Os números do agronegócio paulista comprovam a importância do setor no cenário nacional. O Estado tem mais de 350 mil produtores rurais, que, ao longo do tempo, ajudaram São Paulo a se tornar referência em pecuária, avicultura e aquicultura, segundo a Secretaria Estadual de Agricultura e Abastecimento. Também é o maior produtor mundial de laranja (53% do total no planeta). De cada dez copos de suco de laranja consumidos no mundo, cerca de seis são de origem paulista. É o maior produtor de cana-de-açúcar (51% da cultura brasileira). Além de registrar índices expressivos nas produções de café e banana. Concentra também a fabricação de açúcar (64%) e etanol (48%). O Valor Bruto da Produção Agropecuária (VBP) fechou 2022 em quase R$ 140 bilhões, o maior em três anos. No ano passado, o agro estadual exportou mais de US$ 25 bilhões e importou aproximadamente US$ 5 bilhões. Em comparação a 2021, o Estado elevou em cerca de 35% as vendas externas e aumentou em 10% as importações. Os resultados consolidam um superávit do agronegócio paulista de mais de US$ 20 bilhões.
Diante de gigantesca modernização da agricultura, o Estado mais rico do país, com tamanha importância na economia nacional, mantém algumas características do século passado. Entre elas está a presidência da maior federação patronal do Brasil, sob comando de Fabio Meirelles há quase meio século.
Aos 95 anos, Meirelles preside a Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de São Paulo (Faesp) há cinco décadas, o que corresponde a 12 reeleições consecutivas desde 1975. Antes, foi o primeiro vice-presidente da diretoria antecessora desde 1964, o que contabiliza 59 anos ininterruptos à frente da Faesp. Ele também acumula a gestão do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar).
Investigado pelo Ministério Público por suspeitas de nepotismo e favorecimento a familiares, Meirelles é o mais longevo dos líderes do patronato brasileiro, praticamente eternizado no poder. O feudo da família de Fabio Meirelles pode ser comparado às capitanias hereditárias, sistema implementado pela Coroa Portuguesa no Brasil em 1534. As terras eram divididas e administradas por donatários, responsáveis por desenvolver e investir na capitania, embora o poder fosse centralizado no rei.
Quase 500 anos depois, a cena se repete na Faesp. Os associados investem e promovem o desenvolvimento do setor e da instituição, enquanto o presidente e seus familiares usufruem da contribuição do produtor rural para benefícios pessoais.
Diferentemente das capitanias, que tiveram vida curta — foram abolidas 16 anos depois da criação —, o império Meirelles perdura por meio século, “com troca de pequenos favores e à base de festinhas regadas a chope e churrasco”.
Agora, Meirelles articula para deixar o comando da Faesp para o filho Tirso, o que manterá a Federação sob os braços da dinastia Meirelles. “Aceito a indicação do meu pai para ser o próximo presidente da Faesp”, disse Tirso, durante um evento agrícola em Franca, em março.
A federação paulista reúne quase 240 sindicatos rurais e está presente em mais de 560 dos 645 municípios do Estado. Mantida por meio de contribuição sindical, tem em caixa, pelo menos, R$ 100 milhões.
Oeste conversou com produtores rurais, e eles são unânimes: querem renovação, transparência e representatividade por quem, de fato, é do setor.
Eduardo Ferreira, 55 anos, agrônomo e neto de produtor, trabalha na área desde os 14 anos. É pecuarista, além de cultivar cana e eucalipto. Para ele, o setor rural precisa de representante que vista a camisa dos produtores. “Todos os associados precisam exigir dos presidentes que votem contrário a essa chapa”, afirma. “Parece brincadeira, dois anos para completar meio século de gestão de uma só pessoa. Precisa haver renovação.”
Segundo Luís Arakaki, os sindicatos de produtores rurais e a Faesp não são empresas familiares, mas representações de classe. “Por esse motivo, as pessoas não podem se perpetuar no poder e muito menos com sucessão familiar ou até mesmo ramificações de prestações de serviços de empresas de filhos e parentes de diretores.”
Para Antonio Sodré, 85 anos, produtor rural há mais de 50 anos, filho e neto de homens do agro, a Faesp não pode ser um feudo. “Novas pessoas, novas ideias irão arejar a instituição, dando chance aos jovens de exercerem suas respectivas lideranças. O agro, nos dias atuais, é outro, é uma potência e precisa de outros líderes no comando das suas instituições de classe.”
Corrupção dos Meirelles ganha manchetes de jornais
Em 2017, uma reportagem do jornal Folha de S.Paulo mostrou que os filhos de Meirelles eram beneficiados por cargos, contratos e indicações. Denúncias revelaram que um deles, Fabio Meirelles Filho, era representante da Faesp no Instituto Pensar Agropecuária (IPA), em 2016, e ganhava para participar das reuniões da entidade. Em 2022, Fabio Filho assumiu a presidência da Aprosoja-MG.
Vários membros da diretoria não atuam no agronegócio e fraudam contratos de parceria com produtores rurais para “maquiar” o estatuto
O outro, Tirso Meirelles, tornou-se vice-presidente da Faesp, sendo reeleito diversas vezes, e passou a controlar o Conselho Nacional de Pecuária de Corte. A filha Telma Meirelles se tornou sócia da empresa Connect, que fazia a cobrança de imposto sindical para a Faesp e usava a estrutura da entidade como escritório pessoal.
A outra filha, Tânia Meirelles, trabalhava no gabinete da presidência da Faesp e era dona da S.O.S. Sertanejo, empresa que agencia shows do cantor Eduardo Araújo, contratado para os eventos da Faesp e de sindicatos rurais.
Outra reportagem denunciou que a copeira da Faesp trabalhava no apartamento de uma das filhas de Meirelles, a 400 metros da sede da entidade, no centro de São Paulo.
Farra com dinheiro do produtor rural
Uma reportagem da revista Veja revelou que Meirelles foi acusado de pagar a celebração de suas bodas de diamante com dinheiro dos associados. Em 2016, em nome da Faesp, o presidente alugou o salão do Iate Clube de Santos, na Avenida Higienópolis, na capital paulista, para a festa, regada a uísque e champanhe, para 350 convidados. À época, documentos obtidos por Veja mostraram que a Faesp pagou R$ 20 mil pela locação do espaço.
Menos politicagem e mais representatividade
O produtor de soja Azael Pizzolato Neto, 33 anos, defende a ideia de que os cargos de liderança de uma entidade de classe devem ser ocupados por agricultores.
“O produtor rural consegue se organizar e dedicar um breve período da sua vida em benefício da classe, mas dificilmente alguém que tem a entidade como profissão consegue ser produtor rural”, enfatiza. “Ao meu ver, a liderança da entidade precisa estar ligada umbilicalmente com a atividade agrícola, de tal forma a conhecer todos os anseios, as aflições e as necessidades, como a gente diz no campo: ‘Saber onde o calo aperta’ — e não simplesmente ser um órgão político reativo à base. É necessário um órgão propositivo.”
A afirmação de Pizzolato Neto está relacionada aos diretores e aos conselheiros da Faesp que não são produtores rurais. Ex-delegada, médico, contadora aposentada e dono de posto de combustível são alguns exemplos de profissionais que ocupam cargos na diretoria da federação.
Segundo relatos ouvidos por Oeste, vários membros da diretoria que não atuam no agronegócio fraudam contratos de parceria com produtores rurais para “maquiar” o estatuto e, desta forma, poder participar das eleições.
Um dos vice-presidentes da Faesp e presidente do Sindicato Rural de Ourinhos, Eduardo Bicudo Ferrado, disse não ter “lembrança exata” se a propriedade está no nome dele ou dos filhos, porque o contador é quem cuida da burocracia.
Siuze Davanzo, conselheira da federação e presidente do Sindicato Rural de Uchôa afirmou que tem uma pequena propriedade e não soube precisar o tamanho da produção de hortaliças. Ela está como presidente do sindicato há 14 anos e há oito no conselho da Faesp. Contou que é mantida no cargo com estímulo de Fabio Meirelles. “Recebi um telefonema que ficaria no lugar do presidente do sindicato, que morreu; levei um susto tremendo”, lembra.
Em 2008, quando conheceu Meirelles, ganhou apoio total para permanecer na instituição. “Ele me ajudou demais, falei que queriam que eu renunciasse, e Meirelles disse: ‘Não, de jeito nenhum. Você vai ficar lá e vamos te ajudar; você tem capacidade, é mulher e mais sensível’.”
O produtor de cana e soja na região de Jaboticabal Roberto Cestari, 69 anos, alega que a atual administração da Faesp sempre trabalhou para perpetuar seus dirigentes. “Não podemos alimentar essa estratégia. Somos a favor da renovação.”
Os produtores citam a falta de representatividade e a omissão da federação, como no caso do “tratoraço” — um protesto de agricultores em 2021, decisivo para o então governador João Doria recuar do aumento do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) para insumos agrícolas.
“Ficou nítida a total falta de competência, de participação e principalmente de liderança da Faesp”, afirmou Gabriel Afonso Alves, 68 anos, produtor de café. “Jamais vimos a presença do presidente ou sua fala em defesa da não aprovação do projeto de lei enviado pelo governador autorizando o aumento do ICMS. Só quando o movimento realmente tomou corpo e importância pelos próprios produtores é que apareceu a Faesp para sair na foto.”
Auditoria
Uma auditoria independente, contratada para analisar as contas da instituição em 2018, apontou diversas irregularidades, entre elas, a verificação da falta de relatórios que demonstrem, de forma sintética, se os valores repassados pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) estão corretos. A auditoria também não localizou a documentação referente à apuração e à base de cálculo da compra da Agrishow (a Faesp teria comprado 10% da Agrishow, por R$ 6 milhões, mas o dinheiro não aparece).
A propósito da Agrishow, em artigo assinado por Fabio Meirelles e publicado no site da Faesp no último dia 25 de abril, o presidente fala sobre a tecnologia para controle de qualidade e aumento da eficiência nas lavouras. Ele cita o Centro de Excelência da Cana-de-Açúcar, projeto, segundo Meirelles, viabilizado em parceria com a Faesp, a CNA e o Senar-SP. No texto, Meirelles diz que o Centro está localizado na sede do Sindicato Rural de Ribeirão Preto e que já desenvolveu diversos projetos para a implementação de novas tecnologias nas lavouras de cana.
No entanto, o presidente do Sindicato Rural de Ribeirão Preto, Paulo Junqueira, 59 anos, desconhece tal Centro de Excelência na sede que administra. “Estou na presidência desde 2021 e não existe nenhum Centro de Excelência aqui no Sindicato Rural de Ribeirão Preto.”
Processos
Há, também, pelo menos dois processos, por “suspeita de desvio de recursos e corrupção”, tramitando no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo — a “Ação Civil Pública por Ato de Improbidade Administrativa” (Processo 1088797-96.2018.8.26.0100 − código A500363) e a “Ação Anulatória com Pedido de Tutela de Urgência” (Processo 1054773-03.2022.8.26.0100 − código D19E639). Ambas foram movidas contra a Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de São Paulo e seu presidente.
Candidato à presidência da Faesp foi condenado
Tirso de Salles Meirelles, filho de Fabio de Salles Meirelles, próximo candidato à presidência da Faesp no pleito agendado para o fim de 2023, acumula diversos cargos. Contudo, também não atua no agronegócio, conforme fontes ouvidas por Oeste.
Veja as ocupações de Tirso, segundo informações do Sebrae:
• Vice-presidente (reeleito várias vezes) do mesmo sistema Faesp/Senar-SP;
• Vice-presidente do Sebrae-SP;
• Presidente do Conselho Deliberativo Estadual (CDE), eleito em novembro de 2018 para um mandato de janeiro de 2019 a 2022. Desde junho de 2018, já comandava interinamente o Sebrae-SP, depois de Paulo Skaf sair do cargo para disputar o governo de São Paulo. Desde 2000, participa ativamente de suas atividades, como conselheiro, assessor da presidência e secretário-executivo do CDE, além de ter sido presidente interino do colegiado, de julho a outubro de 2018;
• Presidente do Conselho Nacional da Pecuária de Corte (CNPC);
• Conselheiro da Companhia de Desenvolvimento Agrícola de São Paulo (Codasp);
• Conselheiro do Conselho Superior do Agronegócio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).
Tirso Meirelles foi condenado, em 2016, a dois anos e 11 meses de prisão, por triplo homicídio culposo. O laudo da perícia revelou que o Ford Edge conduzido por Tirso cruzou a frente e se chocou ao Fiat Uno da família Silva, vitimando no local três de quatro de seus membros: Jandemi Missias da Silva, 47 anos; sua esposa, Elizete Aparecida Silva, 46 anos; e a filha deles Izabella Missias da Silva, 12 anos. O acidente aconteceu na Rodovia Fábio Talarico, perto de Franca, em 19 de junho de 2010. Tirso voltava de uma festa, e os exames identificaram vestígio de álcool ou drogas em seu sangue.
A pena foi transformada em prestação pecuniária de 30 salários mínimos, a ser revertida em favor de entidade a ser indicada pelo juízo da execução e na “punição restritiva de direitos”. Por recurso da defesa ao Superior Tribunal de Justiça, a pena ainda não começou a ser cumprida.
“Se Tirso Meirelles foi proibido de frequentar estabelecimentos de lazer noturno, ele estaria em condições para exercer a liderança de sistemas de alta complexidade e de entidades de classe representativas do bilionário setor do agronegócio brasileiro?”, perguntou um dos produtores entrevistados.
Um em cada oito pratos de comida servidos no mundo tem contribuição do Brasil, segundo estudo da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). A representação dos vários segmentos do agronegócio num Estado com a importância econômica de São Paulo precisa ter maior alternância do que a observada na administração das Redes Faesp e Senar-SP, durante as últimas cinco décadas. Está na hora de essa capitania hereditária também acabar.
A Assessoria de Imprensa da Faesp não quis responder à reportagem.
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Parabéns, Joice. Verdadeira repórter.
O cara foi reeleito 12 vezes. Quem colocou ele lá? Estão reclamando, candidatem-se e derrubem a chapa e parem de mimimi
Eu quero saber onde não tem roubo nesses sindicatos e federações do Brasil
Nenhuma novidade.
Este e o modelo sindicalista desde a era Vargas.
Sempre a turma do sindicato… só quer, quer e quer!!! Vai ver é um Globalista Meirellense! Tem as terras dele, mas o resto do Brasil… que se lasque!
Excelente texto! Poucos sabiam o que acontece na Faesp.
Ué, não cabe aos participantes votarem e derrubar a chaps desse Tirso? Só reclamar não adianta, a exemplo de nós brasileiros, que elegemos um ladrão e vivemos reclamando.
Renovação é sempre saudável.