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Edição 163

Por que o mundo se voltou contra Israel?

No 75° aniversário da fundação do Estado de Israel, o direito à autodeterminação tragicamente caiu em desuso

Daniel Ben-Ami, da Spiked
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Israel vai dar início às celebrações do 75o aniversário de sua criação nesta noite. Considerando o ódio que ele desperta nos islamitas, nos poderes regionais e na esquerda ocidental, é impressionante que o país tenha sobrevivido por tanto tempo.  

Claro, Israel também contou com um considerável apoio internacional em algumas ocasiões. Dos anos 1960 em diante, ele teve os Estados Unidos como um país aliado — ainda que esse respaldo pareça estar diminuindo atualmente, em especial entre os democratas. Também se esquece que os esquerdistas costumavam ser apoiadores ferrenhos de Israel. Aliás, desde sua fundação, em 1948, até o decorrer dos anos 1960, a esquerda de modo geral celebrava Israel como uma expressão do direito do povo judeu à autodeterminação nacional. Isso começou a mudar na década de 1970, conforme setores da esquerda passaram a ver o país como um poder imperialista. Mas foi apenas nos anos 1990, quando as elites ocidentais começaram a rejeitar a ideia de autodeterminação nacional, que o apoio a Israel na esquerda começou a ruir.  

Foto: OnePixelStudio/Shutterstock

A percepção externa do mundo sobre o país sofreu uma mudança enorme em seus 75 anos de história. Essas mudanças se devem pelo menos em igual medida aos desenvolvimentos no Ocidente e aos desenvolvimentos em Israel. Em particular, parece evidente que o apoio em declínio à autodeterminação nacional no Ocidente dificultou que Israel justificasse sua existência.  

1948-67 — Surgimento de Israel 

Em 14 de maio de 1948, o primeiro premiê do país, David Ben-Gurion, lê a Declaração de Independência de Israel. Imediatamente depois, o país foi atacado pelos Exércitos de cinco Estados árabes. Apesar dos meses de conflito, o governo israelense conseguiu se manter, até que os acordos de armistício fossem assinados, no começo de 1949. Cerca de 700 mil árabes locais foram embora no tumulto — alguns fugindo, outros expulsos —, mas a importância dessa transferência de população só seria reconhecida muito depois.  

A criação do Estado de Israel foi um sucesso impressionante para o movimento sionista. O sionismo era essencialmente uma causa nacionalista, ainda que um tanto incomum. É verdade que a liturgia judaica, que data de milhares de anos, falava da terra histórica de Israel (eretz Yisrael , em hebraico). Mas o objetivo do movimento sionista era a criação de um Estado de Israel (medinat Yisrael), que funcionaria como um refúgio nacional para os judeus do mundo todo. Ainda que tenha começado como um movimento minoritário entre os judeus no fim do século 19, o sionismo ganhou amplo apoio entre suas comunidades depois da tragédia do Holocausto.  

David Ben-Gurion leu a Declaração de Independência de Israel | Foto: Reprodução/Governo de Israel

Mesmo assim, Israel não teria sido criado sem um considerável respaldo internacional. Em novembro de 1947, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas adotou o plano de partilha da Palestina, incorporado à Resolução 181 da ONU, que incluiu a aceitação da criação do Estado judeu. Das 56 nações membros, 33 votaram a favor (incluindo os Estados Unidos e a União Soviética), 13 votaram contra (a maioria do mundo islâmico), e dez se abstiveram (incluindo a Inglaterra).  

Foram muitas as razões por que a ONU votou pela criação de Israel. Houve uma considerável solidariedade pelos judeus depois dos horrores dos anos nazistas, e muitas nações também fizeram cálculos geopolíticos baseados em seus interesses nacionais. Mas, acima de tudo, houve um amplo reconhecimento pela autodeterminação nacional como um princípio de importância fundamental. A Carta da Nações Unidas de 1945, por exemplo, enfatizava o mérito da “autodeterminação dos povos” em seu primeiro artigo.  

Ao mesmo tempo, a esquerda como um todo defendia o princípio de autodeterminação nacional e, portanto, tinha um olhar favorável de modo geral a Israel. Como Walter Russell Mead, professor de relações internacionais e colunista do Wall Street Journal, comenta em The Arc of a Covenant, seu livro mais recente: “Durante suas primeiras décadas de existência, Israel era mais popular entre a esquerda do que entre a direita, e mais popular na Europa do que nos Estados Unidos”.  

A cidade antiga de Jerusalém, Israel | Foto: Nick Brundle/Shutterstock
1967-90 — A questão palestina  

A Guerra dos Seis Dias, entre Israel e seus vizinhos árabes, em junho de 1967, foi um momento crucial. Israel havia feito um ataque preventivo contra o Egito depois de uma ameaça pública do presidente egípcio Gamal Abdel Nasser. Em seguida, o Estado israelense derrotou os inimigos árabes Egito, Jordânia e Síria em menos de uma semana.  

A vitória de Israel representou uma humilhação traumática para os regimes árabes, muitos dos quais tinham se gabado do poder do nacionalismo árabe — um movimento que, em vez de um só Estado, pretendia representar o povo árabe como um todo — durante os preparativos para a guerra. Em teoria, essas forças eram muito maiores que as israelenses. No entanto, Israel cantou o blefe atacando primeiro e destruindo os Exércitos inimigos.  

Foto: Shutterstock

Uma consequência da guerra foi que o número de palestinos sob o controle israelense aumentou consideravelmente. Israel capturou a Cisjordânia, da Jordânia, e a Faixa de Gaza, do Egito (de que Israel se retirou unilateralmente em 2005). As novas fronteiras do país passaram a ser muito mais fáceis de defender. Mas a expansão traria problemas futuros, com tantos palestinos recaindo sob o controle militar de Israel.  

O nacionalismo árabe em declínio também impulsionou o movimento nacionalista palestino. Pela primeira vez, organizações palestinas, sob o guarda-chuva da Organização para a Libertação Palestina (OLP), passariam a desempenhar um papel fundamental na região. Um conflito entre Israel e árabes se transformou cada vez mais em um conflito entre Israel e palestinos.  

Isaac Deutscher, escritor marxista polonês, tira conclusões humanistas da nova situação. Em 23 de junho de 1967, duas semanas depois do fim da guerra, ele deu uma entrevista premonitória para a publicação New Left Review. Nela, ele conta a parábola de um homem que salta do último andar de um prédio em chamas, em que muitos de seus familiares já faleceram. O homem salva a própria vida caindo sobre uma pessoa, mas no processo acaba quebrando os braços e as pernas dela.  

Isaac Deutscher | Foto: Reprodução/Twitter

A história contada por Deutscher claramente relatava a situação em que Israel e os palestinos se encontravam. O antissemitismo europeu, que culminou no Holocausto, havia forçado muitos judeus a fugirem para o que viria a se tornar Israel. A consequência inesperada foi o sofrimento dos moradores nativos. Deutscher argumentou que o desfecho razoável seria que os dois lados chegassem a algum tipo de acordo. O homem que caiu do prédio em chamas deveria, assim que se recuperasse, tentar ajudar a pessoa que ele acabou machucando sem querer. E a pessoa que teve os membros quebrados deveria se dar conta de que o homem que se jogou era vítima de circunstâncias que estavam além de seu controle.  

Deutscher compreendeu que as aspirações nacionais de ambos os lados precisavam ser reconhecidas para chegar à paz genuína.  

A ascensão da política identitária também alimentou uma percepção negativa de Israel no Ocidente. O país é cada vez mais visto como beneficiário do suposto “privilégio branco” dos judeus

Infelizmente, nem todo mundo reagiu à realidade pós-1967 de forma tão humanista quanto ele. Aliás, na mesma entrevista, ele alertou sobre os perigos de uma reação mais negativa, em especial no mundo árabe, onde Deutscher temia a reemergência do antissemitismo. Havia um risco de que o que ele chamou de “socialismo dos tolos” tomasse conta, com o sucesso militar israelense sendo visto como prova de uma conspiração internacional do povo judeu.  

Na verdade, essa foi a reação não apenas em partes do mundo árabe, mas também entre os círculos supostamente radicais no Ocidente. Estava surgindo um “novo antissemitismo” no qual a hostilidade para com os judeus assumia a forma de um ódio obsessivo contra Israel, como símbolo do mal judeu. Como o sociólogo norte-americano Seymour Martin Lipset afirmou, em um artigo de 1971 para o New York Times: “Números cada vez maiores de novos esquerdistas, militantes negros e defensores da causa palestina não apenas são anti-Israel e antissionistas, mas, indo além, estão se aproximando de um antissemitismo pleno — se já não tiverem chegado lá”.  

Mesmo assim, nos anos 1970 e 1980, esse novo antissemitismo se manteve uma posição da minoria nos círculos ocidentais. O direito à autodeterminação de Israel, de modo geral, era defendido junto com um reconhecimento cada vez maior dos direitos da Palestina.  

Bandeira da Palestina com os dizeres “Boicote Israel” | Foto: Loredana Sangiuliano/Shutterstock
1990-dias de hoje — O surgimento do globalismo  

O fim da Guerra Fria transformou as posturas em relação à autodeterminação e marcou o início de uma era de intervencionismo desenfreado ocidental ou “humanitário” e defesa globalista de um mundo sem fronteiras. Esse distanciamento de uma ordem internacional com base nos princípios de soberania nacional teve um efeito significativo para Israel e para os palestinos.   

Da perspectiva israelense, tornou-se muito mais difícil justificar a existência de Israel em um mundo onde o direito à autodeterminação estava sendo desvalorizado. Em muitos casos, Israel enfrentou completa hostilidade.  

Para muitos na esquerda, o comprometimento de Israel com a autodeterminação nacional começou a parecer irremediavelmente antiquada. O historiador de esquerda Tony Judt fez uma argumentação nesse sentido em um artigo para o New York Times de 2003:   

“Em um mundo globalizado, Israel de fato é um anacronismo. E não apenas um anacronismo, mas algo disfuncional. No ‘choque de culturas’ entre democracias abertas e pluralistas e etno-Estados beligerantemente intolerantes movidos pela fé, Israel de fato corre o risco de ir parar no campo errado”. 

A ascensão da política identitária também alimentou uma percepção negativa de Israel no Ocidente. O país é cada vez mais visto como beneficiário do suposto “privilégio branco” dos judeus. Nessa perspectiva, o Estado judeu se torna uma força do mal, um etno-Estado perigoso, enquanto os palestinos assumem o papel de povo racializado e oprimido. Assim, hoje em dia Israel é apontado, para usar o jargão contemporâneo, como um “regime de apartheid”. 

Foto: Aleksandar Todorovic/Shutterstock

Mas seria um equívoco enxergar esse ataque a Israel como uma vitória dos direitos palestinos. Ao contrário, a demonização do direito à autodeterminação nacional também prejudica a causa palestina.   

Aliás, muitos ativistas anti-Israel de hoje em dia não estão realmente interessados na autodeterminação palestina. Eles estão mais ocupados em atacar Israel como um símbolo de tudo o que desaprovam e em apoiar a Palestina como sua vítima, o que os leva a apoiar de maneira acrítica o Hamas, principal representante islamita dos palestinos, e muitas vezes do islamismo de forma mais ampla.      

O objetivo do islamismo não é a autodeterminação, para os palestinos ou para quem quer que seja. Em vez disso, ele deseja criar uma ordem internacional islâmica, o que fica bastante claro nas doutrinas de organizações islâmicas e na atuação de ideólogos islamitas, como Sayyid Qutb. A destruição de Israel — e não a criação de um Estado palestino — é vista como crucial para que esse objetivo seja alcançado. Essas aspirações costumam se manifestar em termos abertamente antissemitas e, na verdade, genocidas — como pode ser visto no pacto de 1988 do Hamas.  

O antissemitismo é um ponto central do islamismo desde seu início, na primeira metade do século 20. Os islamitas veem os judeus como uma expressão do “mal cósmico satânico”, que deveria ser fisicamente exterminada para que o Islã prospere. Ao tirar essas conclusões, eles são sempre fortemente influenciados pelas formas mais retrógradas do pensamento europeu. Aliás, o texto Protocolos dos Sábios de Sião (1903), uma fraude czarista antissemita sobre uma suposta conspiração dos judeus para controlar o mundo, com frequência é citado em textos islamitas.  

Os Protocolos dos Sábios de Sião | Foto: Reprodução/Universidade de Chicago

Existe hoje uma sobreposição considerável entre o que de fato são duas formas de política identitária — uma forma esquerdista ocidental e uma forma islamita que tem origem no Oriente Médio. Ambas são hostis ao princípio de autodeterminação nacional de modo geral e à existência de Israel em particular. O que seria impensável uma geração atrás — a negação do direito de Israel de existir — hoje é abraçado com facilidade. Assim como um antissemitismo mal disfarçado.  

Vamos pensar no slogan palestino “Do rio até o mar” (o que significa do Rio Jordão até o Mediterrâneo), popular entre islamitas e a esquerda ocidental. Para os islamitas, ele claramente significa que poucos judeus — ou nenhum — deveriam poder viver nessa terra. Aliás, eles costumam afirmar abertamente o desejo de assassinar a maioria dos judeus, se não todos, que vivem ali. Então, quanto entoam “a Palestina deve ser livre”, em geral significa livre dos judeus. A esquerda ou não se dá conta ou, em muitos casos, opta por ignorar isso.  

Cabe a israelenses e palestinos decidirem como resolver o conflito entre eles. É isso que autodeterminação significa. O que nós, no Ocidente, podemos fazer é apoiar o princípio da autodeterminação em si. Sobre isso, o fato de Israel ter chegado aos 75 anos, apesar das consideráveis probabilidades contrárias, deveria ser celebrado como uma conquista impressionante.  


Daniel Ben-Ami é jornalista e escritor. Ele dirige o site Radicalism of Fools, que se dedica a repensar o antissemitismo
Ele está no Twitter: @danielbenami 

Leia também “A desumanidade da pauta verde”

4 comentários
  1. Daniel Jácomo Mauad
    Daniel Jácomo Mauad

    Deus seja louvado!

  2. Renato Perim
    Renato Perim

    Tive a impressão de que o autor foi muito condescendente com as barbáries dos palestinos e pouco compreensivo com a situação de Israel. Por mim poderiam explodir todos os palestinos, pois parece que é o que eles querem.

  3. Paulo Ferreira
    Paulo Ferreira

    Por que é preciso um Estado Palestino se há diversos países islâmicos e com a mesma identidade?

  4. Luiz Pereira De Castro Junior
    Luiz Pereira De Castro Junior

    Ótimo artigo !

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