No quadro de Gustave Hastoy, o marechal que proclamou a República está prestes a assinar a primeira Constituição do novo regime. Empunhando a caneta, Deodoro da Fonseca é contemplado por 15 homens e uma mulher. Só ela está de costas. O rosto de Mariana da Fonseca é o único que o pintor ocultou. Por ser casada com quem era, ela participou da cerimônia. Mas em 1891 as brasileiras não votavam, não podiam meter-se em disputas eleitorais e aprendiam desde a infância que política não era coisa para mulheres. Mesmo que fosse casada com o chefe de governo, uma mulher não tinha rosto. Durante a República Velha, aliás, ninguém chamava de primeira-dama a esposa do chefe da nação. A expressão passou a ser usada depois que os vitoriosos comandantes da Revolução de 1930 estenderam às brasileiras o direito de votar e ser votada.
A linhagem foi inaugurada pela gaúcha Darcy Sarmanho Vargas, que na primeira passagem de Getúlio pelo poder demarcou o campo de ação em que agiria: concentrou-se em programas sociais que ampliaram a força do marido entre eleitores pobres. Entre 1930 e 1945, e depois no governo constitucional de Getúlio, ela dividiu-se entre a administração de assuntos domésticos e a gestão de entidades como a Legião Brasileira de Assistência ou a Casa do Pequeno Jornaleiro. Darcy também ensinou que, na vida de uma primeira-dama, o triunfo pode ser a antessala da tragédia — ou o contrário. Em menos de dez anos, foi testemunha e protagonista da deposição do marido, em 1945, da volta ao poder, em 1950, e do suicídio, em 1954.
Como Getúlio, que era mais sensível ao que ouvia da filha Alzirinha do que lhe dizia Darcy, Jair Bolsonaro parece ter encontrado nos filhos os consultores favoritos. Mas nenhuma alteração no projeto da Nova Previdência foi acolhida com tanto entusiasmo quanto a supressão do tópico segundo o qual deficientes físicos e intelectuais deixariam de receber o benefício da pensão integral depois da morte dos pais. “Pedidos da primeira-dama são irrecusáveis e inadiáveis”, decretou o marido de Michelle. A voluntariosa mulher do presidente da República mostrou que não seria uma figura decorativa já no dia da posse, quando recorreu à Língua Brasileira de Sinais (Libras) para discursar antes do primeiro pronunciamento do novo presidente. O episódio incluiu Michelle no diminuto grupo das primeiras-damas que ultrapassaram a fronteira riscada por Eloá do Valle: “Política é coisa para os homens”, conformou-se a mulher de Jânio Quadros.
A maioria das primeiras-damas adotou a doutrina da pouca interferência em questões políticas. Nem por isso escaparam de tempestades que não provocaram, e todas constataram que, no Brasil, o casamento com o nº 1 está longe de configurar um passaporte para o paraíso. Casada com Michel Temer, a paulista Marcela percorreu uma trajetória extraordinariamente menos atormentada que a imposta pelo destino à fundadora da linhagem. Livre de pequenos jornaleiros, pôde estabelecer uma rotina resumida numa capa da revista Veja: bela, recatada e do lar. Em contrapartida, a saga de Maria Thereza Goulart confirmou que o percurso entre o céu e o inferno, cronometrado pelo relógio da História, pode ser vencido num punhado de segundos. Maria Thereza tinha 15 anos quando virou namorada do conterrâneo de São Borja que, a caminho dos 40, já fora ministro do Trabalho do governo Vargas e herdaria parte do espólio eleitoral de Getúlio. Ainda era adolescente quando se casou com o vice-presidente da República. Acabara de passar dos 20 quando a renúncia de Jânio Quadros a transformou em primeira-dama.
Foi a mais jovem, bela e injustiçada das primeiras-damas do Brasil. O rosto anguloso e a expressão tristonha de miss no desfile de despedida ornamentaram incontáveis capas de revistas e fizeram suspirar tanto figurões nativos quanto dignitários estrangeiros. Maria Thereza nem chegara aos 30 na madrugada de 2 de abril de 1964, quando soldados invadiram a Granja do Torto, onde vivia em Brasília, ordenaram-lhe que juntasse o que coubesse numa mala e a embarcaram rumo ao exílio. “Não sei o que foi feito dos meus vestidos, dos objetos pessoais, das minhas coisas”, lastimava Maria Thereza. Ela deixou o país sem saber do paradeiro do marido, que reencontraria dias depois no Uruguai. Ela contaria mais tarde que Jango ignorou sistematicamente o apelo que formulou ainda nos tempos de noiva e repetiu até as vésperas da viuvez, consumada em 1976: ela só queria que o marido deixasse de ser mulherengo.
Esse traço comportamental talvez tenha sido a única semelhança entre João Goulart e Jânio Quadros. Ao contrário do gaúcho introvertido, o sul-mato-grossense de Campo Grande amava fantasiar-se de marido exemplar. “Eloá manda em mim”, jurava em público o homem que, sem desconhecidos por perto, jamais perdeu chance alguma de justificar a fama de priápico. Nesse quesito, como atestam anotações nos diários de Juscelino Kubitschek e Getúlio Vargas, Jânio honrou a linhagem dos chegados a uma aventura extraconjugal. A gaúcha Darcy, com discrição de mineira, reagia com longos períodos de mudez à descoberta de furtivas incursões do marido por alcovas cujo endereço figurava entre os segredos de Estado. A mineira Sarah, com impulsividade gaúcha, explodia em bíblicos acessos de cólera, sobretudo depois que soube da paixão de JK pela socialite Lúcia Pedroso.
A antropóloga Ruth Cardoso foi a única da estirpe com profissão definida, luz própria e mente brilhante, singularidades que explicam a rejeição do título que lhe parecia depreciativo
Entre 1930 e 1964, a única primeira-dama dispensada de surtos de ciúme foi Carmela Telles. Ao casar-se com o tenente Eurico Gaspar Dutra, aquela viúva de 30 anos já era mãe de dois filhos e abrigava na cabeça a ideia que rimava com o apelido que a canonizou em vida: Dona Santinha. Ela não descansou até conseguir que o marido, em abril de 1946, decretasse o fechamento de todos os cassinos no Brasil. Foi o desfecho da conspiração arquitetada por amigas carolas, padres, bispos e outras autoridades eclesiásticas que visitavam o Palácio Guanabara quase toda noite. Eram tantos e tão assíduos que a residência oficial do presidente ficou com cara de palácio episcopal.
Aberto pelo viúvo Humberto de Alencar Castello Branco, o ciclo dos generais-presidentes ressuscitou a figura da primeira-dama em 1967, com a posse conjunta de Arthur e Iolanda Costa e Silva. A paranaense extrovertida e saliente usou o tempo gasto com gente fardada no convívio com ricaços ansiosos por uma audiência com o presidente. De março de 1967 a 28 de agosto de 1969, a tramitação de um pedido a Costa e Silva foi encurtada por colares, pulseiras ou brincos. Essa via rápida para o Planalto foi obstruída pelas também gaúchas Scylla Médici e Lucy Geisel, uma soma de duas introversões que resultou em dez anos de silêncio. O barulho recomeçou em 1979 com a ascensão do casal João e Dulce Figueiredo. Ela fazia de conta que não sabia das escapadas noturnas do marido: tão logo Dulce embarcava para uma festa no Rio, Figueiredo driblava o esquema de segurança cavalgando motocicletas e desaparecia na noite de Brasília. Foi assim que Figueiredo se transformou no único presidente que produziu um filho fora do casamento enquanto tentava governar o país. Em contrapartida, Dulce foi a única primeira-dama que dançou com o ator Omar Sharif.
As diferenças entre as sucessoras de Dulce Figueiredo confirmaram que não há uma só receita de primeira-dama. Marly Sarney ficou cinco anos no cargo sem que a alma e a cabeça saíssem do Maranhão. Mulher do carioca Fernando Collor, que via no Brasil uma versão agigantada de Alagoas, Rosane Malta transformou a Casa da Dinda, onde morou em Brasília, numa extensão da Canapi em que nascera, e alternou contrafações de lua de mel com brigas conjugais de assustar o mais feroz dos cangaceiros. A antropóloga Ruth Cardoso foi a única da estirpe com profissão definida, luz própria e mente brilhante, singularidades que explicam a rejeição do título que lhe parecia depreciativo. “Primeira-dama é uma caricatura do original americano, esse cargo não existe”, ensinou a paulista de Araraquara que concebeu o conjunto de ações enfeixadas no programa Comunidade Solidária. A mulher de Fernando Henrique Cardoso nem precisou pedir ao marido que fizesse algo. Bastou que FHC a deixasse agir.
Leia também “Vidas suspensas”
Agora, sou assinante e estou “maratonando” pelos belíssimos textos da Revista Oeste. É sempre um prazer ler seus textos e assistir seus comentários no programa Oeste Sem Filtro. Obrigada por tanto nos ensinar com sua maestria. Deus o abençoe. Rosana Vargas – Porto Seguro / BA.
Excelente texto! Mas onde está a segunda parte? Quero ler mais.
Eu achei que faria a compra de uma revista online, porém, ganhei foi um presente de valor incomensurável. Muito agradecida.
Excelente texto, primoroso como sempre.
Parabéns Augusto!👏🏻👏🏻Sempre brilhante nos comentários e nos seus posicionamentos 👏🏻Você é a nossa voz👏🏻👏🏻
Parabéns Augusto!👏🏻👏🏻Sempre brilhante nos comentários e nos seus posicionamentos . Você é a nossa voz!
Brilhante reportagem investigativa. Augusto Nunes sem “papas na língua”. O melhor!
Delícia de leitura! Como sempre, muito bem escrita. Só tenho a agradecer, Augusto.
Boa reedição da história das primeiras-damas!
Estou tendo problemas para visualizar os conteúdos, tenho assinatura mensal, ja enviei email algumas vezes, estou logada e nao consigo ler tudo… pede para assinar.
Miriam, Oeste agradece por sua mensagem.
Enviamos um e-mail para você para resolver essa questão.
atenciosamente,
Revista Oeste
A 1a parte foi brilhante!
Cadê a segunda?
D. Marisa, algum primeiro damo de Dilma, Marcela, Michele, Janja.
Quero só ver como A.Nunes vai pintar um quadro conciliando, com a única tinta de Primeira Dama, matizes muito distantes, retratando perfis impossiveis de se comparar.
E… como comentou as puladas de cerca masculinas, não teria nada a comentar sobre as possíveis e mais secretas ainda escapadas das “casadas com o poder”?
e a Janja !???
Quanta fofoca.
Olha, FHC não merecia uma esposa como a Ruth Cardoso, francamente.
apoiado
Mestre Augusto Nunes espero que na 2ª parte você comente sobre os casos extraconjugais do sr. FHC. Afinal, não só se aponta dedos a uns e a outros se esconde a careca…
“Janja” certamente será um prato cheio para a “segunda parte”; chegamos, realmente, ao fundo do poço. Ansioso para ler; deverá ser muito divertido; a cafonice explícita, representada por esse personagem, oferecerá um farto material; já estou rindo “in anticipo”.
Artigo brilhante!
Artigo muito bom, Augusto Nunes! No aguardo da segunda parte!
Muito bom, Augusto. De todas, D. Ruth continua sendo minha favorita.
Parabéns Augusto, pelo o excelente texto, escrito com extrema maestria e sutileza.
O que, entre outras variantes, se percebe pela leitura deste ótimo artigo-história é que o ser humano deixa a claríssima DENOTAÇÃO de que não muda nunca; que, ao longo do tempo, de anos, de séculos, entrega-se às mesmas bobagens, aos mesmos vícios, aos mesmíssimos desjeitos, à mesma existência trôpega.
Fantastico Augusto.
Augusto Nunes: Confesso que desconhecia o lado “priápico”(sic) do ex-Presidente originário de Mato Grosso do Sul. Pensava que ele fosse exclusivamente “vassourápico”.
A propósito, “priápico” é de LASCAR O CANO!
Hehehe
Considerando o afresco de Príapo em Pompéia, devia mesmo lascar os canos.
E foi a 1a vez que vi referência direta a este detalhe anatômico de qualquer político do topo e muito menos sobre sua aplicação.
Muitas referências metafóricas do que os do poder impõem ao povo, sim, isso tem muito.
Mas assim, uso concreto na calada da noite, nunca tinha visto.
Excelente homenagem as mulheres! Muito bom.
Bellíssima análise mostrando o que é ser a prima-dona do patropi resgatando a importância da filha Alzira no mandarinato do grande Getúlio, a discrição da belíssima Marcela e a imponência de Ruth Cardoso e espero que o próximo capítulo faça justiça à mais poderosa primeira dama de fato deste país a sra. Roze Noronha (onde anda tão corajosa dama?) que ousadamente passando por cima do primeiríssimo sinistro Zé Dirceu impotente e silente terceirizou escritório do Planalto em Sampa para com seu Odorico Paraguaçu propinarem como bem desejavam e sem medo viajava clandestina no Aero-51 nas viagens presidenciais com malas rechegadas com milhões de dólares e euros para santificados depósitos no mais sacrossanto Banco Espírito Santo sob bênçãos e providencial esquecimendo de tantos … e priápico era o Jânio hein Nunes? se liga.
Por que não está mais disponível a versao falada dos artigos? Tenho dificuldade visual.
Henrique Storto Netto
[email protected]
Sr. Henrique, boa tarde
A versão em áudio permanece disponível. Por favor, recarregue a página e verifique se a opção aparece para você.
atenciosamente,
Revista Oeste
Faltou definir a atual..
Esperando a segunda parte. Esses bastidores presidenciais estão imperdíveis e Augusto Nunes trata eles, até os mais escandalosos, como magnífica delicadeza, educação e sem dúvida muita graça.
Vc devia que comentado que FHC teve tb um caso com uma jornalista, não foi?
Augusto, vc não falou sobre Mariza Letícia, que deixou de herança 5 milhões de reais. Ela trabalhou tanto, que merecia ser lembrada.
Aguarde o segundo capítulo Liz que o priapismo certamente virá já que poder sem roubo, drogas e sexo é poder fichinha .. Nunes pegou leve com dona Mariza a empreendedora símbolo das revendedoras da Avon enriquecida sob árduo trabalho para deixar milhões pro trapaLhadrão torrar lambendo canja que faz um bem danado depois de uma canjibrina pesada.
Uma verdadeira aula da nossa história política. Já com mais de 70 anos e ter passado por muitos presidentes, o texto nos prende atenção com tanto detalhes. Magnífico.
Augusto Nunes desfila com verdadeira maestria entre as mulheres dos presidentes…os destaques são poucos, mas nos leva a pensar nas mulheres que se elegeram a cargos políticos…DEUS NOS LIVRE DE MUITAS MULHERES DE PRESIDENTES E POLÍTICAS. Mas enquanto ELE nos põe a prova, nos conceda forças, meu Deus.
Opa e o resto das “Primeiras Damas “, não, são ou o que? de importantes; NÃO contaram; São ” insignificantementes ” decorativas; o QUE temos a saber delas. Bom, temos uma que vendia AVON ???, outra que era funcionaria de ESTATAL ??? , uma que era funcionaria do CONGRESSO ??? e só ? Oxente e sooooó ????
A citação da “contrapartida” da D.Dulce é uma das cerejas do bolo.! Impecável !
Vai mostrar de qual zona saiu a primeira quenga????
Bah! Só isso! Bah! Obrigado e abraço.
E ai Augusto, quando você vai dirigir a TV CULTURA e novamente consagrar lider de audiência o programa RODA VIVA?. O que esta faltando para o Tarcisio de Freitas colocar jornalismo competente e honesto nessa TV?
Aguardando ansiosamente a 2ª parte. Pelo andar da carruagem, virá maravilha ainda maior.
Augusto muito bom. Profundo conhecedor da política e seus bastidores.
Impressionante !!!
Augusto Nunes, conhece tudo do poder no Brasil. Muito interessante esse artigo sobre as chamadas “primeiras damas”. Ruth Cardoso, de fato tinha vida própria e proveitosa. Muito bom, Augusto. Do modo como vão as coisas, e, com preocupação legítima sobre o futuro, espero que o grande jornalista tenha na culinária o mesmo nível de conhecimento que tem na política. Quem sabe se no futuro, possa nos agraciar com umas receitas magníficas.
Que bom ler sobre os bastidores e verdades das primeiras damas de nosso país. Concordo plenamente ,Ruth Cardoso e Michelle Bolsonaram foram as primeiras damas que podemos destacar pela lisura do cargo,competência e pensamento inteligente.
Reenviando ,na ,2 a parte , Certamente Nunes vai falar do relacionamento extra conjugal do FHC e a reação irada da 1.dama Ruth Cardoso