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Ilustração: Shutterstock
Edição 152

O cristal quebrado

Passada a pandemia, a nova justificativa para suprimir a livre expressão é a 'defesa da democracia'

Roberto Motta
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Cada um de nós traça sua própria trajetória na vida. Temos origens diferentes, somos criados e educados nas mais diversas circunstâncias; cada um de nós enfrenta desafios que, muitas vezes, são completamente desconhecidos por outras pessoas.

É impossível saber que batalhas os outros estão travando.

Muitos de nossos sonhos, desejos e planos são comuns a outras pessoas; outros são só nossos.

A satisfação da maioria de nossas necessidades depende de outras pessoas, da sociedade em que vivemos e de seus mecanismos sociais e econômicos. Mas algumas necessidades só serão satisfeitas através de processos de educação, autoconhecimento e amadurecimento intelectual e emocional que dependem, principalmente, de nossa própria iniciativa — sem esquecer que somos, sempre, reféns de circunstâncias inteiramente fora de nosso controle. Somos reféns do acaso.

O desenrolar de nossas vidas e nossa história ocorre em um palco muito maior do que nós. Existe sempre um cenário de fundo no qual se movimentam forças titânicas — movimentos políticos, interesses corporativos, mudanças culturais, guerras, revoluções e eventos cataclísmicos, imprevisíveis —, o que Nassim Taleb chama de cisnes negros.

Nassim Nicholas Taleb é autor, ensaísta, estatístico e analista de riscos libanês-norte-americano, matemático de formação | Foto: Shutterstock

Todo nosso progresso, nosso avanço pessoal em direção à prosperidade, nossas pequenas ou grandes conquistas materiais são influenciadas, impulsionadas, atrasadas ou esmagadas por essas forças, totalmente fora de nosso controle.

A maioria de nós desconhece o que se movimenta no pano de fundo de nossas vidas. Nosso foco sempre estará, necessariamente, nas coisas imediatas das quais dependem nossa sobrevivência e o bem-estar de nossas famílias.

O boleto da mensalidade escolar das crianças esperando em cima da mesa grita tão alto que não conseguimos ouvir, por exemplo, o barulho da China — um país controlado por uma ditadura totalitária — lentamente tomando o lugar dos EUA como superpotência dominante, influenciando a política interna das democracias ocidentais e cooptando, de várias formas, seus principais líderes.

Estados Unidos e China | Ilustração: Montagem Revista Oeste/Shutterstock

A preocupação com o emprego, com uma dívida que não conseguimos quitar ou com a saúde de um parente querido impede que tenhamos consciência de processos que, há décadas, vêm alterando o mundo ao nosso redor — transformando, por exemplo, o sistema de ensino, público e privado, em instrumento de doutrinação ideológica.

Você tem direito a ter e emitir uma opinião sobre qualquer assunto. Não é necessário que sua opinião seja validada, certificada ou aprovada por qualquer órgão oficial

Mas, apesar de nossa ignorância, tudo isso acaba batendo à nossa porta, mais cedo ou mais tarde. Como disse Christopher Hitchens: “Não há refúgio contra o engajamento político. Se você tentar se esconder da vida pública, um dia ela o descobrirá e invadirá seu precioso refúgio”.

É isso, exatamente, o que está acontecendo.

O modelo de governança política dominante no Ocidente no último século — principalmente desde a Segunda Guerra Mundial — é a combinação de um sistema político chamado de democrático, baseado no voto universal, com uma sociedade de consumo de massa.

Um dos dilemas desse sistema é a tensão constante entre os limites do poder do Estado e as garantias da liberdade individual. Esse dilema se tornou uma fratura exposta em vários países, como consequência da pandemia. Nova Zelândia, Austrália e Canadá foram alguns dos países que adotaram medidas incompatíveis com as noções de liberdade e direitos fundamentais que sempre prevaleceram no Ocidente. A lista de países que caíram na armadilha de suprimir a liberdade “em nome da vida” é muito longa.

Passada a pandemia, a nova justificativa para suprimir a livre expressão é a “defesa da democracia”.

Mas não se defende a democracia calando o indivíduo.

carta contra a censura OAB
Ilustração: Shutterstock

Você tem direito a ter e emitir uma opinião sobre qualquer assunto. Não é necessário que sua opinião seja validada, certificada ou aprovada por qualquer órgão oficial, para que você possa expressá-la.

Uma das conquistas do Ocidente foi a noção de direitos naturais ou direitos fundamentais. Entre eles, está o direito à liberdade de expressão. O direito de dizer o que você quiser. Sua opinião não está sujeita à aprovação de ninguém.

Se você caluniar ou difamar alguém, já existem remédios jurídicos. Você pode ser processado penalmente pelos crimes de injúria, calúnia ou difamação, ou pode ser alvo de um processo civil por danos morais.

Fora disso, a expressão é livre.

Livre.

Essa é uma bandeira difícil de carregar, em uma época em que muitas pessoas foram convencidas de que a liberdade de expressão só é válida quando a opinião é aquela permitida pelos fiscais do politicamente correto.

É preciso resistir a isso.

Faço minha parte. Faço o que posso — o pouco que posso — para defender esse Ocidente que ainda resiste.

Tenho um programa diário — um podcast — que vai ao ar no YouTube e outras redes sociais às 10 horas. Nele eu comento notícias, analiso o cenário político, falo de livros e leio cartas que recebo de ouvintes.

Eu preciso contar sobre uma dessas cartas.

No dia 12 de janeiro eu recebi, por e-mail, a seguinte mensagem:

Roberto Motta, boa tarde!
Minha neta tem 12 anos e vai cursar a 8ª série do ensino fundamental.
Na lista de livros da escola está o livro XXXX.
Parece um gibi. É simplesmente horrível, fiquei perplexa com o conteúdo, totalmente impróprio para a idade.
Estamos tentando marcar um horário com a direção da escola para falar sobre isso, mas a coordenadora já avisou que o livro é “muito bem recomendado pelo MEC”.
Fiquei de cabelo em pé.

Você conhece este livro?
Tem alguma sugestão para dar às mães do que fazer a respeito?
Às vezes acho que a escola está querendo impor uma agenda progressista, com a qual não concordo.
Parece que precisamos fazer um trabalho de formiga, já que as escolas estão todas dominadas por ideologia.
Grata pela atenção,

Marcia.

Eu li a carta da Marcia no meu programa. Minha sugestão para ela foi: mobilize-se. Reúna outras mães que pensam como você. Falem com a escola.

O objetivo da escola é servir às famílias que matriculam suas crianças. As famílias precisam estar satisfeitas, ou levarão suas crianças para estudar em outro lugar. As escolas sabem disso, e não querem perder alunos. Esse é o caminho da mudança. Faça ouvir sua voz.

No dia 10 de fevereiro eu recebi outro e-mail da Marcia:

Oi, Motta! Tudo bem?
Gostaria de agradecer muito por ter lido meu e-mail. Passei o link do seu programa para as mães do meu grupo, muitas gostaram.
Tivemos a reunião com a direção, a coordenação e a orientação pedagógica da escola.
Os livros ruins foram retirados da grade. Serão substituídos por outros.
A diretora pediu desculpas e disse que a culpa foi dela, pois não consegue ler todos os livros indicados pelos professores.
Ela disse que foi um mal-entendido. O professor que indicou os livros foi o professor de português, embora não caiba a ele a decisão de incluir temas impróprios em suas aulas.
A diretora concordou com tudo isso, mas tentava impedir que as mães falassem.
Tentou, mas não conseguiu.
Muitas mães falaram e disseram que, de agora em diante, vão examinar tudo que a escola indica, e ficar de olho neste professor.
O cristal foi quebrado.
Um detalhe que achei bem infantil: duas mães, que eram a favor desse tipo de livro, ficaram rindo das opiniões das mães que eram contra, mas não apresentaram argumentos para o debate.
Eu apresentei meu ponto de vista e aproveitei para indicar o livro As Ferramentas Perdidas da Aprendizagem, que você indicou.
Vamos sempre fazer nosso trabalho de formiga.

Marcia.

O cristal foi quebrado.

O cidadão comum descobriu seu poder.

É isso.

Leia também “E agora, para onde vamos?”

24 comentários
  1. Lia Andrade
    Lia Andrade

    Que bom essa estória dessa mãe. Quebrar cristais é nossa obrigação de agora pra frente.

  2. Jaime Moreira Filho
    Jaime Moreira Filho

    Sou professor aposentado. Sempre fiz um projeto de leitura meu que incentivava a leitura de romances, contos, crônicas, poesias no Ensino Fundamental e Médio. Os alunos liam muito e aprendiam muito. Sem obrigação… só a leitura. Por isso vejo com medo as escolas que tenham professores, principalmente formados nas Universidades públicas brasileiras, todas fortemente ideologizadas. Como percebem as situações alunos que são levados a estudar… simplesmente estudar. Uma frase de uma aluna de 6ª série em Hortolândia, na época que foi distribuído livros pelo Serra: Professor, este Mario Quintana é o “cara”, depois de ler Nova Antologia de Mário Quintana. Isto é bonito. Sou incentivador da leitura e adoro a forma como Motta indica livros – com a unica finalidade de a pessoa se instruir. Como professor dou 10.

  3. ana rosa bonfanti morales
    ana rosa bonfanti morales

    A maioria das mães ainda acatam caladas os temas indicados pela escola, e é isso que está fazendo nossa educação piorar a cada dia. O posicionamento dessas mães, que se interessaram pelo material indicado pela escola, mostra que cabe aos pais a maior parte da qualidade do ensino de nossas crianças.

  4. Valesca Frois Nassif
    Valesca Frois Nassif

    Parabéns, Motta! É muito obrigada! Sou sua fã incondicional!

  5. Paulo Kubota
    Paulo Kubota

    Excelente artigo Roberto Motta! Se os pais e mães não se concentrarem nas propostas das escolas de seus filhos será o caos que acabará destruindo a família e o futuro de nossas gerações! É importante que se diga que nas últimas eleições muitos pais perceberam os eleitores do L foram seus filhos! Muit tarde talvez para se arrependerem do infortúnio deste desgoverno!

  6. José Rubens Medeiros
    José Rubens Medeiros

    Texto excelentemente lúcido, Motta.

    Permita-me indagações:

    Já imaginou se o Sr. Inácio da Silva e toda a turminha que ele “despejou” na máquina pública (para dilapidar os recursos nossos) também pensasse assim como você propugna no artigo?

    Já imaginou se os juízes do STF (aqueles onze) também pensassem assim e suas hoje toscas decisões tivessem esse norteamento em sentido amplo?

    1. José Rubens Medeiros
      José Rubens Medeiros

      “também pensassEM assim” (corrigindo a quarta linha)

  7. Dalva da Silva Prado
    Dalva da Silva Prado

    Vejo Mota todos os dias na Jovem Pan. Seus artigos e obras, significam para mim, conhecimento, patriotismo, verdade, enfim um bálsamo para nossa alma. Parabéns, muito obrigada.

  8. Mauro Braz Rocha
    Mauro Braz Rocha

    Reconfortante ler esse artigo! Todos precisamos nos mobilizar

  9. Gilson Herz
    Gilson Herz

    Parabéns Motta.

  10. Christian
    Christian

    Na escola assim como na política, o cidadão tem que aprender a cobrar dos professores e dos políticos.
    Nossa passividade vai nos levar ao caos se não nos mexermos.

  11. Luiz Antônio Alves
    Luiz Antônio Alves

    Dois jovens faziam um racha numa noite de domingo. O da frente passou a sinaleira fechada e quase atropelou uma mulher. O outro que estava atrás bateu na mulher em cheio, que veio a óbito. Ao final do processo, o jovem que não atroelou foi condenado. E o que atropelou nenhuma condeçaão, foi inocentado!
    Quando o judiciário começou a utilizar um peso e duas medidas, condenando uns e descondenando ou inocentano outros, foi o momento de quebrar o cristal. Se alguém gritar que aquele cara é nazista, o problema está criado e a pessoa que nunca gostou de fascimo e nazismo será processado e julgado. Se alguém disser que é comunista, como nos blocos de carnaval deste ano e em discuros de campanha eleitoral, nada acontecerá. O comunismo deveria ser tratado como crime contra a humanidade, mas não é. E os nossos militares, pelo histórico, lutaram contra o nazi-fascismo e até contra o comunismo. E ainda tem pracinha vivo que votou no Bolsonaro. É fácil jogar com o juiz a favor.

  12. Ronaldo Rodrigues Rosa
    Ronaldo Rodrigues Rosa

    Tenho certeza que o seu trabalho de formiguinha está produzindo bons resultados, Motta.❤️🙏

  13. Laura Teixeira Motta
    Laura Teixeira Motta

    Nesta era de trevas, pessoas como Roberto Motta acendem uma lanterna para muita gente. Seu esforço é precioso. Somos muito gratos.

  14. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    Os ilumidiotas estão tentando nos obrigar a abrirmos mão da nossa liberdade para obedecermos esses progressistas que desejam criar um mundo insano onde eles comandariam as pessoas.

  15. Ivonete de Souza Rabello
    Ivonete de Souza Rabello

    Esse trabalho de formiguinha vai demorar muito tempo para ser construído. Talvez mais de um século. Talvez um tempo bem maior do que o que se levou fazendo essa instrumentalização: sutil, no início. Nossa geração certamente não verá o resultado desse trabalho de formiga e o cristal talvez nunca mais seja colado.

  16. Jorge Sakamoto
    Jorge Sakamoto

    Um jornalista como esse, Roberto Motta, vale mais que 10 milhões de políticos! Precisamos de mais pessoas como ele na imprensa, que foi tomada por um bando de “repórteres” sem caráter, que fazem auê com um monte de asneiras e não acrescentam nada de útil na sociedade.

  17. João José Augusto Mendes
    João José Augusto Mendes

    Temos poder, e temos que mostrar, embora isso está sendo inibido. Então chegará o mmomento que só falar de nada adiantará, e o discurso terá que ser acompanhado de algo nais consjstente: si vis pacem para bellum.

  18. MARCIO MARQUES PRADO
    MARCIO MARQUES PRADO

    O trabalho de formiguinha é uma inédita forma de enfrentar a revolução cultural que ameaça o equilíbrio entre a educação formal e a educação recebida em casa. Esta maneira de encarar a situação requer um bocado de atenção dos dois lados e, aí, não há como fugir do problema, a não ser confrontando informações à respeito. A diretora não lê. O professor tem preguiça de analisar as indicações, contraindicações e, principalmente, as precauções na administração destas informações direcionadas à cabecinhas ainda em formação. Os pais e a presença mais constante dos avós, estão sendo chamados ao debate e muitos já perceberam a importância de encarar a situação. Muito feliz a citação do Christopher Hitchens, um intelectual revolucionário em sua maneira de ver a prosperidade da humanidade, indo à fundo nas questões básicas que nos afligem. Hitchens é tão rico em suas análises que merece colunas à respeito, além da leitura minuciosa de sua obra. Obrigado pelo seu artigo, muito bem construído, ‘like always’.

  19. Gabriela Batista Kimus Frizzo
    Gabriela Batista Kimus Frizzo

    Tempos sombrios… 😒

  20. Otacílio Cordeiro Da Silva
    Otacílio Cordeiro Da Silva

    Muito bom, Roberto. Não o conhecia até recentemente, mas agora leio todos os seus artigos aqui na Oeste. Percebo uma escrita leve e acessível a qualquer nível de leitor. Espero que continue com o mesmo ânimo e discernimento para os próximos eventos. Trabalhei em uma escola pública por vinte anos, não como professor, mas este assunto de doutrinação ideológica sempre me tirou dos sério. Acho de uma irresponsabilidade e tanto praticar o politicamente correto na escola, pois estamos lidando com filhos dos outros, não nossos. Filhos dos outros são filhos dos outros. Todo cuidado é pouco.

  21. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Não podemos ficar passivos e aceitar qualquer tipo de imposição contrários à dignidade, família e bons costumes. A humanidade levou séculos para aprender e desenvolver regras de convivência. Temos que sair da zona de conforto pois quem nela permanece não cresce como pessoa e cidadão.

  22. maisvalia
    maisvalia

    Parabéns

  23. Ana Matildes Sobral de Farias
    Ana Matildes Sobral de Farias

    Parabéns a você Mota. Um excelente assunto e muito polêmico. Parabenizo os pais que abriram is olhos e vão acompanhar de perto as Escolas.
    .

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