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Ilustração: Shutterstock
Edição 161

A mentalidade liberal e a restauração do Ocidente

Viramos peixes de aquário que nem sequer sabem que estão num aquário

Pedro Henrique Alves
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Devemos mais ao pensamento liberal do que supomos. Liberalismo, tal como entendido imediatamente após ouvirmos tal termo, se refere a uma junção de ideias e leis que montam uma estrutura de princípios políticos. Todavia, o liberalismo, em seu sentido mais profundamente filosófico, diz respeito à mentalidade do Ocidente; antes de ser um esqueleto político, é um modo de observar, interagir e reagir à realidade. Em suma, aquilo que fez a democracia possível, que organizou aqueles direitos e deveres num conjunto de costumes seguro e praticável pela Civilização Ocidental. Sem a mentalidade liberal, é certo dizer, nem sequer estaríamos aqui debatendo tais coisas. 

O liberalismo é fruto de uma renovação intelectual que nasce com o movimento filosófico e artístico denominado “Renascimento” e se desenvolve nas várias vertentes de iluminismos que a Europa abarcou a partir do século 16 — entretanto, é perfeitamente perceptível que, já nos gregos, nos romanos e na teologia cristã medieval, existiam raízes profundas dessa árvore moderna que chamamos de “liberalismo político”. Gertrude Himmelfarb, em Os Caminhos para a Modernidade, e Helena Rosenblatt, em A História Perdida do Liberalismo, mostram-nos como a história e o desenvolvimento do liberalismo demandaram uma constelação de ideias e concepções que se digladiavam e se sobrepunham de forma constante no debate público; e, por isso, nem sempre é tão simples assim conceituar historicamente o pensamento liberal.

Livro A História Perdida do Liberalismo, de Helena Rosenblatt | Foto: Divulgação
A consolidação da ideia liberal 

A consolidação do dito liberalismo político, enquanto um ideal nascente e uma ideia pronta para ser desenvolvida, encontra na Carta Magna de 1215, da Inglaterra, um indiscutível e unânime marco histórico da história das ideias políticas.  

Depois do rei inglês João Sem-Terra perder parte da Normandia para a França, começou a taxar duramente os barões ingleses, a fim de subsistir no conflito com o país vizinho; então os barões se revoltaram contra o ato do rei, tanto por não concordarem com sua posição excessivamente bélica, como por não concordarem com os valores das taxas em si. Aproveitando-se da posição social fragilizada do rei, barões e clérigos — todos eles liderados por Longton, cardeal que João Sem-Terra recusou como enviado do papa — escreveram a famosa Carta Magna, que, basicamente, garantia as liberdades individuais dos homens livres do reinado, impedindo que o rei usasse seu poder absoluto para oprimir e taxar excessivamente os indivíduos em seu reino. O rei, acuado e sem moral social para se opor ao movimento, assinou a carta, enfrentando, assim, a primeira limitação política, econômica e até mesmo militar da sociedade civil e clerical contra o poder absoluto de um monarca. Tal movimento foi tão inovador que até hoje a Carta é reverenciada e se encontra promulgada naquele reino. 

O rei inglês João Sem-Terra assinou a Carta Magna em 1215, um ano antes de sua morte | Ilustração: Reprodução

Todavia, a Carta Magna seria plenamente implementada como política corrente somente após a conhecida Revolução Gloriosa, quando não só foi reafirmada pelos indivíduos, numa espécie de uníssona concordância social contra o poder absoluto do rei, como se sucedeu uma extensão das limitações, ao mesmo tempo que promovia a passagem da ação política ao Parlamento.  

Tudo isso deixou de denotar apenas uma mudança política aguda, mas inaugurou também a percepção de uma mudança de mentalidade social profunda: os homens livres — naquele momento, literalmente “homens” — deviam fazer política através de ajustes de bom senso, fundar organizações legais de vigilância e diminuição dos poderes estatais, estruturar processos políticos, e tudo isso devia ser feito sobre uma camada dura e bem estabilizada de preceitos comuns, princípios éticos básicos, irremovíveis, que, em suma, diziam respeito às liberdades individuais. Assim sendo, podemos afirmar que o liberalismo moderno nasceu de uma interação consciente de indivíduos livres engajados em diminuir o poder absoluto do monarca — e depois, por consequência óbvia, do Estado —, bem como do impulso em garantir os direitos básicos de liberdade individual. 

Se seu filho é educado mais pelo youtuber do que por você, aí o progressismo já venceu. Entendam, ou são os valores que estruturaram o Ocidente, ou as ideologias que subvertem o Ocidente; não há uma terceira via

Os homens começaram a ter uma consciência de autonomia, e essa autonomia ansiava pela estrutura firme das liberdades — ação, crença, expressão, locomoção etc. —, a fim de que tal direito fundamental fosse respeitado pelos donos do poder. Era preciso, então, legitimar esses valores, torná-los senso comum e, por fim, normatizar tais princípios em códigos de leis. A mentalidade liberal dos indivíduos que viveram o processo iluminista ansiava em firmar a liberdade como um valor dignificante e necessário à civilização e aos homens em geral. 

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A mentalidade liberal 

Na política e na sociedade, empoderados por uma percepção de que se podiam racionalizar os processos da existência e, por isso, ser ativos nesses ajustes políticos e nos avanços possíveis, de forma muito inteligente os ditos “liberais clássicos” se engajaram também na defesa de certos princípios que — conscientemente — formavam as defesas das garantias de liberdade e o funcionamento integral da dita “sociedade livre”. Isso é o que denomino de “paradoxo da cadência e da constância”, isto é, equilibrar o impulso racional que nos impele à cadência dos avanços científico e moral com a necessidade intrínseca manter uma constância sóbria na garantia dos valores que mantêm toda essa estrutura liberal e democrática em pé. Com o passar dos anos, tal consciência de resguardo de valores básicos naturalmente se transformou em senso comum e moral básico a ser ensinado nos lares e nas escolas.  

No fundo, podemos dizer que esse processo trata de uma condição mental naturalmente apercebida, seja pela consciência científica de um cientista e de um estudante de Direito, seja pela tradição fomentada e praticada pela população comum através de suas crenças familiares, atividades civis, religiões etc. Ao ponto de Alexander Issaiévich Soljenítsin, o literato russo que denunciou o aspecto social e político de um perseguido pela ditadura soviética em seu livro Arquipélago Gulag, demonstrar de forma brilhante em seu livro o absurdo surreal do massacre às vidas e às liberdades mais básicas dos soviéticos; ou como Viktor Emil Frankl, o neuropsiquiatra austríaco que fez o mesmo que Soljenítsin em relação ao nazismo, através de uma leitura psicológica do morticínio conduzido por Hitler. Frankl, em seu famoso livro Em Busca de Sentido, afirmava que, mesmo na situação de mais profunda miséria e opressão, mesmo estando sob o peso político mais insuportável em um campo de concentração, ainda assim, os indivíduos guardavam aspectos mentais de suas percepções de liberdade, bem como a consciência de seus direitos naturais a ela; nem mesmo a mais estonteante e absurda ditadura conseguia alienar completamente a consciência do indivíduo ante os seus direitos de liberdade. 

Livro Em Busca de Sentido, de Viktor Emil Frankl | Foto: Divulgação

No entanto, durante o último século e o início deste, paulatinamente começamos a fazer concessões tão perigosas quanto absurdamente idiotas. Trocamos a liberdade econômica por garantias estatais sabidamente ineficientes, quando não por promessas ideológicas românticas tão retoricamente bonitas quanto falsas; trocamos paulatinamente a garantia à liberdade de expressão e seus incômodos por um autoritarismo fofo que controla com punhos de aço — ainda que com uma boa propaganda de liberdade — o que deve ser dito, a fim de não ofender castas que os burocratas acham mais importantes que as demais; abdicamos cada vez mais de nossas liberdades de consciência ante um impositivo discurso de autoridade; barganhamos a nossa liberdade religiosa por uma ética duvidosa, que, para o bem-estar alheio, exige que matemos as nossas crenças ou as enterremos em nossos alçapões particulares. 

O velho erro do progressismo 

No entanto, o progressismo moderno está conseguindo alienar tal consciência através de um processo de autoritarismo menos agressivo que aquele praticado no século 20. Como dito há pouco, pinçando pedaços cada vez maiores de nossas liberdades individuais e políticas, oferecem-nos, em troca de nossas independências e privacidades, uma duvidosa — porém sedutora — “segurança social”. Em Os Ungidos, destaca Thomas Sowell que, atrás de cada carteirada de autoridade científica ou jurídica contemporânea, costumam existir ungidos a dizerem o que uma pessoa deve pensar, fazer e até comer. Os indivíduos contemporâneos estão claramente abandonando a defesa de seus deveres e direitos mínimos, e com isso suas autonomias e demais liberdades básicas, a fim de ser guiados por especialistas rumo a uma falsa sociedade sem problemas e defeitos. Como disse Michael Knowles, em Cale-se:  

“Em nome da tolerância, os revolucionários culturais derrubaram os padrões tradicionais e perseguiram qualquer um que ousasse divergir. Em nome da diversidade, os radicais derrubaram uma velha ordem e exigiram obediência à nova ordem, ostracizando qualquer um que se mostrasse contra ela”. 

Livro Cale-se, de Michael Knowles | Foto: Divulgação

Dessa forma, abandonando nossa percepção de direito inegociável às liberdades, abrimos caminho para uma ditadura sem oposição, viramos peixes de aquário que nem sequer sabem que estão num aquário. A resistência liberal deve ser, assim, uma resistência política e moral, mas ainda mais uma resistência psicológica. Reafirmar os valores de liberdade e guerrear argumentativamente contra aqueles que propõem o controle e o centralismo da vida individual em nome de um suposto “bem-estar social” é a cruzada moderna na qual deveríamos todos nos engajar; trata-se de uma guerra que acontece antes nas mentes e nos lares que nas praças. Nenhum indivíduo nasce na universidade, e, espero profundamente, nenhuma criança deveria passar por uma aula política, ou se submeter a um processo bizarro de “desconstrução”; e, acredite, se seu filho é educado mais pelo youtuber do que por você, aí o progressismo já venceu. Entendam, ou são os valores que estruturaram o Ocidente, ou as ideologias que subvertem o Ocidente; não há uma terceira via. 

Renovando a mentalidade liberal 

Chesterton, em A Barbarie de Berlim, afirmava que os valores que fundamentam nossa civilização são uma espécie de corda esticada entre a montanha do ontem e a do amanhã. Manter essa corda esticada, interligando o passado, o presente e o futuro — tal como Edmund Burke, em Reflexões Sobre a Revolução na França, havia definido ser o projeto de civilização adequado —, deveria ser a missão comum de todos aqueles que entendem a importância de sermos livres, racionais e prósperos. Essa “corda” nada mais é do que os valores ocidentais que recebemos, maturamos, atualizamos e, por fim, deixamos como legado para a próxima geração. O liberalismo e o conservadorismo, durante os séculos, guardaram cada qual uma parcela dessa verdade objetiva. Dizia Roger Scruton, em Conservadorismo: um Convite à Grande Tradição: “O conservadorismo moderno começou como defesa da tradição contra as reivindicações de soberania popular e se tornou um apelo em nome da religião e da alta cultura contra a doutrina materialista do progresso, antes de unir forças com os liberais clássicos na luta contra o socialismo”. No fundo, o que Scruton está descrevendo são as forças políticas e filosóficas que decidiram defender aspectos específicos dos valores ocidentais e fizeram disso as suas causas primárias, cada um com sua causa, mas todos compreendendo o mal comum que se agiganta no horizonte a cada dia que passa. 

Reflexões Sobre a Revolução na França, de Edmund Burke | Foto: Reprodução

Em um desconhecido tratado do filósofo Battista Mondin, chamado Os Valores Fundamentais, o catedrático católico expõe com rara felicidade o núcleo do problema moderno no Ocidente, diz ele:  

“O que mais falta em nossa sociedade é a educação aos valores autênticos e aos perenes [do Ocidente]. Foi a falta de educação para esse tipo de valores que cavou um vazio profundo na consciência dos jovens. Sem a educação aos valores perenes, eles ficaram privados de ideais e não sabem sobre que valores basear a definição de seu projeto de humanidade, nem que caminhos seguir para realizá-lo”.  

 É disso que trata a “mentalidade liberal” — ou “consciência de valores”, como denomina Mondin, em seu supracitado livro —, a renovação educacional constante dos valores do Ocidente, a defesa das solidificações éticas, religiosas e materiais, que possibilitaram o avanço dessa empreitada absurdamente magnífica chamada civilização ocidental.  

O brasileiro comum é parte disso, somos herdeiros diretos desse construto que, por vezes, parece abstrato demais, mas que se manifesta cada vez que podemos expressar a nossa opinião em público, sempre que adentramos uma universidade, nos beneficiamos da agricultura profissional, de um automóvel e nos confessamos com um sacerdote numa cabine com ar-condicionado. Do smartphone à Declaração dos Direitos Humanos, devemos tudo a esses valores liberais que germinaram nossa civilização. O Ocidente é o pico do avanço ético, material e teológico da humanidade, e tudo isso foi construído pela razão, pela ousadia científica e pela renovação mental proposta e desenvolvida no iluminismo. Iluminismo esse baseado nas fundações seguras da filosofia grega, do Direito romano e da teologia cristã. Renovar a mentalidade liberal em nós, passar adiante essa tradição e esse fervor virtuoso em benefício dos nossos princípios, deveria ser o fundamento mesmo da nossa sociedade.

Ilustração: Jorm Sangsorn/Shutterstock

Leia também “Conservadores, acordem!”

7 comentários
  1. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Excelente artigo.

  2. Silas Veloso
    Silas Veloso

    Brilhante artigo histórico e ético

  3. Marcio Bambirra Santos
    Marcio Bambirra Santos

    Parabéns pelo artigo. Ótimo resgate histórico e argumentação objetiva e didática: “Iluminismo esse baseado nas fundações seguras da filosofia grega, do Direito romano e da teologia cristã.” Mas, quase “escorreguei” antes desse fechamento.

  4. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Esse liberalismo é muito complexo, o coletivismo contradiz o individualismo, vamos buscar a essência aonde?

  5. Osmar Vinicius Padula Junior
    Osmar Vinicius Padula Junior

    Excelentes informações esquecidas pelo tempo, que devem permanecer em nossa edução e serem transmitidas às gerações vindouras.

  6. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Uma verdadeira aula de política, sociologia e humanismo.
    Watson, em 1927, proclamou a sua famosa frase: “Dêem-me um bebé e eu farei dele o que quiser, um ladrão ou um juíz, um pistoleiro ou um médico…”

  7. Ivahyr Luiz de Campos
    Ivahyr Luiz de Campos

    Ótimo artigo.

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