O prédio localizado no número 527 da Rua Brigadeiro Tobias, no centro de São Paulo, passaria despercebido não fossem as dezenas de viaturas que se amontoam diante da fachada e nas ruas laterais. Também há sempre muitos homens (e, em quantidade bem menor, mulheres) exageradamente musculosos circulando pelo local com um distintivo no peito. Ali, a uma quadra da Estação da Luz, fica a sede da Polícia Civil do mais importante Estado da federação.
Quase tudo por lá é cinza: catracas, elevadores, piso, portas, balcão de entrada. No 9º andar, um extenso corredor com piso cinza — balizado por paredes brancas, que a ausência de quadros, gravuras e retratos torna acinzentadas — leva à sala de Artur Dian, delegado-geral desde 1º de janeiro deste ano. O ar-condicionado esfria ainda mais o gabinete com mobília espartana: apenas duas poltronas e um sofá de couro preto dividem espaço com uma escrivaninha e a estante de madeira escura.
Numa parede, o cartaz de um documentário dá um toque de humanidade que contrasta com o título: Sequestro. A obra de Wolney Atalla, disponível pela plataforma de streaming Amazon Prime e pelo YouTube, é o resultado de quatro anos de acompanhamento dos trabalhos da Divisão Antissequestro (DAS) da Polícia Civil de São Paulo, entre 2004 e 2008. Nesse período, quase 400 pessoas foram sequestradas no Estado e mais de 1,5 mil em todo o Brasil. Dian, que fez parte da divisão entre 2001 a 2013, ajudou a tornar o filme viável e é um de seus personagens.
Hoje com 48 anos, Dian entrou para a polícia aos 18. Nas últimas três décadas, também integrou o Grupo de Operações Especiais, a Divisão de Investigações sobre Furto e Roubo de Veículos, o Grupo Armado de Repressão a Roubos e Assaltos e o Departamento de Operações Policiais Estratégicas. Quem o convidou a assumir a Delegacia-Geral foi o capitão Guilherme Derrite, atual secretário estadual de Segurança Pública.
Sem qualquer vestígio de soberba no tom de voz, Dian garante que problemas aparentemente eternos da capital paulista, como a cracolândia, têm solução. Os olhos castanhos transpiram sinceridade — a mesma com a qual explica por que se tornou policial. “Jamais conseguiria fazer outra coisa”, diz o homem de cabelos lisos, já com alguns fios grisalhos, que pessoalmente parece mais jovem que nas fotos oficiais. “Nada é mais gratificante do que ver o alívio no rosto de um refém ao ser libertado de um sequestro.”
Confira os principais trechos da entrevista.
Como estava a Polícia Civil quando o senhor assumiu o cargo?
A Polícia Civil vem sofrendo com o déficit de policiais há cerca de 30 anos. Temos mais de 15 mil cargos vagos — tanto que estamos fazendo uma série de concursos. Além disso, também há a degradação da profissão por causa dos salários defasados. Mas não temos o que reclamar do último governo com relação a recursos materiais, porque tivemos bastante apoio e estamos bem equipados. Agora, estamos trabalhando pela valorização do policial, por mais atendimentos psicológicos, pela reestruturação das carreiras. Hoje, as delegacias estão sendo dirigidas por policiais, o que é muito bom. O capitão da Polícia Militar Guilherme Derrite na Secretaria de Segurança, o Dr. Osvaldo Nico Gonçalves como secretário-adjunto. Eu, que sempre fui da área operacional, estou na Civil, e o coronel Cássio de Freitas no comando da PM. Isso faz com que tenhamos uma visão diferente da realidade da profissão. Todas as carreiras são importantes, mas o policial entrega a própria vida em serviço. Ele sai de casa todos os dias sem saber se vai voltar.
Como o senhor avalia as atuais relações entre a Polícia Civil e a Polícia Militar?
Estamos investindo bastante na integração com a Polícia Militar. Todos os dias trocamos informações, assim como com a Polícia Técnico-Científica. Não existe mais trabalhar sozinho. É necessário o trabalho conjunto. Ainda não está tudo integrando com relação à tecnologia, mas estamos assinando uma série de convênios. Acabamos de firmar convênio com uma ferramenta chamada Córtex, do Ministério da Justiça, que integra todos os dados, como câmeras de vigilância e informações sobre criminosos, veículos e pessoas desaparecidas.
Num mundo interligado pela tecnologia, por que tem sido tão difícil aperfeiçoar as conexões entre as delegacias de todo o Brasil?
Esse é um caminho que já gostaríamos de ter implementado, mas que depende de alguns pontos sensíveis. Algumas investigações são sigilosas ou um banco de dados não interliga os governos federal e estadual. Além das questões políticas. Um banco de dados é uma pedra preciosa, e às vezes um Estado não quer passar as informações para o outro. Mas agora a cultura está direcionada para a integração. É um caminho sem volta.
Por que vem diminuindo o número de policiais civis em São Paulo?
É uma mistura de várias coisas. Muita gente está se aposentando, e não há reposição. Os concursos demoram. Assim, a falta de pessoal é inevitável. Mas agora estamos com concursos abertos e vamos realizar mais. Faremos também a realocação de pessoal, substituindo, por exemplo, aqueles que fazem a segurança de prédios públicos por funcionários de empresas terceirizadas. Com isso, esse policial está liberado para voltar para a rua. Mesmo com essas carências, a Polícia Civil de São Paulo é a melhor do Brasil e uma das melhores do mundo. Nossa qualidade de investigação é muito boa.
“O traficante não é mais aquele rapaz de bermuda e corrente de ouro. Temos dentro das organizações gente completamente inserida na sociedade”
Durante algum tempo, pouco se falou em sequestro. O problema parece ter ressurgido nos últimos anos. Essa sensação é correta?
O Pix teve grande responsabilidade nisso. No começo dos anos 2000, quando fui para a Divisão Antissequestro, tínhamos crimes mais elaborados, o tempo em cativeiro era maior, cerca de uma semana — embora eu já tenha lidado com sequestros de mais de 120 dias — e a proximidade com o sequestrador era maior, porque ele tinha que ir a certo local para buscar o dinheiro. Hoje, o tempo no cativeiro é menor, dois a três dias, e a vítima em grande parte das vezes se coloca em situação de risco. Nós nunca podemos culpar a vítima, mas em 70% dos casos são pessoas que caem em golpes de aplicativos de relacionamento, como o Tinder. Elas vão para um lugar ermo com gente que não conhecem. Estamos tendo um problema muito grande com isso.
Além do tempo no cativeiro, quais as principais diferenças entre os sequestros que ocorreram no começo dos anos 2000 com os de agora?
No sequestro chamado “tradicional”, a principal forma de pegar o sequestrador era no momento em que o criminoso ia pegar o dinheiro. Prendemos muita gente assim entre 2006 e 2007. Até que, em 2012, o sequestro acabou em São Paulo, nossa equipe era muito boa. Aí começaram os sequestros relâmpagos: os bandidos pegavam a vítima, levavam até um caixa eletrônico, sacavam o dinheiro e mandavam ela embora. Conseguimos diminuir esse crime colocando empecilhos junto às instituições bancárias para impedir que os criminosos tivessem acesso ao dinheiro. Um exemplo foi o limite de saque durante a noite. Isso ajudou muito a diminuir essa modalidade. Acontece que o Pix facilitou de novo esse acesso, além dos bancos digitais. Estamos conversando tanto com as instituições bancárias quanto com os aplicativos de relacionamento, para que eles tenham travas que possam dificultar esse acesso.
Não fazer uso do Pix é uma forma de evitar ser sequestrado?
Dificulta muito pouco. Os criminosos fazem a vítima instalar o Pix na hora, abrir contas digitais, fazer empréstimos. Você consegue montar uma conta quase instantaneamente. Isso tudo é bem sério. Mas as instituições bancárias deixaram de ganhar quase R$ 60 bilhões em taxas por causa do Pix. É interessante para eles que essa forma de pagamento se “prostitua”. No ano passado, tivemos 115 casos na Divisão Antissequestro, 104 deles esclarecidos. Mais de 300 pessoas foram presas. Neste ano, estamos com sete casos, sendo que seis foram esclarecidos.
A esquerda afirma que o Brasil prende demais. O senhor concorda?
Prende quem tem de ser preso. Mas também solta muito. Na semana passada, ao resolvemos um crime, descobrimos que o bandido está condenado há 29 anos no regime aberto. A PM outro dia prendeu um criminoso que praticava roubo de celulares no centro de São Paulo e descobriu que ele tinha sido preso 13 vezes. Assim, a polícia fica enxugando gelo. O que o país realmente precisa é atualizar o Código Penal e a Lei de Execuções Penais.
Até que ponto as grandes organizações criminosas interferem no desempenho dos responsáveis pela segurança pública?
Este é um grande problema. É notório que o PCC já estendeu seus braços a diversos ramos da economia legal. Eles estão infiltrados no comércio, em escolas, em bancos, em todas as áreas. Eles estão enraizados. O traficante não é mais aquele rapaz de bermuda e corrente de ouro. Temos dentro das organizações gente completamente inserida na sociedade. Eles estão realmente organizados.
Em muitas regiões, o celular tornou-se uma espécie de telefone fixo, porque é cada vez mais perigoso utilizá-lo em público. Como solucionar essa deformação?
Precisamos aumentar a sensação de segurança. Para isso, é imprescindível coibir o roubo de celulares. Temos de diminuir esse tipo de crime, para as pessoas sentirem que estão mais seguras. A bandeira do governo é aumentar essa sensação de segurança com a Polícia Militar fazendo o policiamento preventivo e a Polícia Civil investigando e prendendo. O policiamento ostensivo também ajuda e ele já começou em várias regiões da cidade, como na Avenida Paulista.
Quais são as soluções para o desmonte da cracolândia?
Nós tivemos várias prisões de traficantes travestidos de usuários, de pessoas que trazem a droga de fora, e desmontamos locais usados para armazenamento das substâncias ilícitas. É importante ter mapeado esse caminho para cessar a entrada de drogas naquele local. Mas a cracolândia não é um problema só de polícia. Paralelamente, são necessários assistentes sociais, médicos, psicólogos, ações na área de educação. Enfim, depende de um trabalho intersecretarias, que está sendo encabeçado pelo vice-governador. Não é de um dia para o outro que vamos resolver, mas a cracolândia tem jeito. Esforços e estratégias não vão faltar.
Por que o senhor quis ser policial?
É a melhor coisa do mundo. Se nascesse dez vezes, as dez teria sido policial. Deixo de fazer qualquer coisa para estar numa operação, numa ação. Nada é mais gratificante do que ver o alívio no rosto de um refém ao ser libertado de um sequestro.
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Parabéns pelo trabalho.
Excelente entrevista!
E nada é mais gratificante do que meter uma bala na testa de um traficante, não é?
“atualizar o Código Penal e a Lei de Execuções Penais”
Eis a chave para solução de muitos problemas envolvendo segurança pública.
Tenho parentes e amigos policiais que vivem o dilema – a polícia prende – a “justiça” solta.
Ainda mais com o atual DESgoverno federal e partidos de esquerda patrocinando verdadeiras aberrações na área de segurança pública.
Culpar o PIX e as Fintechs pela volta dos sequestros é brincadeira, né? A impunidade perpetrada pela Justiça progressista e a segurança pública falida não existem?
Gostei da reportagem. Perguntas coerentes e respostas objetivas.
Fiquei com a impressão de que o delegado Dian é competente, tem experiência e conseguirá, ao menos, minimizar os muitos problemas de seguranca que temos em São Paulo.
Essa é uma daquelas matérias das quais se diz: “não li e não gostei”…
Quem costuma não gostar sem ler é o ex-presidiário.
Delegado-Geral, Artur Dian, parabéns pelo trabalho e dedicação na polícia !