bloqueadas, passaportes cancelados e até pedidos de prisão. Voltou a aparecer a figura do exilado ideológico, e muitos começaram a sentir medo de se expressar com liberdade. Havia sempre o risco de acabar na lista negra daqueles que deveriam defender a Carta Magna. Determina o Art. 220: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”.

Até aquele momento, qualquer um podia se referir ao ex-presidente Bolsonaro como genocida, fascista ou o que desejasse manifestar. Tais afirmações não representavam risco de censura. Mas a realidade mudou absurdamente rápido. Hoje, expressar alguma crítica ou desconforto com o atual governo em redes sociais, canais do YouTube, emissoras de TV ou rádio pode representar o fim do contato dessa pessoa com a sociedade.

O assunto é muito grave (e é curioso que poucos meios de comunicação nacionais e internacionais divulguem o que está acontecendo). É difícil prognosticar o futuro, mas, se até aqui foi possível acompanhar o andar da República nas mãos de Montesquieu, vale a pena compartilhar parte da obra de Max Weber para estarmos preparados para o que possa vir.

Dominação legítima

Weber explica que existem três tipos de “dominação legítima”, como podemos ler na obra Economia e Sociedade (volume 2). A “dominação”, como conceito mais geral e sem referência a algum conteúdo concreto, é um dos elementos mais importantes da ação social. Sem dúvida, nem toda ação social apresenta uma estrutura que implica dominação. Mas, na maioria de suas formas, a dominação desempenha um papel considerável, mesmo naquelas em que não se supõe isso à primeira vista.

O Estado se apresenta como uma forma de dominação social e política sob vários tipos ideais (dominação carismática, dominação pessoal, burocrática etc.).

Na obra, Weber afirma: “Por ‘dominação’ compreenderemos, então, aqui, uma situação de fato, em que uma vontade manifesta (‘mandado’) do ‘dominador’ ou dos ‘dominadores’ quer influenciar as ações de outras pessoas (do ‘dominado’ ou dos ‘dominados’), e de fato as influencia de tal modo que estas ações, num grau socialmente relevante, se realizam como se os dominados tivessem feito do próprio conteúdo do mandado a máxima de suas ações com obediência)”.

O curioso no caso do Brasil é que a verdadeira dominação não está sendo aplicada diretamente pelo Poder Executivo da República, e sim pelo Poder Judiciário, que, em tese, deve ser o contraponto dos outros dois Poderes. Sem dúvida a dominação social se aplica nesta nova realidade do Brasil, não importando quem a executa, e sim quem a sofre.

Max Weber, 1918 | Foto: Wikimedia Commons

Princípios fundamentais

O Barão de Montesquieu era uma referência do Iluminismo e, portanto, nada melhor do que compartilhar, como parte final desta reportagem, os princípios fundamentais desses livres pensadores. Elencando:

Liberdade de expressão: a possibilidade de as pessoas expressarem livremente suas ideias e pensamentos, sem por isso ser censuradas ou penalizadas de outras formas;

Empirismo: a ideia de que todo o conhecimento só pode ser obtido e tomado como verdade a partir do momento que é comprovável na prática, com testes;

Jusnaturalismo: a ideia de que o ser humano possui uma dignidade própria e direitos inerentes à sua condição. São eles: a vida, a liberdade e a busca da felicidade;

Tripartição dos Poderes: um governo justo e equilibrado não concentra todas as suas funções em um só grupo ou pessoa; portanto, é bom e justo que haja Três Poderes: o Legislativo, criador de leis; o Executivo, administrador da nação; e o Judiciário, que julga o descumprimento das leis;

Contrato social: a ideia de que as sociedades devem estabelecer um acordo entre governante e governados para que haja um governo legítimo. Ou seja, o povo abdica de sua liberdade absoluta para viver em sociedade sob o governo de leis e de um representante. Assim, a soberania do governo reside na vontade do povo, não na do governante;

Racionalismo: a valorização da razão e a crença que ela é a única via de obtenção do conhecimento;

Cientificismo: a valorização da ciência e do método científico empírico como via de conhecimento e progresso da humanidade;

Livre-comércio: a não intervenção do Estado na economia, fator que garantiria um maior desenvolvimento econômico;

Propriedade privada: o direito dos homens de adquirirem a posse de bens para usufruir a seu modo;

Igualdade jurídica: a abolição dos privilégios de casta ou classe na sociedade — todos os homens tornam-se iguais perante a lei;

Liberdade religiosa: a possibilidade de escolher qual religião professar;

Liberalismo: a doutrina da liberdade individual, social, política e econômica.

O dramaturgo francês Philippe Néricault Destouches teve como uma das suas frases mais famosas a seguinte: “Os ausentes nunca têm razão”. Ela mostra que está na hora de trabalharmos, cada um desde as nossas fortalezas (econômicas, sociais, de comunicação, jurídicas etc.), para que Brasil volte a ter, nas suas estruturas de poder, um balanceamento muito mais perto de Montesquieu do que de Max Weber.

Por muito mais liberdade do que dominação.

Instagram: @segre.gustavo

Leia também “O líder dos cucarachas”

6 comentários
  1. Abraão
    Abraão

    Mt bom 👏👏👏

  2. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Começando dos princípios fundamentais de uma república democrática: escrutínio público nas eleições e ponto final. Se não há, estamos numa tirania

  3. Otacílio Cordeiro Da Silva
    Otacílio Cordeiro Da Silva

    “OS AUSENTES NUNCA TÊM RAZÃO”. Boa frase. A Direita que o diga. Se quisermos ter uma ideia bem simplificada da coisa, basta passar as vistas nos comentários aqui da revista. São sempre os mesmos anônimos. Onde estão os outros – os outros dos nossos, claro – deste país continental? Não os vejo. Mas eles existem aos milhares. Na minha concepção, a Direita tem nas mãos o melhor de nossa cultura e conhecimento. Se não fosse assim, ninguém iria se preocupar com que disséssemos ou deixássemos de dizer. Muito pelo contrário. Seríamos todos tolos e a sociedade em geral gosta muito de ouvir o tolo. Traz momentos de descontração. Mas não, a censura não chegou para todos, chegou para nós. Sempre que damos um passo atrás, o inimigo avança. A coisa tomaria outro rumo se todos dissessem o que sabem. Precisamos de ideias sobre a mesa, não no armário de nosso ego.

  4. Emanuel Cardoso Mendes
    Emanuel Cardoso Mendes

    Excelente artigo. Parabéns!

  5. Daniel BG
    Daniel BG

    Grato ao texto completo e ideias precisas.

  6. Lilian Pedro da Silva Bastos
    Lilian Pedro da Silva Bastos

    Maravilhosos os artigos

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