“Não me agrada a rigidez nas espadas longas e nas mãos. Rigidez significa uma mão morta. Flexibilidade significa uma mão viva” — ensina o célebre samurai Miyamoto Musashi, em seu O Livro dos Cinco Anéis, clássico manual de estratégia. Tendo vivido no Japão da virada do século 16 para o 17, consta que esse Ronin, guerreiro solitário e autodidata, jamais perdeu um combate, sagrando-se invariavelmente vitorioso contra mais de 60 oponentes. Dominando tanto a arte do manuseio da katakana (espada longa) quanto da wakizashi (espada curta ou “companheira”), Musashi sabia bem quão fatal podia ser a rigidez de movimentos em combate.
Mas, se na guerra a rigidez é trágica, na vida cotidiana, ao contrário, ela é cômica. É o que Henri Bergson sugere em O Riso: Ensaio Sobre o Significado do Cômico. Como explica o filósofo francês, uma das causas do cômico é a presença de certa rigidez mecânica ali onde seriam esperadas a maleabilidade atenta e a flexibilidade viva. Alguém que, a correr pela rua, tropeça e cai, provoca riso nos transeuntes, porque, por falta de agilidade, por desvio ou teimosia do corpo, continuou realizando o mesmo movimento, quando as circunstâncias exigiam algo distinto. O mesmo se dá em relação ao sujeito demasiado metódico, que se empenhasse em suas pequenas ocupações cotidianas com uma regularidade matemática. Caso algum gozador embaralhasse seus objetos pessoais, o contraste entre o comportamento habitual e a nova situação gerada pela broma provocaria riso: o pobre mete a pena no tinteiro e sai cola; acredita sentar numa cadeira sólida e se estatela no chão; tenta calçar os sapatos, mas os pés estão trocados.
A razão da comicidade é a mesma nos dois casos, e consiste na incapacidade de se adaptar, em tempo, a um obstáculo imprevisto ou a uma alteração nas circunstâncias. Trata-se, noutro plano, da comicidade que caracteriza o Dom Quixote de Cervantes, pois o nobre fidalgo, como que congelado na história, continuava a se portar como no tempo mítico dos cavaleiros andantes, sem atinar para a mudança de era e para a realidade em que viviam os seus contemporâneos. E, com efeito, a rigidez quixotesca é responsável por algumas das páginas mais cômicas — e, simultaneamente, um tanto quanto melancólicas — da literatura universal.
Na política — que, sob certo aspecto, está a meio caminho entre a comédia e a guerra —, a rigidez tende a resultar num misto de tragédia e comédia, ou, se preferirem, numa tragicomédia. No universo político brasileiro, ainda mais. A possibilidade de um destino tragicômico, por exemplo, talvez seja o maior risco representado pelo retorno do ex-presidente Jair Bolsonaro ao Brasil, a principal notícia política desta quinta-feira, 29. Risco, por óbvio, da perspectiva de seus eleitores, apoiadores e simpatizantes.
No seio da direita brasileira contemporânea, muitos parecem ter concluído que, se Bolsonaro foi um bom administrador do país, também foi, por outro lado, um mau combatente
Tudo dependerá, a meu ver, da postura de Bolsonaro em relação às novas circunstâncias. Dependerá, em último caso, da alternativa entre uma eventual rigidez — que aniquila o político ou faz dele um objeto cômico (o que, em termos de estima pública, vem a dar no mesmo) — e uma esperada flexibilidade, que lhe garante sobrevida e o imuniza contra o riso (de deboche) alheio. Que Bolsonaro é esse que retorna dos EUA? Um político ágil e flexível à la Miyamoto Musashi, ou um rígido tragicômico como Dom Quixote e as vítimas do samurai? Confesso ser essa a minha maior curiosidade no momento.
O risco da rigidez apresenta-se considerável, sobretudo porque algumas das condições sociopolíticas anteriores se mantiveram parcialmente, o que pode servir para obliterar a percepção das mudanças. A persistência do fascínio popular exercido por Bolsonaro já havia ficado clara, por exemplo, durante sua estadia nos EUA. Por onde quer que passasse, ele não cansava de receber efusivas manifestações de apoio, provenientes não apenas de brasileiros, mas também de representantes da direita norte-americana. No início do mês, o ex-presidente brasileiro talvez tenha sido a principal estrela do CPAC 2023 (Conferência de Ação Política Conservadora), chegando a ofuscar Donald Trump. Um feito e tanto.
Já no Brasil, parecem se repetir as cenas familiares, que mostram um Jair Bolsonaro sendo recepcionado por multidões de apoiadores, ainda fortemente mobilizados pelo carisma político do ex-presidente, quase como se o tempo não tivesse passado. No Aeroporto de Brasília, em suas vias de acesso e na frente da sede do PL, ressoam insistente o tradicional coro de “mito, mito” bem como a declamação ritmada do lema da última campanha: “Deus, pátria, família e liberdade”. E o que não faltam são políticos e parlamentares bolsonaristas oferecendo lealdade e disposição para a briga. Portanto, não parece haver dúvida de que Bolsonaro conserva um considerável capital político. Caso consiga resistir à pesada artilharia do conluio institucional antibolsonarista, o ex-presidente pode surpreender e ter uma sobrevida política, sobretudo na ausência de novos quadros no arco do anticomunismo.
Mas, obviamente, toda essa aparência de continuidade pode induzir à rigidez de comportamento, sugerindo a ideia de que, para enfrentar as batalhas políticas vindouras, se devem manter as mesmas estratégicas, táticas, armas e ferramentas do período anterior. E aí, justamente, residiria o maior erro do “novo” bolsonarismo. Pois a verdade é que, entre as gigantescas manifestações populares da celebração da Independência e o momento atual, intercorreu o fatídico 8 de janeiro, com todos os seus conhecidos desdobramentos. Não, não navegamos mais nos ventos favoráveis de 2018. E já não nos movemos no contexto favorável de ascensão entusiasmada da assim chamada direita brasileira. Não estamos mais no bojo da esperança restauradora de 7 de setembro de 2021, logo frustrada por um acordo manco, costurado desde cima. Nem, tampouco, no frenesi aguerrido de 7 de setembro de 2022, que muitos na direita viram como a batalha decisiva pela sobrevivência de um projeto de país soberano.
Vivemos, em vez disso, o período pós-derrota. Para a direita, uma derrota que não foi apenas eleitoral, mas sobretudo política e cultural. O contexto atual é o de um novo regime, controlado com mãos de ferro por socialistas, que, depois de décadas de aparelhamento estatal (e, em especial, do Judiciário), se mostram dispostos a lançar mão de toda a expertise em reprimir politicamente a oposição. Já em seus primeiros dias, esse regime tratou de comandar milhares de prisões políticas, que tiveram como alvos aqueles apoiadores que, em vão, depositaram esperanças exageradas em Bolsonaro e nas Forças Armadas.
Por conta de tudo o que se passou, o apoio popular de que ainda desfruta o ex-presidente hoje divide espaço com o desencanto. A história não pode ser desfeita, e o que atualmente se percebe entre muitos dos antigos apoiadores de Bolsonaro é uma decepção com a forma com que o ex-presidente encerrou o seu ciclo à frente do governo. O 8 de janeiro e os eventos subsequentes deixaram a sensação de que, ali onde se esperava liderança, restou um silêncio ambíguo, que acabou expondo a “tropa” à sanha do inimigo. E quando se esperava fortaleza, o que veio foi uma retirada às pressas, que deixou desamparados os da linha de frente. Convém não desprezar essa memória.
No seio da direita brasileira contemporânea, muitos parecem ter concluído que, se Bolsonaro foi um bom administrador do país, também foi, por outro lado, um mau combatente, tendo fracassado na desmontagem das estruturas de poder do inimigo. Sem entrar no mérito da justeza ou não dessa conclusão, resta evidente que, se as estratégias outrora adotadas — que revelaram uma desproporção entre os furiosos rosnados na direção do inimigo e as débeis mordidas que se lhes seguiam — já eram inadequadas à época, hoje o são, a fortiori, ainda mais. Para a direita, o momento é de flexibilidade, adaptabilidade e reformulação nos métodos.
É, sobretudo, um momento de autocrítica. No passado recente, a direita entregou-se muito rápido a um estado de triunfalismo ingênuo, cuja imagem simbólica talvez seja a de Bolsonaro chutando para longe um boneco do Pixuleco, uma cena catártica, que sugeria o fim definitivo da ameaça comunopetista ao Brasil. Hoje, que essa ameaça se concretizou de maneira avassaladora, a direita saltou diretamente do triunfalismo para um estado de desencanto paralisante. Em sendo urgente livrar-se desse último, já não se pode fazê-lo, contudo, retomando o primeiro. Afinal, a presente situação é a de uma guerra travada no terreno inimigo e em franca desvantagem bélica. E, num tal contexto, afigura-se como tragicômica toda e qualquer bravataria, mesmo aquela que, num passado recente, talvez fosse dotada de algum sex appeal.
A hora é de discrição, não de espalhafato. É de aproximações sucessivas, não de pé na porta. É do silencioso Miyamoto Musashi, não de anacrônicos cavaleiros andantes munidos de memes e “tic tacs”, e menos ainda do Cavaleiro Negro do Monty Phyton, aquele que, reduzido pela espada do inimigo a pouco mais que um cotoco humano, continuava bravateando a sua iminente vitória…
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Muito bom artigo, argumentos sólidos. Todos deveriam ler para avaliar corretamente os fatos atuais e futuros.
Jair Bolsonaro tem de ser mais uma peça a favor da direita, e grande peça diga-se de passagem. Mas não a única.
Achei excelente a colocação de que Bolsonaro foi um bom administrador e um mau combatente. Sobre ter sido um bom administrador, temos que levar em conta que ele fez o mínimo que poderia fazer (e que ninguém nunca fez): colocar nos ministérios (reais condutores da administração) pessoas qualificadas e capacitadas para o respectivo assunto das pastas, em vez do processo tradicional de repartição do butim entre os aliados políticos. No tocante a ter sido um mau combatente, atribuo isso a um erro básico de Bolsonaro, que contaminou todo o seu entendimento da situação: ele acreditou que, em 2018, o Povo votou “nele”, quando, na verdade, votou “contra o PT”. Achando que sua vitória estava vinculada à sua pessoa, Bolsonaro começou seu governo da forma como sempre fora: bronco. Acertou quase tudo sobre a Pandemia e conseguiu errar o básico em relação a ela. Deveria ter usado a máscara e recomendar o máximo de cuidados, mas sem permitir o Fique em Casa. Deveria ter peitado o STF logo na primeira interferência (salvo engano, na escolha do Diretor da PF), que era da competência exclusiva do Executivo. Essa omissão fez o Judiciário crescer e ficar fora de controle. Errou ao pressionar as FFAA a apoia-lo, no início do governo, e demitindo os três Comandantes, por não te-lo feito. Aí Bolsonaro perdeu as FFAA. Errou, ainda, ao não exigir o Código-Fonte, onde poderia ter convocado as FFAA para Garantir a Lei e a Ordem, no tocante à transparência e lisura dos pleitos. E, terminou seu mau combate deixando um vácuo de liderança atrás de si, resultando nos fatídicos acontecimentos de 8 de janeiro e suas funestas consequências. Minha opinião: ele deve usar o pouco de carisma que ainda tem para ORGANIZAR a Direita e abrir o caminho para Zema ou Tarcísio. Entre os dois, acho que o Zema primeiro, pois o Tarcísio ainda deveria fazer um 2º mandato como Governador, ganhando mais experiência política. Ao final deste 2º mandato, passaria para uma cadeira no Senado, esperando acabar o 2º mandato de Zema, para, então, sucedê-lo. Seriam 16 anos ininterruptos de Direita no poder…
Flávio Gordon, vem se destacando como o principal entusiasta de Olavo nos tempos atuais. Bela analogia entre dom quixote e o samurai japônes e a realidade atual do presidente bolsonaro. Esperamos que ele entenda seu papel no atual momento e use da flexibilidade sua principal arma,como bem colocado pelo o autor. E vou discordar um pouco de comentários anteriores, não podemos só colocar a responsabilidade nas urnas eletrônicas do TSE. Muitos brasileiros não foram votar com um nozinho do capitão, isso com certeza fez diferença para o nove dedos.
Flávio Gordon, uma vez mais, excelente! Parabéns. Suas reflexões são sábias.
Também concordo com o leitor João Lucena. Sem voto impresso e eleições limpas e transparentes, acabou-se a democracia. Ou, como disse Flávio Gordon em artigo anterior, vivemos uma democracia trans, ou seja, uma ditadura socialista que se identifica como democracia.
Muitos compartilham silenciosamente dessa sua reflexão. Queira Deus, os que rodeiam Bolsonaro, entendam os recados e não nos atrapalhem. É mesmo o momento de repensar a estratégia, abrir novas frentes e descobrir novos líderes. Não nos prendamos a uma única pessoa.
As análises de Flavio Gordon são um refrigério!
A hora é de prudência já que o inimigo não tem limites!
Empurraram goela abaixo da nação um descondenado disposto a se vingar de tudo e de todos que não lhe puxem o saco. O resultado está aí!
Excelente análise, Flávio Gordon. Somente uma ressalva, Bolsonaro não perdeu a eleição, nem o nove-dedos ganhou. O molusco foi empossado pelo ste/stf (com minúsculas, pois minúsculos são seus integrantes) que fez valer sua vontade. No mais, concordo com você, Bolsonaro não pode sair lutando com moinhos de vento, como se gigantes fossem.
Parabéns pelo comentário!
Excelente..
🇧🇷👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻
Direto no alvo.
O presidente teve duas opções. Ou governava ou ficava degladiando com os inimigos que no caso eram todas as três instituições além da imprensa. O novo governo, ainda não começou a governar e isto não é surpresa para ninguém. Nasceram para pedra e não vidraça. As preocupações com o PT não durarão muito tempo. Mais depressa do que parece, o Chuchu do PSD, será o foco da atenção.
Eu acho que a saída de Bolsonaro da linha de frente, não foi um caso de covardia e abandono do campo de batalha, simplesmente. Em cima da hora, percebeu que as FFAA, só estiveram com ele para obterem prestígio e benesses e no momento de apoiá-lo, junto ao povo, mostraram ser na verdade vermelhos ao invés de verde oliva. Lavaram as mãos nas questões fraudes das urnas e na disparidade das campanhas eleitorais. Além do mais, qualquer palavra ou discurso que fizesse, seria preso pelo STF, que já estava como urubú na carniça a mando do presidiário. Se acontecesse isso, não teria como voltar e dar continuidade à luta pela democracia. Não acho que ele se remete a um Dom Quixote.
Excelente a abordagem feita pelo artigo.
Sugiro uma reflexão a todos que enfatizaram a fraude eleitoral. Não seria parte da flexibilidade de um combatente inteligente (Musashi) trabalhar com o parlamento para conseguir as melhorias necessárias antes da próxima eleição? Aproveitar a frustração com o desgoverno “eleito” para amealhar aliados onde antes existiam adversários (inclusive no judiciário)?
Não adianta nada se as eleições forem feitas em urnas eletrônicas
Muito bom . Lula foi eleito pelo TSE, uma eleição sem transparência um Judiciário q tudo fez para eleger o Lula. Impediram o voto auditavel, por qual motivo??? O código fonte, cadê? Tudo muito nebuloso.
O fato de bolsonaro ter feito exatamente o necessário , para mim significa que continuará a fazer exatamente o necessário. Saber o que é necessário e a função número 1 de um líder. Não concordo com as alternativas oferecidas, como uma continuidade do status quo. Bolsonaro quando começou não estava trilhando um caminho oferecido. Sempre fez o que era necessário. Um líder faz isso. Perder não faz de bolsonaro menos líder. E bom lembrar isso. Um líder mantém seus seguidores sempre. O desencanto não está nos seguidores, e sim nos que vem uma derrota como definitiva.
Mas Flavio, talvez você não tivesse produzido este artigo se tivéssemos o VOTO IMPRESSO. Em muitos países civilizados teríamos a RECONTAGEM dos votos em tão estreita vitória, bem como auditoria por amostragem em urnas sorteadas pós votação para identificar possíveis desvios para recontagem total dos votos. Algo simples, que as empresas fazem e constatam graves ocorrências. Agora, como fazer AUDITORIA nas urnas eletrônicas? Portanto Flavio, entendo que a Revista Oeste, Gazeta do Povo, Brasil Paralelo e alguns jornalistas da JP, poderiam iniciar um trabalho junto aos parlamentares para PAUTAR novamente a PEC do voto impresso já para 2024. Isto seria um ato antidemocratico da imprensa honesta?
Concordo com você, não acredito na “vitória” do PT, é ilegítimo esse governo.
Exatamente. Perfeito suas observações.
O brasileiro andava triste, chateado, desnorteado com as urnas sem nada poder fazer!
Deixou até de acompanhar o noticiário
Dia 30/03/23, a chegada de Bolsonaro gerou um rebuliço: jornais tiveram mais audiência ou busca, pessoal com cara de feliz!
Que bom!
Concordo c/ a 0pinião de Antonio Carlos. Acredito nesta sugestão .
Interessante a visão. No entanto, desconsidera um ponto que entendo ser o crucial: não houve derrota! O mínimo para se compreender a situação é: fomos todos nós, eleitores ou não, r o u b a d o s. Qdo o sistema está falido a nação perde. Não é questão política de direita ou esquerda, é questão ética e esta é muito além de política!
Voto impresso é necessario
Excelente!