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O julgamento de Galileu em Roma, 1633 | Pintura: Everett Collection/Shutterstock
Edição 153

A esquerda agora quer censurar a ciência

Não basta controlar o que podemos fazer e pensar: os “progressistas” agora querem paralisar a ciência e a tecnologia

Dagomir Marquezi
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Em 1811, um grupo de artesãos decidiu que os culpados pelo crescente desemprego entre eles eram as máquinas têxteis. À noite, esses rebeldes saíam mascarados quebrando maquinário em várias cidades inglesas. A esperança deles era brecar qualquer avanço tecnológico e garantir assim seus empregos, tentando permanecer no século 18 para sempre.

O líder desses bandos era um tal de Ned Ludd, conhecido como Rei Ludd. Ninguém sabe até hoje se ele existiu de verdade. De qualquer jeito, seus seguidores ficaram conhecidos como os luditas. Desde esse início do século 19, ludita é o nome que se dá a quem quer interromper a evolução tecnológica e científica.

Os “ludistas” eram artesãos ingleses do início do século 19. Ao ver que iriam perder seus empregos, eles partiram para destruir as máquinas têxteis | Ilustração: Reprodução/Mary Evans Picture Library

Hoje, em plena segunda década do século 21, os luditas estão de volta. Com algumas diferenças. Eles não querem apenas destruir os frutos da tecnologia. Pretendem abortar as novidades antes mesmo que nasçam. E não agem apenas pela própria sobrevivência profissional, mas por uma agenda ideológica “progressista”. Querem, como sempre, salvar o mundo. E como sempre acham que o caminho é controlar, censurar e isolar quem não obedece a eles.

Ronald Bailey, escritor especialista em ciência, escreveu um longo artigo para a revista Reason anunciando que temos de enfrentar mais uma sigla na floresta de abreviaturas autoritárias. A nova sigla é RRI: “responsible research and innovation”, ou “pesquisa e inovação responsáveis”.

Capa da matéria de Ronald Bailey para a revista Reason | Foto: Reprodução

“Ciência melhor”

O movimento RRI hoje tem um site próprio (financiado pela União Europeia) muito completo, em que são oferecidos instrumentos para quem quer, por exemplo, implantar numa universidade um “plano de igualdade de gêneros e um código de integridade de pesquisas”. Os alvos deles são “pesquisadores, políticos, representantes da sociedade civil, educadores e inovadores”. Eles disponibilizam cartilhas do tipo “como iniciar RRI em nível nacional” ou “como incorporar RRI em instituições de ensino avançado”. Palestras, contas em redes sociais, vídeos didáticos, conferências internacionais, programas para influenciar acionistas de empresas, tudo está incluído e pago no pacote de aparelhamento.

Noam Chomsky, admirador confesso das ditaduras da Venezuela e Cuba, atacou recentemente a plataforma de linguagem ChatGPT, que ele acusou de promover “plagiarismo high tech

O site oferece inclusive uma apostila de “autorreflexão”, para que o usuário se convença de que o caminho que eles oferecem é o mais “justo e igualitário”. Segundo a apostila, o objetivo do RRI é “engajar todos os atores (de pesquisadores individuais a instituições e governos) (…) e se alinhar a valores, necessidades e expectativas de um grande público. Isso não só vale a pena ética e socialmente, mas também produz melhor ciência, tornando as agendas de pesquisa mais diversificadas e levando em conta as complexidades do mundo real”. Uma pergunta básica não é respondida: quem decide o que é uma “ciência melhor”?

Segundo Ronald Bailey, alguns desses entusiastas do RRI defendem a “inovação lenta” na ciência e até algo que eles chamam de “estagnação responsável”. Um dos adeptos dessa linha de ação, o professor britânico Bernd Carsten Stahl chegou a dizer, em 2020: “Nós devemos perguntar se as tecnologias emergentes podem e serão percebidas como uma ameaça de um nível similar à ameaça atual do vírus da covid”. Ou seja, o professor Stahl compara novas tecnologias com uma pandemia mortal. Ele sugere que, se for esse o caso, pode ser necessária uma “intervenção radical”. O que ele quis dizer com essa expressão? Não sabemos.

Os perigos da microeletrônica

Segundo o artigo de Ronald Bailey para a Reason, a origem do RRI está num livro escrito pelo químico britânico David Collingridge, em 1980. O título não poderia ser mais explícito: O Controle Social da Tecnologia. Collingridge dizia que “as consequências de uma tecnologia não podiam ser previstas no início de sua atividade. No momento em que as suas consequências indesejáveis são descobertas, a tecnologia é geralmente uma parte tão grande de toda a fábrica econômica e social que seu controle se torna extremamente difícil”. Collingridge chamava esse seu desejo de controle prévio de atividades de pesquisa de “entrincheiramento”. Seus seguidores usam outro nome: “trancamento”.

PT censura Revista Oeste
Ilustração: Jorm S/Shutterstock

Collingridge citava como exemplos de ciência dando errado “a medicina moderna e a higiene reduzindo a mortalidade em países em desenvolvimento, mas fazendo isso gerou um crescimento incontrolável da população”. Outro exemplo similar dado por ele se referia ao uso de química na produção de comida, que causaria “danos ao solo e seu ecossistema de apoio”.

Segundo o raciocínio causa e feito de Collingridge, o sabonete e a pasta de dentes não deveriam existir, para evitar assim a explosão populacional. O professor britânico já falava, em 1980, dos “perigos da microeletrônica”, que provavelmente destruiria empregos. Não passava na sua cabeça que milhões de outros empregos seriam criados.

Um mundo sem carros

Outro exemplo de militante RRI citado pela Reason é a autora Sheila Jasanoff, no seu livro The Ethics of Invention, de 2016, em que ataca a existência dos automóveis: “O carro abria imensas possibilidades de liberdade e produtividade individual, mas que traziam consequências drásticas para a sociedade que ninguém havia imaginado ou regulado em tempo hábil. Os carros causaram mais de 1 milhão de mortes no trânsito em todo o mundo a cada ano, a disseminação das práticas de trabalho rotinizadas e mortíferas, a praga da poluição urbana, a fragmentação das comunidades, a decadência dos outrora grandes centros industriais e, eventualmente, a mudança climática, que ameaça o mundo. As práticas atuais de inovação responsável e governança antecipada poderiam ter mudado a maré da história do automóvel antes que ele tomasse um rumo trágico?” Henry Ford teve sorte que a patrulha RRI ainda não existia em 1908.

No seu artigo para a Reason, Ronald Bailey mostra como a evolução pode vir de maneira simples, desde que os notórios donos da verdade não atrapalhem. Em 1908, por exemplo, a Real Comissão Britânica condenou o crescente uso de automóveis por causa da poeira que eles levantavam. Mas não propuseram a extinção do “carro a motor”, e sim uma solução concreta e prática para diminuir a poeira — asfaltar as ruas.

De volta à caixa de Pandora

Hoje, os carros elétricos e autônomos (sem motoristas) estão sendo massacrados diariamente pela turma do RRI. Todos os dias a imprensa distribui notícias ruins e previsões tenebrosas sobre esses avanços tecnológicos do transporte. É proibido evoluir sem autorização deles. E os carros não devem evoluir, devem ser extintos.

Carro elétrico | Ilustração: Ilija Erceg/Shutterstock

Exemplo dessa visão RRI é dado pela antropóloga belga Axelle Van Wynsberghe e pela funcionária da Comissão Europeia, a portuguesa Ângela Guimaraes Pereira. Elas fazem lobby para que essas novas formas avançadas de transporte privado não prosperem, uma vez que “os cidadãos parecem estar motivados a limitar, senão eliminar o uso do carro, e priorizam modos ativos de transporte, como caminhar e andar de bicicleta”.

Claro que a disseminação do carro a gasolina como produto de massa trouxe efeitos negativos. Congestionamentos, acidentes, destruição do meio ambiente para criar estradas, poluição etc. Por outro lado, carros salvaram vidas, aproximaram pessoas, espalharam prosperidade, facilitaram nosso deslocamento etc. Nada disso importa. Para a turma do RRI o carro deveria ter morrido antes mesmo de nascer.

Esses mesmos “progressistas” têm uma lista preferencial de alvos em pesquisas avançadas: a biotecnologia, a inteligência artificial, a robótica, a nanotecnologia, e a reprodução humana. Os adeptos da RRI acham que essas invenções demoníacas deveriam ser devolvidas para a caixa de Pandora de onde surgiram. Por princípio, não são “responsáveis”. Talvez seja necessário, segundo eles, apertar o botão da “estagnação responsável”.

A mão invisível

Um exemplo dessa resistência ao progresso foi dado recentemente pelo linguista e militante de esquerda norte-americano Noam Chomsky, admirador confesso das ditaduras da Venezuela e Cuba. Chomsky atacou a plataforma de linguagem ChatGPT, que ele acusou de promover “plagiarismo high tech”. “Não acho que [o ChatGPT] tenha algo a ver com educação. É uma maneira de evitar o aprendizado”, disse Chomsky, ao entrevistador Thijmen Sprakel, da EduKitchen. Para ele, a educação precisa continuar estagnada em processos didáticos de séculos atrás e dependente dos senhores acadêmicos da verdade, incluindo ele próprio.

Ilustração: Montagem Revista Oeste/Shutterstock

No seu artigo para a Reason, Ronald Bailey aponta a solução simples e lógica para avaliar as novas tecnologias: a boa, velha e conhecida mão invisível do mercado. “A maioria das pessoas não sabe o que pensar de uma nova tecnologia até que a utilize”, escreve Bailey. “O mercado é um processo de descobrimento que nos permite experimentar coisas novas e aceitá-las ou rejeitá-las. A turma do RRI quer bloquear esse processo”.

Leia também “Entrevista com o ChatGPT”

16 comentários
  1. JULIO ALMEIDA
    JULIO ALMEIDA

    vivemos num mundo de loucos, esquerdopatas.
    no futuro, numa inevitável civilização avançada, não teremos lugar para retrocessos extremistas ideológicos que sempre se mostraram falidos.

  2. Giovani Santos Quintana
    Giovani Santos Quintana

    A vida é feita de equilíbrio, por exemplo, eu como engenheiro de tráfego acredito piamente que o tempo do carro como meio de transporte nas grandes cidades já passou do seu ápice…a algum tempo, mas não podemos simplesmente fazê-lo desaparecer, e sim conscientizar as pessoas paulatinamente a procurar outras soluções que bem lhes atenda.

  3. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    Os progressistas querem comandar a humanidade.

  4. THIAGO LUI REGIANI
    THIAGO LUI REGIANI

    Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas, em relação ao universo, ainda não tenho certeza absoluta. Albert Einstein

  5. alinedealencarrosa
    alinedealencarrosa

    Esse foi o melhor artigo desta ediçao da Oeste, cada dia aprendemos mais.Obrigado Dagomir Marquezi .

  6. Antonio Carlos Almeida Rocha
    Antonio Carlos Almeida Rocha

    eu vi uma reportagem ontem no Domingo Espetacular, uma das muitas de mal jornalismo exibidas pela emissora nesse programa, no único programa da tv aberta que de vez em quando dou uma olhada, sobre um projeto do Elon Musk para implantação de chips no cérebro para tratar de doenças. É uma pesquisa ainda, que visa a, no futuro, cuidar de doenças como Parkinson e Alzheimer. Uma reportagem totalmente enviesada, mostrando muito mais os riscos do que os benefícios. Mas não acabou, no final falam das direções autônomas dos carros da Tesla, ressaltando que 2 acidentes foram provocados por essa tecnologia!!!!! 2 acidentes!!! em milhares de casos em que essa mesma tecnologia salvou vidas, seja evitando a distração do motorista não deixando o carro sair da faixa, seja diminuindo automaticamente a velocidade aproximando do carro da frente, seja freando mesmo de emergência. É uma total desonestidade intelectual que permeia toda a imprensa brasileira, agora regada pelo ansioso regresso dos recursos públicos, ausentes nos últimos 4 anos. Meu carro na Espanha tem esses recursos…não consigo me ver dirigindo um carro daqui a 20 anos (já octogenário) que não tenha ainda mais recursos…não será seguro…é incrível a inversão de valores que esses órgãos de “imprensa” fazem…se dependesse dessa gente que prefere carros-pipa a transposição de rios, balseiros a pontes, estaríamos ainda na idade média…

  7. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Metamorfose Ambulante (Raul Seixas)

    Eu prefiro ser
    Essa metamorfose ambulante
    Eu prefiro ser
    Essa metamorfose ambulante
    Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
    Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo

    Eu quero dizer
    Agora o oposto do que eu disse antes
    Eu prefiro ser
    Essa metamorfose ambulante
    Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
    Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
    Sobre o que é o amor
    Sobre o que eu nem sei quem sou
    Se hoje eu sou estrela
    Amanhã já se apagou
    Se hoje eu te odeio
    Amanhã lhe tenho amor
    Lhe tenho amor
    Lhe tenho horror
    Lhe faço amor
    Eu sou um ator
    É chato chegar
    A um objetivo num instante
    Eu quero viver
    Nessa metamorfose ambulante
    Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
    Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
    Sobre o que é o amor
    Sobre o que eu nem sei quem sou
    Se hoje eu sou estrela
    Amanhã já se apagou
    Se hoje eu te odeio
    Amanhã lhe tenho amor
    Lhe tenho amor
    Lhe tenho horror
    Lhe faço amor
    Eu sou um ator
    Eu vou desdizer
    Aquilo tudo que eu lhe disse antes
    Eu prefiro ser
    Essa metamorfose ambulante
    Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
    Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
    Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
    Do que ter aquela velha velha velha velha velha
    Opinião formada sobre tudo
    Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo

  8. Moacir Alves Schmidt
    Moacir Alves Schmidt

    Ou seja, lembra daquele seu argumento pela liberação das armas? “Carros também matam, vamos proibir os carros, entao?”. Pois é, não serve mais. Eles vao responder: SIM!

  9. Rajas da Silva
    Rajas da Silva

    A turma do RRI não deveria ter um site, porque essa é mais uma invenção demoníaca.
    E nem deveria se alimentar de nada que viesse do agronegócio. E nem deveria andar de carro, moto ou avião.
    Sugiro que sejam reunidos e confinados em lugares onde não haja pesquisas e inovações irresponsáveis, como a Antártida ou o deserto do Saara. Sem direito a energia elétrica, internet, automóveis, smartphones, aviões etc.

  10. Maria Thereza Andres Costa
    Maria Thereza Andres Costa

    Brilhante, Dagomir!

  11. Renato Ribeiro Dos Santos
    Renato Ribeiro Dos Santos

    Imagino que os chineses, com certeza, não são adeptos do RRI: “responsible research and innovation”, ou “pesquisa e inovação responsáveis”.

    1. Moacir Salzstein
      Moacir Salzstein

      👏👏👏👏

  12. Roberto
    Roberto

    Pega esse pessosl e joga-os nus no meio da Amazônia. Talvez eles aprendam um pouco sobre inovação tecnologica.

    Nelson Rodrigues : você foi sábio em sua previsão!

  13. ELIAS
    ELIAS

    Conforme o artigo, essas tais patrulhas RRI são uma contradição em si mesmas. Ao mesmo tempo em que criticam a medicina que em seus avanços tecnológicos promovem a superpopulação, criticam os carros por provocarem mortes.
    Os reais desejos não estão explícitos. No fundo é um movimento por controle total, da vida, da liberdade e do pensamento.

  14. Carlos Grand
    Carlos Grand

    Penso que os adeptos do RRI deveriam dar exemplos tais como não se utilizarem de nenhum avanço tecnológico e científico especialmente no âmbito da medicina.

  15. Maria Eugenia Martins
    Maria Eugenia Martins

    O ser humano se assusta com ele mesmo…. É impossível estagnar a criatividade humana, mas é preciso saber os limites do que se cria. Acredito que só mais educação e informação poderá fazer os seres humanos fazerem as melhores escolhas.

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