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Ilustração: Igor Batrakov/Shutterstock
Edição 155

Vem aí o real digital

Ele ainda está em fase de testes no Banco Central, e pode ser um triunfo à altura do Pix — se o PT não atrapalhar

Dagomir Marquezi
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No dia 6 de março, em entrevista coletiva na sede do Banco Central, nasceu oficialmente o Projeto Real Digital. A entrevista, conduzida por Fabio Araújo, coordenador do projeto, foi dirigida basicamente para especialistas em tecnologia de finanças e jornalistas de economia, com termos inacessíveis para pessoas comuns. O fato é que o real digital está em processo de parto, e um dia deverá fazer parte de nossas vidas, como o Pix já faz.

Real digital? Mais uma novidade?! Assim eu não consigo acompanhar…

Sim. O sistema monetário evoluiu muito, graças aos avanços tecnológicos, e continua evoluindo a cada dia. Essa evolução só ajudou até agora. Ou a gente estaria perdendo nossa vida em filas de banco até hoje.

O que eu faço com as notas de real que eu tenho na carteira?

Notas e cheques continuarão em circulação. Não serão substituídas pelo real digital. Mas é óbvio que esses meios tradicionais estão sendo cada vez menos usados. Segundo o Banco Central, apenas 3% do dinheiro disponível no Brasil está em forma de papel.

Real digital é a mesma coisa que criptomoeda?

Não. Criptomoedas — como o Bitcoin — são uma iniciativa particular, sem relação com o Banco Central, cujo valor varia de acordo com um mercado específico. O real digital é apenas uma nova forma da mesma moeda que usamos hoje. Vai ter o mesmo valor do real que usamos hoje. A classificação oficial do real digital é CBDC — Central Bank Digital Currency, ou Moeda Digital do Banco Central.

Foto: Shutterstock

Quem inventou o real digital?

Foi o mesmo inventor do Pix: o Banco Central do Brasil, sob direção de Roberto Campos Neto.

Quem mais usa moedas digitais oficiais?

Moedas digitais oficiais são conhecidas em geral como CBDC. A primeira foi o Sand Dollar, lançado nas Bahamas, em 2020. No ano seguinte, a Nigéria lançou o eNaira. E a China espalhou o eCNY, nos Jogos Olímpicos de Inverno de 2020. No ano passado, a tendência se espalhou para 56 países e passou a envolver opções digitais das moedas mais fortes, como o euro, a libra esterlina e o dólar. Todos ainda em fase experimental.

A digitalização da moeda vai “aumentar a velocidade das transações financeiras, o que pode impulsionar a economia do país”

Qual a diferença entre o Pix e o real digital?

O real digital é uma espécie de fase dois do Pix. O Pix facilitou muito a movimentação de dinheiro, superando velhos métodos, como o DOC e o TED. O real digital vai poder facilitar transações num nível mais profundo. Operações de empréstimo, por exemplo, que hoje são realizadas apenas entre instituições bancárias, deverão estar ao alcance de pessoas físicas. E, ainda mais importante, num futuro próximo, usuários do real digital poderão realizar transações de transferência como o Pix, mas sem passar por nenhum banco. Ou seja, ter um negócio próprio vai ficar ainda mais fácil. Mas essa é uma perspectiva ainda distante.

Polícia Civil líder quadrilha Pix
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Ouvi falar em tokenização da moeda.

Esse é um dos aspectos, que ainda está num estágio muito inicial. A tokenização cria uma identidade digital para um determinado valor. Pode ser uma obra de arte, que tokenizada passa a ter uma identidade única e se torna mais fácil de ser negociada diretamente com o interessado. Até um imóvel pode ser tokenizado, e aí não necessita mais de intermediários (como empresas ou governos) para ser negociado.

E qual a aplicação prática disso?

Digamos que você tem reais tokenizados no seu celular. Entra num supermercado, coloca as mercadorias no carrinho e elas são cobradas automaticamente, sem necessidade de um caixa para formalizar a transação. Outro exemplo: na era da “internet das coisas”, a sua geladeira pode identificar o que está faltando, fazer a compra com reais tokenizados, e a mercadoria chega à sua casa sem que você nem soubesse que estava faltando iogurte ou mamão.

Isso parece assustador.

Aplicativos bancários em celulares também assustavam, até virarem naturais, e a gente não conseguir mais viver sem eles. 

Tentei ler alguma coisa a respeito da implantação do real digital, mas não entendi muita coisa.

Nesse período de pré-implantação, as notícias sobre o real digital parecem saídas de um livro escrito em sânscrito. São termos técnicos como stablecoins, lift day, blockchain, ledger, NFTs. Se você for um economista ou um técnico de cripomoedas e moedas digitais, é bom saber o que significa tudo isso. O cidadão comum está por enquanto dispensado de entender esses detalhes. É como saber os detalhes técnicos de um aparelho de ultrassonografia. Ou tentar ler o manual de um Airbus. Para nós, pessoas comuns, o importante é que funcionem bem e de forma segura.

Quais são as vantagens na adoção do real digital para a economia brasileira?

Segundo Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central, o real digital pode trazer ainda mais parcelas da população para os serviços financeiros, aprofundando o que já aconteceu com a evolução das fintechs e com o Pix. Campos Neto também declarou que a digitalização da moeda vai “aumentar a velocidade das transações financeiras, o que pode impulsionar a economia do país”.

Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central | Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Então o real digital vai democratizar a economia brasileira?

Segundo o economista Fernando Ulrich, vai depender do rumo que vai ser tomado. Em seu canal do YouTube, Ulrich diz que hoje, no sistema monetário, “os bancos comerciais são as únicas instituições que têm acesso direto ao Banco Central, por meio de contas, que são chamadas de reservas bancárias. Ao conceber essa ideia de digitalizar o dinheiro (…) os cidadãos vão tirar dinheiro dos bancos. Se eu posso ter uma conta direto na autoridade monetária, para que vou usar o banco que pode vir a quebrar? “Além de todos os riscos à privacidade e à liberdade individual (…) e dependendo das ferramentas que possam ser usadas, o Real Digital tem o potencial de se tornar um dispositivo totalitário. Pode conceder um poder enorme a bancos centrais e a governos e ninguém deveria ter esse tipo de poder”

YouTube video

Então devemos parar com essa experiência já?

Fernando Ulrich diz que o real digital nem é propriamente uma CBDC, ou dinheiro digital. Segundo ele, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, conhece os perigos à liberdade que envolvem a implantação de uma moeda digital. O BC criou um sistema híbrido, que não daria tanto poder ao Banco. A mudança seria mais tecnológica, no sentido de agilizar operações bancárias.     

O real digital pode facilitar a vida para a bandidagem?

Segundo o anúncio de lançamento, o Banco Central está comprometido com um “desenho tecnológico que permita integral atendimento às recomendações internacionais e às normas legais sobre prevenção à lavagem de dinheiro, ao financiamento de terrorismo e ao financiamento da proliferação de armas de destruição em massa”. O combate à lavagem de dinheiro não ficou muito claro na apresentação do projeto. E é bom lembrar que o real digital vai usar a tecnologia do blockchain, que registra cada passo de cada operação. O Banco Central ressaltou também a preocupação com a privacidade e o sigilo bancário.

Quando eu vou ter real digital no bolso? Ou melhor, no aplicativo do meu celular?

O Projeto Real Digital está sendo planejado desde 2021 e foi lançado oficialmente na última terça-feira, dia 6. Em abril, o projeto terá um workshop, para aperfeiçoar sua “arquitetura” de funcionamento. Em maio de 2023, deverá ter início um laboratório do sistema, com alguns participantes escolhidos no setor financeiro. Em dezembro, as últimas definições deverão estar prontas, e os testes básicos deverão estar encerrados até fevereiro de 2024. No mês seguinte, começam os primeiros passos, para que até o fim do ano que vem o real digital chegue ao público.

Foto: Montagem Revista Oeste/RanilsonArruda/Shutterstock

Ainda não entendi direito o que isso vai mudar a minha vida.

Aí ficamos com as palavras do coordenador do projeto, Fábio Araujo: “Nós somos apenas os reguladores, a gente não é tão criativo assim. Quem é criativo é o mercado”. Ou seja, o BC cria as regras do jogo, mas quem entra em campo é a sociedade. É bom lembrar que o Pix foi apresentado como uma série de novas regras financeiras, mas foram as forças do mercado que permitiram que o sistema fosse usado para grandes compras, para pagar um táxi ou até dar esmola.

O Projeto Real Digital sofre algum tipo de ameaça?

Enquanto o Banco Central for independente, provavelmente não. Mas o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deixa claro quase todos os dias que quer acabar com essa independência, mandar Roberto Campos Neto para bem longe e nomear seu sucessor com uma canetada. Além disso, o petismo é tão apegado ao passado que até agora não reconheceu a mera existência do real como nossa moeda.

Foto: Montagem Revista Oeste/Andre Nery/Shutterstock

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2 comentários
  1. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Roberto Campos Neto vem fazendo um grande trabalho.

  2. Marcelo De P. Santos
    Marcelo De P. Santos

    A malandragem está anos-luz a frente. Nos presídios essa prática já existe desde o primeiro governo Lula. Aliás, facilitou e muito as maracutaias do lulopetismo.

  3. Rute Moraes
    Rute Moraes

    Muito bom, Dagomir!

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