“Você sabia que certas fantasias ridicularizam pessoas e culturas e pegam mal no Carnaval? Se não sabia, Professor Jero Explica. Siga o fio e confira o que você não deve vestir!” — tuitou recentemente o petista Jerônimo Rodrigues, governador da Bahia. E emendou: “Indígena não é fantasia Os povos indígenas lutam, diariamente, para ter seus direitos reconhecidos. É um desrespeito se apropriar de suas vestimentas e acessórios e transformar sua cultura diversa em um estereótipo”. E também: “Travesti não é fantasia Se vestir de mulher ridiculariza figuras femininas e ofende identidades travestis e transsexuais. Não tem graça, pessoal!”. E ainda: “Pessoas pretas não são fantasia. Usar maquiagens blackface, perucas e demais acessórios reforçam o racismo e a hiperssexualização da população preta. Vestir-se de “Nega Maluca”? Nem pensar!”.
Você sabia que certas fantasias ridicularizam pessoas e culturas e pegam mal no #Carnaval? Se não sabia, Professor Jero Explica. Siga o fio e confira o que você NÃO deve vestir! 🧶 pic.twitter.com/wtK3hpzhlj
— Jerônimo Rodrigues (@Jeronimoba13) February 15, 2023
Obviamente, na condição de representante do “intelectual coletivo” lulopetista, o político baiano não teria personalidade própria para tirar esse moralismo politicamente correto da própria cachola, estando apenas a reproduzir o clichê militante — reiteradamente propagandeado pelos justiceiros sociais das redações — da “apropriação cultural”, fetiche ideológico neomarxista segundo o qual há culturas “oprimidas” e “opressoras”, sendo vedado aos supostos representantes das segundas qualquer uso de elementos culturais pretensamente originários das primeiras. Desse identitarismo doentio e perverso, é bom lembrar, não escapou nem mesmo o Cacique de Ramos, tradicional bloco carnavalesco do Rio de Janeiro, acusado de “ofender” os índios. Não consta que algum índio de carne e osso tenha se mostrado ofendido ao longo dos 60 anos de existência do bloco. Mas profissionais da ofensa, como Jerônimo Rodrigues, não se vexaram em, apropriando-se culturalmente do juízo alheio, se ofender por eles.
Bem, se há algo que me valeram décadas de estudo de antropologia — e não me valeram grande coisa — foi a aquisição de uma compreensão mínima de como funcionam os processos de contato cultural. E, numa ciência de poucas verdades absolutas estabelecidas — como soem ser as ciências humanas em geral —, ao menos uma posso afirmar sem grandes dúvidas: o conceito de apropriação cultural é algo totalmente sem sentido, simplesmente porque cultura é apropriação. Sendo vãs todas as tentativas de isolar uma cultura “pura”, solipsista e autoidêntica no decorrer do tempo, pode-se dizer que, ao fim e ao cabo, cultura é o nome que damos ao contato cultural.
A realidade brasileira já é tão perpetuamente caótica, os papéis sociais tão mal definidos e as hierarquias institucionais tão indignas de respeito, que a subversão carnavalesca da ordem perde o sentido
Esse caráter essencialmente anti-identitário dos processos culturais espontâneos sempre foi evidenciado no Carnaval, que pode ser definido como uma festa cujo sentido é justamente a subversão ritualizada de identidades, hierarquias e papéis sociais habituais. Na Idade Média, o estilo caracteristicamente burlesco do evento, que constrastava com o tom grave e solene da liturgia oficial, bem como com a contrição do período quaresmal subsequente, era parte de uma longa tradição popular. Na Europa medieval, além do Carnaval propriamente dito, celebrava-se uma série de outras festividades estruturalmente idênticas, a exemplo da “festa dos tolos” (festum stultorum) ou da “festa do asno” (festum asinorum). Quase toda igreja promovia festejos paroquiais nos quais esse aspecto visceralmente cômico — literariamente consagrado na obra de um François Rabelais — dava o tom. Nas feiras ao ar livre, o público era brindado com uma variedade de atrações circenses, com a participação de anões, gigantes, palhaços, figuras mascaradas e feras amestradas. Nessas ocasiões, ritos solenes, como a coroação de reis ou a consagração de cavaleiros, eram parodiados, arrancando gargalhadas da audiência. No Entrudo português — antepassado direto do nosso Carnaval —, encenava-se uma “guerra” na qual os foliões se atingiam mutuamente com água, farinha, ovos e limões (vem daí, a propósito, a tradição brasileira do lança-perfume).
No campo da sociologia e da antropologia, há uma vasta literatura demonstrando o caráter invariavelmente satírico e subversivo do rito carnavalesco, cuja ênfase recai sobre a suspensão momentânea de hierarquias, status e posições sociais, e, sobretudo, sobre o instituto da inversão de papéis (entre homens e mulheres, ricos e pobres, patrões e empregados etc.). Com efeito, desde as Saturnais romanas — festividades nas quais, excepcionalmente, os escravos eram servidos por seus mestres, passando pelas festividades medievais supramencionadas, com seus reis momos, cavaleiros de taverna e travestis (tanto masculinos quanto femininos) —, o Carnaval tem se constituído como celebração de um tempo excepcional em que a ordem habitual é ritualisticamente (e, pois, controladamente) desafiada, para voltar a se afirmar da Quarta-Feira de Cinzas em diante.
O que se passa no Brasil de hoje é que, por um lado, os fanáticos identitários que hoje ocupam posições de poder e influência na sociedade civil e no Estado avançam sobre a irreverência carnavalesca e interditam a função ritualística da festa. Tratando-se de uma festa contraidentitária por excelência, o identitarismo é a morte do Carnaval. Por outro lado, a realidade brasileira já é tão perpetuamente caótica, os papéis sociais tão mal definidos e as hierarquias institucionais tão indignas de respeito, que a subversão carnavalesca da ordem perde o sentido. Na ausência de uma ordem reconhecível a se transgredir, resta a transgressão como fim em si mesmo. Na ausência da desordem ritualizada e com data para acabar, resta o caos permanente e estrutural. Afinal, que potência burlesca teria o travestismo num país em que um parlamentar é processado por chamar um homem (que se pretende mulher) de “ele”? Que autoridade oficial haveria por subverter num país em que os narcotraficantes já a ignoram solenemente? Que hierarquias há por quebrar num país em que alunos quebram a cabeça dos professores? Que poder constituído ainda resta a ridicularizar num país que aceita um ex-condenado por corrupção na Presidência da República? Que paródia restaria fazer de magistrados num país em que eles se reúnem com influencers de cabelo rosa e frequentam encontros do MST? Que alusão momesca sobrevive a uma realidade que torna crime chamar de comunista obeso um comunista obeso? Não, no Brasil já não há um contraste claro entre o tempo extraordinário do Carnaval e o tempo ordinário que ele viria a subverter. No permanente caos nacional, o Carnaval perdeu sua função ritualística, tornando-se ele próprio a expressão acabada da ordem. Uma ordem totalitária que nos obriga — nós, os mais de mil palhaços no salão — a transigir com o mal e reverenciar o ridículo. Quanto riso, oh, quanta alegria…
Leia também “O Juízo Final em Cabul”
Excelente texto como sempre, Flávio!
Cirúrgico, o rei está nu!
Sensacional, Flávio Gordon. Uma passagem brilhante no tempo que nos faz refletir sobre o rumo que estamos trilhando e os riscos iminentes que nos assombram.
Sensacional!
Vivemos em um país onde qq comentário divertido do cotidiano é ofensivo a alguém.
Estava com 13 comentários até o meu, então estou aqui para muda isso kkkk
Caro Flávio, a noção de apropriação cultural é, a meu ver, equivocada sob qualquer aspecto. Parece mais adequado para descrever o fenômeno do espalhamento de uma cultura a ideia de participação cultural. Participar é receber o ser de outro. Eu participo de outra cultura na medida do que dela há em mim, que recebo pelos infinitos meios de contato cultural. Não há apropriação, pois inexiste diminuição da cultura supostamente apropriada (o ser participado). O contato cultural não é uma redução do outro, não é um tomar a propriedade imaterial de alguém, mas uma incorporação, um recebimento de ser. Veja como seu conceito “cultura é apropriação” fica muito mais claro se dito “cultura é participação”. Nunca desenvolvi esse raciocínio, que me acompanha há algum tempo. Nem sei se essa noção já foi refutada. Parabéns por mais um excelente texto.
Uma. Aula. Adorei 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻
Com o “politicamente correto” o carnaval perdeu seu principal ingrediente.
De boa qualidade a visão antropológica do Flávio Gordon. Pena que ele não citou o grande e antropólogo ROBERTO DA MATTA que no livro “CARNAVAIS, MALADROS E HERÓIS”, fez uma análise profunda, numa leitura ágil e moderna, do que é o carnaval brasileiro refletindo a sociedade em sua hierarquia social autoritária e os sonhos dos jecas, bocós e periféricos miseráveis sairem, por alguns dias delirantes, da pobreza e se transformarem magicamente em príncipes, raínhas, etc. Com todo respeito ao Fávio Gordon mas, diante da análise larga do Roberto da Matta , o seu ótimo texto serviria como prefácio pro Roberto da Matta que nem foi citado.
Flávio Gordon, mais uma vez, na mosca!
Simplesmente perfeito! Não há mais o que transigir, o caos já está instalado, e estamos cada dia sendo levados ao olho do furacão!!! Triste realidade!!!
Que memorável artigo, parabéns!
Muito bom. Muito bom, mesmo.
Parabéns Flavio Gordon pelo excelente artigo. Já li outros muito bons da sua autoria na Gazeta do Povo. Análise perfeita da realidade caótica em que vivemos. Num país em que os papéis sociais são mal definidos, resta-nos mesmo vestir nossa fantasia de palhaço e sair chorando pelo salão.
Excelente artigo!!!
O BRASIL ACABOU-SE SIMPLESMENTE TEM QUE ENCONTRAR A SUA VERDADEIRA INDNTIDADE DEMOCRÁTICA E NÃO FICAR COM ESSA DEMAGOGIA ESQUERDISTA POLÍTICAMENTE CORRETO.
Tal vez é que não nos damos conta de que o Brasil já vive a transgressão carnavalesca 360 dias ao ano com todas as aberrações que vemos. Sobram cinco dias do chamado carnaval para os interventores da moral e do politicamente correto colocar o dedo e fazer o seu discurso demagógico esquizofrênico.