Nos anos 1980, duas coisas revolucionaram a vida da minha mãe. A primeira foi o surgimento de um grande supermercado próximo. Uma cidadela de vidro e metal cheia de produtos frescos e baratos. Imagine — pão, leite, peixe, carne, frutas, vegetais e guloseimas, tudo sob um mesmo teto. Era o sonho de uma dona de casa.
A segunda foi seu primeiro carro. A sensação de liberdade que ela teve com seu Ford Cortina barulhento e de segunda mão é provavelmente inimaginável para uma mente do século 21. Hoje todo mundo tem um carro, quando não dois. Não valorizamos a possibilidade de ir a qualquer lugar, a qualquer hora, faça chuva ou faça sol. Era diferente naquela época. O automóvel não era uma conveniência comum — era uma grande libertação das adversidades.
É difícil descrever para as pessoas que cresceram na era da Amazon, do delivery e do carro como um bem quase universal quanto tempo as mulheres gastavam indo de loja em loja. O número de horas femininas perdidas — eram principalmente horas do tempo das mulheres naquela época — era impressionante. Eu me lembro (as crianças estavam sempre a tiracolo, afinal, onde mais elas estariam?): primeiro para a peixaria, depois para o açougue, a mercearia, a padaria, arrastando as compras em sacolas abarrotadas pelo caminho. Os sábados eram basicamente dedicados às compras, na rua principal, a alguns quilômetros de distância. Mas então veio o supermercado, o Ford, e tudo mudou completamente. Minha mãe ganhou um dia inteiro na semana. Ela finalmente tinha o sábado.
Vamos avançar algumas décadas, e o que a burguesia radical de hoje em dia mais odeia? Supermercados. E carros. Ela despreza as enormes lojas sem alma onde os clientes ignorantes “se arrastam de um canto ao outro… apáticos e deprimidos”. “Os supermercados são o mal”, eles bradam, com “seu desperdício revoltante”. Comida barata e roupas fáceis deixam a elite horrorizada. Eles lamentam “o pão branco de supermercado”, que pelo jeito é tão prejudicial à saúde quanto “um pacote de salgadinhos”. Sim, por que vocês, pessoas comuns, não compram sourdough de sete grãos da rede orgânica? A celebrada escritora Jeanette Winterson afirma que não chega nem perto de supermercados porque busca “paixão, comprometimento [e] consciência” na experiência de fazer compras. Certo. Mas as outras pessoas talvez queiram apenas um litro de leite e um pouco de presunto.
Os carrofóbicos podem finalmente conseguir o que queriam. Esses cidadãos de prestígio que não conseguem compreender por que todo mundo não faz o que eles fazem — trabalhar de casa, ir de bicicleta até o padeiro artesanal para comprar pão de centeio orgânico e andar de carro apenas quando for absolutamente essencial durante o verão na Toscana
Quanto aos carros — nada incomoda tanto as classes médias eco-ortodoxas quanto a imagem dessas máquinas de quatro rodas passando por seus bairros. A carrofobia é comum entre a esquerda burguesa. Enquanto os carros “congestionam as ruas”, estamos “nos esforçando para respirar”, reclamou uma colunista do Guardian, invocando uma linda imagem de figuras metropolitanas se deslocando como damas eduardianas, com um lenço no nariz para se protegerem da fumaça dos veículos das pessoas comuns. “Livre-se do seu carro”, ordena um dos correspondentes ambientais do Guardian. Os governos precisam se informar melhor sobre a calamidade ambiental que vai assolar a humanidade se os carros não forem “totalmente removidos das ruas”, ele afirma.
Os carrofóbicos podem finalmente conseguir o que queriam. Esses cidadãos de prestígio que não conseguem compreender por que todo mundo não faz o que eles fazem — trabalhar de casa, ir de bicicleta até o padeiro artesanal para comprar pão de centeio orgânico e andar de carro apenas quando for absolutamente essencial durante o verão na Toscana — podem finalmente ver suas ruas “descongestionadas” dos automóveis bestiais das massas. Na Inglaterra, políticas estão sendo apresentadas para desencorajar, ou simplesmente impossibilitar, carros nos espaços locais. Do plano dos bairros de baixo tráfego às “cidades de 15 minutos”, dos postes de amarração aos portões que só permitem que ônibus públicos passem, o carro está sendo paralisado. Não podemos deixar que a liberdade de andar de carro seja ceifada de forma tão soberba e não democrática.
O Telegraph tem as últimas notícias sobre a guerra burocrática contra o carro. O Conselho de Bristol, foi noticiado esta semana, está planejando criar um enorme bairro de baixo tráfego que vai praticamente “tirar os carros das vias”. Como parte da iniciativa de £ 6 milhões chamada East Bristol Liveable Neighbourhood, ou Bairro Habitável de East Bristol, o conselho vai diminuir severamente o trânsito em diversas ruas menores na zona leste da cidade. Postes de amarração e canteiros serão usados para bloquear o acesso dos carros a essas vias. Também haverá “instalação de portões” que carros privados não poderão atravessar; apenas ônibus. Voltem aos ônibus, plebeus. Vamos acabar com a liberdade de ir aonde você quiser quando quiser e trocar isso por sentar e ficar quieto num ônibus que seus superiores decretaram ser mais sustentáveis.
Restrições ao uso de carros estão sendo impostas em toda parte. O distrito de Southwark, em Londres, aumentou o preço das licenças de estacionamento em impressionantes 400% para reduzir o número de carros. Então, se você for estupidamente rico, ainda poderá andar de carro em Southwark. Se for pobre, esqueça. Hackney, também em Londres, quer transformar três quartos de suas vias em bairros de baixo tráfego. Ou seja, os motoristas terão dificuldades consideravelmente maiores para acessar impressionantes 75% das vias pelas quais costumavam transitar livremente. A prefeitura de Oxford está fazendo uma consulta pública neste ano que vai impedir que carros particulares tenham acesso a seis vias principais do centro da cidade. Outra grande ideia em planejamento urbano é a “cidade de 15 minutos”, que basicamente significa reestruturar a vida urbana de modo que as pessoas possam ter acesso a qualquer lugar com as próprias pernas, mas não com carros poluidores.
O adjetivo “habitável” é sempre usado pelas elites ecológicas que odeiam carros. Mas quem exatamente vai considerar as cidades “habitáveis” na atual histeria anticarros? Não as pessoas com deficiências, certamente. Aliás, ativistas pela igualdade em Oxford e Bristol afirmaram que seria “muito difícil para algumas pessoas com deficiência ter acesso às ruas” se os bairros de baixo tráfego fossem impostos de forma implacável. As mães também não. E não os idosos, que provavelmente não vão gostar de arrastar suas compras para dentro do ônibus. E não os trabalhadores, entregadores e as pessoas que carregam ferramentas. Ruas sem carros são ótimas para o home office, para designers gráficos que só carregam um Macbook, modelo mais fino, para ir ao café mais próximo, mas não são tão boas para as pessoas que trabalham no encanamento desses cafés, que consertam as máquinas de café e penduram as prateleiras. Essas pessoas precisam de coisas e precisam de carros.
Na narrativa distorcida dos carrofóbicos, pessoas que têm carro fazem parte dos “privilegiados”. O que é uma bobagem. Não é proibitivamente caro ter um carro na década de 2020. Não, os “privilegiados” de fato nesse conflito são as classes do pijama, as pessoas influentes das classes médias altas que podem trabalhar de seus apartamentos chiques e são tão ricas de tempo que ficariam felizes de fazer o que minha mãe detestava: ir de um comércio local a outro, comprando pão artesanal aqui, linguiça orgânica ali. Nada escancara mais o privilégio de classe hoje em dia do que odiar carros e amar as “cidades de 15 minutos”. É uma espécie de arremedo burguês da vida que as pessoas tinham antes dos alimentos baratos e da popularização dos carros. Mas com os riscos e as pressões eliminados. As elites das “cidades de 15 minutos” sabem que, se não chegarem ao açougue da moda a tempo, podem fazer um pedido, e um membro do precariado vai entregar o equivalente a £ 20 de hambúrguer artesanal para o jantar. Acredite, não era assim nos anos 1980.
“O carro é único, ele dá aos seres humanos a possibilidade de ir aonde quiserem, quando quiserem”, afirmou Pehr Gyllenhammar, CEO da Volvo de 1970 a 1994. Costumávamos celebrar isso. Cantamos músicas sobre isso. Pessoas da minha idade vão se lembrar com carinho da letra da banda Madness: “I like driving in my car / It don’t look much but I’ve been far” (“Gosto de andar no meu carro / Não pareço ser grande coisa, mas cheguei longe”). Agora essa possibilidade está sendo tirada de nós. Sob a bandeira de “salvar o planeta”, uma camada arrogante, antimodernidade e elitista da sociedade está negando a liberdade “única” de andar de carro a cada vez mais pessoas. É intolerável. Cada ataque ao carro deve ser entendido como um ataque à nossa autonomia e deve ser resistido como tal.
Brendan O’Neill é repórter-chefe de política da Spiked e apresentador do podcast da Spiked The Brendan O’Neill Show
Ele está no Instagram: @burntoakboy
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Sonho em ver o Brasil cortado por auto estradas, assim como as Highways americanas. E isto não impede políticas públicas em benefício do transporte coletivo nas áreas urbanas. Metrô e auto estradas devem trabalhar simultaneamente.
Criticar uma política que privilegia o transporte coletivo ao individual é no mínimo uma grande tolice. A história nos mostra que as cidades cresceram “pensando” nos carros e somente neles, e para os pedestres sobraram os atropelamentos ou as calçadas esburacadas. Pois bem, esse tempo passou!!! A mobilidade moderna pensa e prioriza sim os pedestres em detrimento aos veículos, o que aliás está no Código de Trânsito Brasileiro quando diz que “o veículo maior cuida do menor, e todos pela incolumidade dos pedestres”, isso por ele ser a parte mais frágil do sistema viário. As vezes me parece que a Revista Oeste vive num mundinho encantado em que o meio ambiente é auto sustentável sob qualquer circunstância, e NÃO, NÃO é assim!
Giovani, já percebi a qual carta vc pertence rsrs. Provavelmente é aquela pessoa que o articulista descreveu que só trabalha em home office, e só enxerga o próprio umbigo. Defensor dessa falácia de mudança climática. Nem sei porque é assinante de Oeste!
Voltamos a idade média com as cidades (reinos) murados.
O maior risco que vejo nisso é daqui 100 anos depois surgir um novo Henrique VIII.
Aí será o apocalipse.
O gênio que teve essas idéias elitistas deve odiar idosos, pessoas com dificuldades de locomoção, não deve ter filhos para levar e buscar em escolas, dentistas, cursos, etc, deve ter raiva de quem carrega muito material de trabalho, ou de quem trabalha em vários lugares distantes uns dos outros, técnicos, professores que dão aulas em várias escolas e precisam deslocar-se rapidamente, aliás, quem teve essa ideia não deve fazer p…….. Nenhuma na vida.
ótimo artigo , essa burguesia radical é um nojo !
Parabéns! Endosso o comentário de Joviana Cavaliere Lorentz.
Parabéns! A guerra contra o carro e a guerra contra a liberdade de ir e vir. Forma “moderna” dos passaportes obrigatórios nos países comunistas para ir de uma cidade a outra.