Em que século o Brasil vive? O relatório Panorama de Talentos em Tecnologia, divulgado na semana passada, mostra que, pelo menos nessa área, ainda estamos em algum lugar do passado. O estudo foi desenvolvido numa parceria entre o Google e a Associação Brasileira de Startups (Abstartups). O panorama é desolador.
O Brasil vai precisar de mais 530 mil profissionais de tecnologia da informação (TI) até 2025 para atender às necessidades do mercado. Mas não estamos fazendo o menor esforço nesse sentido. A consequência desse descaso vai muito além da tecnologia em si. Segundo o relatório Google/Abstartups, “a carência de talentos, sobretudo no mercado de inovação, é capaz de inibir o surgimento de novos negócios, soluções e, consequentemente, o crescimento econômico nacional e global. Ou seja, o atual gap de talentos, que diz respeito à incapacidade de formação de pessoas na mesma escala em que a demanda do mercado cresce, pode prejudicar os avanços tecnológicos e o futuro”.
Resumindo: hoje, um país sem profissionais de TI não avança. Não gera riquezas para sustentar o crescimento da população. Pois quase tudo o que temos feito atualmente passa por um aplicativo de celular ou um programa de computador. O relatório do Google/Abstartups revelou que “apenas 7% das startups entrevistadas consideram ter todas as competências profissionais de que necessitam no momento”.
Ou seja: 93% das startups precisam de profissionais que ainda não existem. A lista de experts necessários é longa — analistas e cientistas de dados, especialistas em inteligência artificial e machine learning, big data, marketing digital, automação de processos, transformação digital, segurança da informação, internet das coisas, desenvolvimento de softwares e aplicativos, engenharia de software e fintechs — e por aí vai.
O mundo como um todo já enfrenta esse déficit de profissionais. Mas no Brasil a situação é mais grave. “Entre 2021 e 2025, 53 mil profissionais [de TI] vão se graduar anualmente”, diz o relatório, “enquanto a demanda projetada é de 800 mil novos talentos. O resultado está sendo um déficit de 530 mil profissionais neste período de quatro anos”.
Na zona do rebaixamento
Vivemos uma situação bizarra. As camadas mais pobres da população estão bem integradas à economia digital. Qualquer vendedor de amendoim tem seu celular, sabe negociar com o Pix e usa aplicativos para se comunicar com fornecedores, clientes e com seu banco ou fintech. Mas não temos gente suficiente para criar e gerir esses aplicativos e programas de computador.
O crescimento da economia brasileira depende dessa mão de obra especializada, inclusive em áreas vitais, como o agronegócio e o sistema financeiro. “O crescimento médio adicional do PIB 2018-2028 está em risco a cada ano”, afirma o relatório. “A falta de habilidades digitais do Brasil o coloca na terceira posição entre os países do G20 que mais desperdiçam a oportunidade de aumentar o PIB.”
Segundo o Global Talent Competitiveness Index 2021, no ranking de competitividade global de talentos, estamos numa abissal 75ª posição. Pior: não ficamos para trás somente em relação aos países mais ricos do mundo. Estamos levando uma surra na própria América Latina. Ocupamos o nono lugar, atrás do Chile, Costa Rica, Uruguai, Argentina, Trinidad & Tobago, México, Jamaica e Colômbia. Só estamos na frente do Panamá. Se fosse um campeonato de futebol, o Brasil estaria na zona do rebaixamento.
O relatório Google/Abstartups, como não poderia deixar de ser, presta seu tributo ao pensamento “progressista” ao indicar que faltam “negros e mulheres” e outros “grupos politicamente minorizados” no mercado de trabalho. Reclama também da concentração de empregos de tecnologia na Região Sudeste (62%) e especificamente no Estado de São Paulo (44%). Parece confundir causa com consequência, especialmente quando constata que existem poucos técnicos vindo das “áreas rurais”.
É a utopia igualitária trombando com o paredão da realidade. Se o Brasil acertar seu rumo, teremos naturalmente profissionais mulheres, negros e pessoas do interior do Brasil disputando esse mercado de trabalho, como já acontece em tantos outros ramos da economia.
O país dos advogados
Qual é a razão para tanto atraso? Segundo 98% dos entrevistados, o “ensino de pensamento lógico é defasado nas escolas do Brasil”. Ou seja: não nos dedicamos a estudar matemática, ciências exatas, física, química — essas matérias que fizeram países modestos como Taiwan, Coreia do Sul e Israel se tornarem potências tecnológicas.
Segundo o Censo da Educação Superior, divulgado em 2022, o curso mais procurado na modalidade presencial da rede privada é Direito, com quase 620 mil matrículas. Num distante segundo lugar vem o curso de Psicologia. Seguem-se Enfermagem, Administração, Medicina, Fisioterapia, Odontologia, Engenharia Civil, Farmácia e Pedagogia. Sem dúvida precisamos de bons médicos, dentistas e engenheiros. Mas não existe nenhuma vaga para tecnologia nessa lista de prioridades.
Nas universidades públicas federais, o panorama muda um pouco. O campeão de procura é Administração, seguido por Pedagogia, Direito, Medicina, Agronomia e Engenharia Civil. Em sétimo lugar entra Sistemas de Informação, seguido por Biologia, Engenharia Elétrica e Matemática. Ou seja, nas universidades públicas a busca por “ensino de pensamento lógico” é maior do que nas particulares. Mas o número de vagas, cerca de dez vezes menor.
Dos entrevistados, 84% declararam que “o mercado de tecnologia brasileiro não desenvolve o número de profissionais seniores que deveria”, 78% destacaram “grande afastamento entre os jovens brasileiros e bases de conhecimento para tecnologia” e, para 77%, “falta acesso a computadores de qualidade para a população desde antes da idade profissional”. Estamos não só desinteressados pela tecnologia como mal equipados.
Mas é um erro colocar a culpa apenas em decisões políticas. A questão é mais complexa e profunda. A pesquisa aponta uma cultura de atraso no Brasil: “famílias, professores e influenciadores em geral continuam idealizando caminhos mais tradicionais para as novas gerações (Direito, Administração, Pedagogia), e até os caminhos que desviam de carreiras formais não escapam da influência do tradicionalismo”.
“Humanismo” mofado
Um dos entrevistados, profissional recém-formado no Nordeste brasileiro, mostrou como essa cultura se revela em termos práticos: “É comum se deparar com histórias de pessoas que compartilharam com seus familiares o desejo de fazer parte da área de TI. Eles ouviram como resposta que não iriam conseguir nada na vida e que iriam trabalhar muito consertando computador para ganhar pouquíssimo dinheiro”.
A educação brasileira reflete um traço cultural maior, um “humanismo” mofado que acha mais importante ensinar artes e filosofia do que qualquer forma de inovação tecnológica
Outro depoimento nessa linha: “Minha mãe falou para eu estudar Direito, e eu o fiz — só que abandonei para trabalhar com tecnologia. Durante quatro anos minha mãe nem conversava comigo por conta dessa decisão. Lembro que, quando chegava a época dos resultados do vestibular, as famílias comemoravam quando alguém tinha passado em medicina. Mas, se passasse em Análise e Desenvolvimento da Computação, sua mãe ficava até com vergonha”.
Essa cultura se manifesta no sistema educacional: “A cada seis meses vemos a grade dentro de uma faculdade mudar, mas não vemos mudanças na grade das escolas ou uma reformulação no jeito de ensinar”. Em outras palavras, com a exceção de ilhas de excelência, a educação brasileira está estagnada. Não é a toa que o grande guru do nosso sistema educacional é o marxista retrô Paulo Freire. E que tantos professores têm como prioridade doutrinar crianças e jovens para a cartilha petista. Mexer nessa ferida implica enfrentar a máquina sindicalista e uma estrutura acadêmica acomodada que se nega a qualquer mudança profunda.
A educação brasileira reflete um traço cultural maior, um “humanismo” mofado que acha mais importante ensinar artes e filosofia do que qualquer forma de inovação tecnológica. Um dos depoimentos na pesquisa: “A tecnologia é recorrentemente vista como uma adversária da escola, e não como uma aliada, o que a mantém ausente do cotidiano de aprendizado formal para a maior parte da população. Eu estudei em escola pública e — você sabe como é a educação — a tecnologia é muito distante. Dentro da escola, não te dão uma ideia de que a tecnologia é algo que te interessa. Você passa desde o fundamental até o final do ensino médio sem nenhum contato com a tecnologia, e isso é uma grande barreira”.
O relatório Google/Abstartups mostra uma sociedade alienada de seu tempo, incapaz de entender o tamanho de uma revolução como a inteligência artificial. Continuamos perdidos em nossa melancólica nostalgia.
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A quantidade de pessoas no interesse em direito, na minha opinião, se deve a burocracia brasileira. Parece cultural.
Belo texto, Dagô!!
O abismo da educação entre a realidade das salas de aula e as necessidades do mercado são enormes.
O país com sua visão de atraso criou em 1974 uma estatal – Cobra Sistemas e Computadores Brasileiros com participação da Marinha, do BNDES e da fábrica inglesa Ferranti.
Em 1984 no governo Figueiredo o Brasil selou o seu atraso tecnológico com a Lei da informática criando uma reserva de mercado aos produtos nacionais, dificultando as importações e colocando o país em defasagem ao que acontecia no resto do mundo em desenvolvimento tecnológico.
Hoje com o país nas mãos da esquerda ficaremos cada vez mais atrasados em uma área vital para gerar riquezas.
Lembro de um documentário que assisti sobre os voos espaciais compartilhados entre norte americanos e russos para abastecimento da estação espacial e os norte americanos ficaram espantados com a defasagem tecnológica dos russos.
Chega dar vontade de chorar, eu não tinha uma visão de uma realidade tão cruel
Esse texto deveria ser mandado para o MEC ( se bem que MEC petista é Paulo Freire, alienação), secretarias de Educação de Estados e municípios, além das Universidades. Muito bom e um grande alerta!!
Corrigindo o tempo verbal da frase: Empresas, instituições de ensino e o setor público em vários níveis, seriam os atores que iriam utilizar o Plano para adequar produtos e ações para suas demandas específicas.