Como começa uma catástrofe? São Sebastião, litoral norte de São Paulo, madrugada de 19 de fevereiro de 2023. Três mulheres que não se conhecem percebem que algo está muito errado naquele domingo de Carnaval. Elas estão acostumadas à chuva pesada dessa época do ano, mas nesse domingo há uma sensação sinistra se acumulando no ar úmido.
Elenice Silva dos Santos Costa: “Dormi à 1 e meia da manhã. Estava sem sono por causa da chuva. Minha casa, de aluguel, ficava no Morro do Esquimó, onde morava com meu marido e três filhos. A chuva era constante, tinha goteiras em casa. Como sou cristã, fui orar. Tive uma visão do morro descendo, mas achei que era coisa da minha mente”.
Lielma Melquíades: “Naquele dia eu estava no mercado, e tive uma sensação muito ruim. Só não sabia o significado dessa sensação. A rua começou a encher de água, e meu coração dizendo: ‘Vai pra casa que ela vai inundar’. Alguma coisa me dizia, só que eu não quis escutar. Corri para uma barraquinha para esperar a chuva diminuir, mas ela só foi aumentando.
Milena Pinheiro Santos: “Achamos que ia ser uma chuva normal. Aí a gente acordou à 1 hora da manhã, e, com a enxurrada lá fora, começou a entrar água na minha casa. Quando chegou umas 3h40 da madrugada, a gente ouviu o barulho. Tinha muita gente gritando, mas eu achei que era um vizinho, que está sempre discutindo. Às 4 horas, chegou meu irmão, que mora um pouco abaixo da minha rua. Ele gritava: “Corre, corre, o morro está descendo”.
Elenice: “Deitei, peguei no sono. Às 5 da manhã, minha mãe bateu na porta gritando: ‘Juju, acorda, o morro tá descendo!’ Desceu mesmo. A casa rachou. Minha mãe ‘tava’ desesperada, porque a chuva tinha levado muita gente morta. Peguei só meus documentos e meus filhos”.
Lielma: “Não tinha mais como ficar na casa. Acordei meus pequenininhos e meu marido. Meu filho estava até boiando em cima da cama. Ele perguntou: ‘Mãe, podemos sair agora?’. Peguei a chave e na hora de trancar a casa tomei um choque. Meu marido falou que até minha voz mudou. Só que Deus é tão bom que aquele choque desligou a energia elétrica”.
Milena: “Catei meus filhos e meus documentos e saí na rua já com água pela cintura. Ficamos na casa do meu irmão até o dia clarear. A gente sabia que estava acontecendo algo grave, mas não imaginava a imensidão do desastre. Nessa madrugada só clareou às 6 da manhã, quando normalmente às 4 da manhã já tá claro. A gente estava sem sinal de internet nem energia elétrica para pedir socorro. Vi muita gente morta. A primeira pessoa morta que eu vi passar foi um bebezinho de 9 meses, no colo de um rapaz”.
O laboratório de Boiçucanga
Elenice e Lielma hoje se conhecem e viraram amigas. Elas e Milena nunca mais vão esquecer o que passaram a partir daquela madrugada. Podem considerar que tiveram uma relativa sorte. Com as chuvas, 65 pessoas morreram, e nenhuma delas nem seus maridos e filhos estavam nessa lista. Mas as três passaram a fazer parte de outra estatística: a dos mais de mil desabrigados pela tragédia.
Catástrofes no Brasil geralmente terminam em choro e ranger de dentes, miséria continuada, reclamações contra o poder público, dinheiro desviado pela corrupção e soluções ruins para as vítimas. Mas parece que essa catástrofe que se abateu sobre três bairros de São Sebastião (Boiçucanga, Sahy e Camburi) serviu de laboratório para que algumas soluções fossem tentadas, para pelo menos amenizar os efeitos imediatos do desastre. Oeste visitou a região de Boiçucanga e viu o que deu de mais certo nesse drama.
O ônibus passa pelas cicatrizes deixadas pela Rio–Santos. Os entulhos à beira da estrada, lama por todo lado, fatias de vegetação descascadas dos morros. Afinal, chove todos os dias na região, e chove pesado. Mas a estrada que liga o Rio de Janeiro a Santos e passa por São Sebastião está completamente liberada. É só mais conveniente viajar por lá antes das 15 ou 16 horas, quando o aguaceiro costuma desabar.
Na Vila de Boiçucanga, tudo parece normal. As pousadas estão funcionando, o modesto Beira Praia Shopping recebe clientes em seus restaurantes e lojas de celulares, o Manelito Café espalha seu aroma, a Neh corta cabelo no seu salão, o Fernando Chaveiro atende 24 horas. Vida normal. A presença de turistas caiu muito, e ninguém pode exigir que as pessoas apareçam num lugar que, menos de um mês atrás, estava retratado na imprensa como um filme de terror. A praia vive seu momento de baixa temporada, como num inverno fora de hora. Uma diferença evidente é notada por um morador: “Nunca vi tanta polícia aqui!”.
Chega o maior navio da Marinha brasileira
As viaturas que sobem e descem a SP-055 de luzes ligadas representam didaticamente a intervenção do Estado, quando ele é necessário. Os deslizamentos de terra mexeram com o tecido social da região. Pessoas estranhas começaram a aparecer do nada nas ruas da cidade e é impossível distinguir quem é quem. A presença ostensiva de policiais — alguns vindos de regiões distantes, como Campinas — deixa a população visivelmente confiante. Afinal, saques e outros atos de violência costumam se seguir a catástrofes. Em Boiçucanga, não aconteceu.
“Criamos alguns serviços extras, como um atendimento psicológico, um lanche da tarde, e todas as noites fazemos alguma coisa. Ontem fizemos uma noite de cinema para as crianças, com filme da Disney, refrigerante e chocolate”
Ainda podemos ver movimentações de militares pela região. Quatro dias depois da tragédia, o maior navio da Marinha brasileira aportou em São Sebastião. Com 200 metros de comprimento, o Navio-Aeródromo Multipropósito Atlântico levou à região, de uma vez só, 28 médicos e 200 leitos hospitalares, além de uma UTI completa. É uma força de ocupação transformada em pronto-socorro: seis helicópteros e três embarcações, para atingir localidades isoladas pelas chuvas com ortopedistas, cirurgiões, anestesistas, dentistas, farmacêuticos e enfermeiros. No dia 27 de fevereiro, o Atlântico foi ancorado próximo aos bairros de Juquehy e Barra do Sahy, e 180 militares se instalaram em terra para agir mais próximos à população necessitada.
Assim, o atendimento imediato aos doentes e feridos foi resolvido. O grosso do entulho foi tirado do caminho, com mais de 1,4 mil viagens de caminhões lotados de detritos, com as sete regionais de limpeza e manutenção da prefeitura, chefiada por Felipe Augusto (PSDB, hoje enfrentando processo de cassação pelo gerenciamento da pandemia de covid). As doações de alimentos e água foram generosas e imediatas. Não houve tempo para surgir uma crise de sobrevivência. Mas havia um problema logístico mais complicado a resolver. O que fazer com os mais de mil desabrigados?
Condição laranja
A princípio, eles foram encaminhados em emergência para escolas, creches e outras instituições que sempre servem de solução de emergência para catástrofes naturais. Mas um grupo de refugiados que acampa numa escola não resolve sua situação de maneira satisfatória. E impede que a escola funcione. Um problema vira dois, e ninguém fica satisfeito.
Na sexta-feira 24 de fevereiro, o governador paulista, Tarcísio de Freitas, e o prefeito Felipe Augusto se reuniram com empresários de hotéis e pousadas locais para pensar numa solução mais criativa e construtiva para os que tiveram suas casas destruídas.
Elenice, por exemplo, não tem mais condições de pagar os R$ 800 de aluguel. Nessa situação, ela, que é manicure, não consegue mais atender suas clientes, muitas das quais perderam tudo e até mesmo a vida. “Tive que me desfazer de tudo o que eu tinha: cama, geladeira, fogão”, contou. “Uma tia me arrumou um cantinho na casa dela, para colocar minhas roupas e o material de trabalho.” Lielma também perdeu tudo. Milena está com a casa interditada (em “condição laranja”) e não sabe se vai poder voltar a ela, ou a casa entrará na condição vermelha e será demolida.
A primeira opção oferecida foi mudar para um conjunto habitacional em Bertioga. Isso implicaria em que as três mulheres rompessem com a rede de clientes que elas criaram, obrigassem seus maridos a mudar de emprego, e as crianças a começassem tudo de novo na vida escolar. Essa alternativa está sendo evitada por elas, por enquanto.
Então o governador Tarcísio formalizou uma proposta provisória, mas com potencial de resolver vários problemas de uma vez só. Patrick Moll, proprietário do Laika Hostel, em Camburizinho, resumiu a ideia: “Os desabrigados são hóspedes”, disse. “Essa hospedagem está sendo paga. Não é um serviço de caridade”. O Laika hoje está todo ocupado por desabrigados, incluindo Milena Pinheiro Santos: “A recepção foi muito boa, os donos são maravilhosos, não temos do que reclamar. Temos café da manhã, almoço, jantar, a higiene é perfeita, os donos se preocupam com as crianças, fazem seção de cinema, arrumam doces”.
Cinema e piscina
Como empresário, Patrick tem uma visão macro da situação. “Não há dinheiro público envolvido. Quem financia são grandes empresas, que fazem doações através de um grupo chamado Gerando Falcões. Eles estão injetando R$ 16 milhões na economia local. Os turistas não viriam, porque as estradas não estariam muito confiáveis.”
Segundo Patrick Moll, a proposta do governo estadual foi direta: “Nós vamos pagar essas pousadas”, disse o governador Tarcísio. “Não quero que vocês cobrem menos e não quero que vocês cobrem mais. Quero que vocês cobrem o preço normal.” “Isso foi muito legal. Mesmo com essa crise, eu não estou tendo prejuízo, muito pelo contrário. Estou conseguindo empregar mais gente. Normalmente eu não sirvo refeição na pousada. Contratei uma cozinheira local e duas ajudantes. Então a gente está oferecendo a hospedagem junto com três refeições. E tudo está incluído no valor que eles pagam para a gente. Assim, fazemos a economia girar.” O empresário citou o trabalho feito pela ONG Gerando Falcões, fundada por Edu Lyra. Em seu relatório divulgado para a imprensa, a organização afirma que realizou o “pagamento das pousadas e dos hotéis para 595 pessoas”, no valor de R$ 3,7 milhões.
Segundo Patrick Moll contou a Oeste, a solução encontrada não vai fazer milagres. “Fico preocupado com as outras pousadas, porque daqui de Camburi foram selecionados cinco hotéis e pousadas, das centenas que temos. Mas tivemos essa sorte, porque a gente se inscreveu e levou muito a sério essa possibilidade. Criamos alguns serviços extras, como um atendimento psicológico, um lanche da tarde, e todas as noites fazemos alguma coisa. Ontem fizemos uma noite de cinema para as crianças, com filme da Disney, refrigerante e chocolate.”
O fato é que as crianças que enfrentaram o inferno das enchentes agora estão no paraíso, e demonstram isso nos seus sorrisos abertos. Eles viviam em casinha no morro. Agora estão vivendo em férias, instalados em pousadas onde jamais sonhariam em se hospedar, com comida farta, cama com lençóis limpinhos, cinema à noite e diversões diárias. Outro hostel, o Camburizinho, tem praticamente tudo isso, mais um salão de jogos. E a piscina já deve ter sido liberada para as crianças.
Xixi no colchão
Muitos donos de hostels nem se candidataram a receber desabrigados, com medo do que pudesse acontecer com seus estabelecimentos. Visões de paredes pichadas, sujeira, vidros rachados, objetos roubados fizeram com que não se arriscassem. Mas, pelo menos nos dois hostels visitados por Oeste, nada disso aconteceu.
“No começo, os desabrigados ficaram meio perdidos”, conta Artur Dutra, supervisor do Camburizinho. “Se comportavam como se estivessem nas casas deles. A gente passou os regulamentos nas nossas duas unidades. A gente disse: ‘Temos as nossas regras e esperamos que vocês respeitem essas regras’. Era muita conversa alta, e eles fumavam aqui dentro, o que não é permitido. Colocamos dois cartazes com as regras, e eles estão seguindo direitinho. E são tratados como hóspedes.”
Patrick Moll teve a mesma impressão no Laika: “Todo mundo ficou com o pé atrás com relação ao comportamento dos desabrigados nos hostels. Muitas pousadas não se cadastraram no programa por causa desse preconceito. ‘Ah não, vai ter violência, bebedeira, droga, tráfico’, e tudo que a gente sabe que acontece nessas comunidades. E eu não vi acontecer nada de ruim aqui. Para mim, são hóspedes normais. Pelo contrário, você encontra a menina que acorda às 4 da manhã para ir até a faculdade, em Caraguatatuba. Todo mundo está sendo bem-educado, simpático. Aqui a gente não teve problema nenhum de briga, depredação, de nada. O que teve é que normalmente a gente não hospeda criança, e estamos com 25 crianças. É normal ter problema. Tipo fazer xixi no colchão”.
Mas esses 30 dias no paraíso vão acabar. É preciso uma solução definitiva. Alguns estão sendo incentivados a retornar a seus Estados de origem. Outros poderão ser encaminhados para residências provisórias. Uma solução mais definitiva é esperada para daqui seis meses: residências modulares, construídas em alta velocidade. Alguma coisa precisava ser feita, e foi.
As pessoas que hoje vivem provisoriamente nos hostels estão obviamente preocupadas com o futuro. Existem planos e projetos, mas, para Elenice, Lielma e Milena, nenhuma certeza concreta. O trabalho feito até agora de salvamento e amparo às vítimas foi exemplar e está funcionando. Enquanto jornalistas esquerdistas publicavam colunas e artigos na velha imprensa dizendo que a catástrofe era mais um reflexo da luta de classes, centenas de pessoas, muitas voluntárias, deram jeito numa situação difícil com soluções originais.
Um morador, há muitos anos em Boiçucanga (que preferiu não se identificar), colocou todo esse cenário de sonho e solidariedade numa dúvida sombria. “O ser humano não tem jeito”, afirmou. “Daqui a pouco as chuvas param, e as pessoas voltam a construir suas casas nas partes mais perigosas dos morros. Não pensa que só pobre constrói em lugares de risco. Essa chuva deixou muita mansão de rico condenada. Perderam tudo. Daqui a um ano a gente vai ter outro desastre e vão colocar a culpa de novo na chuva.”
(Agradecimento: Ronaldo Gonçalves Lima)
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Este é um texto fantástico que, imparcialmente, analisa o que foi feito. O que foi feito não é comum de acontecer. Parece até de países decentes. Sem roubalheira, com educação, de todas as partes vimos a solução provisória nota 10. Todos contentes com o cumprimento de responsabilidade por parte de TODOS: governo estadual, sofredores da enchente/deslizamentos, pequenos empresários. O que chama a atenção positivamente é o cuidado com as crianças. Parabéns ao colunista e a todos que participam da situação ocorrida e ainda com as consequências.
Ação, iniciativa em conjunto com empresários locais evitou que a catástrofe tivesse contornos muito piores.
Sem alardes o governador Tarcísio demonstrou como deve ser a gestão de situações de calamidade.
Tantos anos de descaso por alguns governadores, acredito que o Tarcísio fará diferente. Hospedar os desabrigados provisoriamente nas pousadas e hotéis foi uma excelente
iniciativa, agora é tratar o futuro. Acredito na competência do governador e no seu empenho em ajudar os maios necessitados..
Muito legal esse atendimento, mas o problema deve ser resolvido pelas autoridades do governo, pois ano que vem com certeza terá mais chuvas.
Inspirante, mesmo não havendo final feliz duradouro por enquanto
Toda essa tragedia revelou quem é o verdadeiro governante que ainda resta no Brasil. O GOVERNADOR TARCISIO DE FREITAS. Nao existiu nenhuma açao que nao fosse direcionada para o bem estar das pessoas. Homem integro e com profundo compromisso com os Paulistanos. Com decisoes planejadas e executadas firmemente, foi avançando e transformando a tragedia em uma uniao do povo, que lutou para vencer as adversidades. Com certeza os impostores e oportunistas ja estao preocupados com esse lider genuino. Que cada vida que foi perdida nessa tragedia seja uma razao para lutar que isso seja resolvido definitivamente, e que o povo deixe de ser usado por politicos falastroes e impostores. Basta ver a retrospectiva de Sao Sebastiao e de todos o politicos que ja administraram, essa tragedia foi o resultado de administraçoes de corruptos e ladroes.