“Assumimos suficientemente o aspecto, as maneiras do que não somos, mas desejaríamos ser, para iludir à primeira vista. À aparência exterior, à afetação, à imitação e ao desejo de ser admirado, seja pelos bons, seja pelos maus, acrescentam a falsa aparência das palavras, dos gestos.”
Marcel Proust, À Sombra das Raparigas em Flor
Lembranças do começo do milênio. O local? O Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, o IFCS, no centro do Rio de Janeiro. A data? Algum mês do ano de 2001. O personagem? Eu mesmo, então calouro de ciências sociais.
Em dada ocasião, o movimento estudantil tanto fez, mas tanto fez, que conseguiu desativar um café-e-livraria “burguês, reacionário e fascista” que havia no local. O ambiente do estabelecimento era limpo e organizado demais, reclamavam os carbonários do Largo de São Francisco. Ali, dificilmente alguém pegaria um herpes revolucionário ou encontraria uma barata popular e democrática na comida. Um verdadeiro horror!
No lugar do café “coxinha” (dir-se-ia atualmente), a quarta ninhada do Zé Celso Martinez Corrêa prometia fundar uma “ocupação artística e cultural”, de modo a democratizar o espaço e oferecer conscientização pública, gratuita e de qualidade ao povo (formado por eles próprios). Um dia fui lá conhecer a referida ocupação, organizada por algum rebelde-sucrilhos — semblante obtuso, muitas tatuagens, piercing no nariz e pinta de quem, tendo sacado tudo sobre o sistema capitalista explorador, resolvera partir em missão para salvar o mundo.
Não sei se era intencional, se fazia parte da instalação, mas o cenário era desolador: no chão, em meio a muita poeira, guimbas de cigarro e pontas de baseado, dois corpos flácidos e acinzentados jaziam pelos cantos, sobre um resto de cartolinas rasgadas nas quais se liam garranchos, ao estilo Mobral, de palavras de ordem da década de 1960. Não, não estavam mortos. Eram veteranos sedados por maconha, haxixe e desconstrucionismo, que, depois de décadas sem conseguir se formar, e sequer sair do instituto para tomar um banho, haviam adquirido aquela cor e aquela textura fantasmagóricas. Um deles, dizia-se à boca pequena e com reverência, chegara a lutar na mítica Guerrilha do Araguaia (ou talvez se tratasse de uma confusão com a Rua Uruguaiana, onde, quase toda semana, ocorriam míticas batalhas entre os camelôs, reforçados pelos estudantes, e a guarda municipal).
No centro da sala, outra figura, semidesperta, esquelética, sem camisa, com cabelo dreadlock, e numa aparente tentativa de posição iogue, tentava também arrancar melodias irreconhecíveis (exceto, talvez, para um cachorro) numa flautinha de pan. De tempos em tempos, parava para balbuciar alguma coisa (com quem, meu Deus?) sobre um suposto parentesco com Camilo Cienfuegos. E voltava a torturar o instrumento, arrancando-lhe guinchos infernais, sob o pretexto de que a sua música — atonal, dodecafônica e pós-colonial — não poderia mesmo agradar ouvidos “burgueses, reacionários e fascistas”.
Talvez fosse mesmo o meu internalizado senso estético burguês (que, à época, estava ainda em processo de desconstrução), mas tudo na cena me soou como tentativa e fracasso. Mesmo porque a distinção entre uma e outro havia sido consensualmente abolida depois que um veterano, grande guru da moçada, poeta errante e brizolista roxo, criado nas ruas do centro e cevado à base de Ypióca, ovo colorido e lascas de pernil, entregara um manuscrito sagrado no qual se lia esta lição imortal: “importante é o processo, nunca a meta”.
Naquela mesma época, talvez até no mesmo dia, pois já não posso lembrar com precisão, recebi outra lição inesquecível sobre como, sem necessidade de cirurgia, libertar o meu revolucionário interior preso num corpo “burguês, reacionário e fascista”. Dessa vez, seu portador não era um estudante, mas um professor. De psicologia. Sua aula começava cedo, às 8 da manhã. Numa grande sala em formato de auditório, um punhado de calouros modorrentos (dentre eles este escriba) espreguiçava-se, fazendo ranger os bancos de madeira, enquanto aguardava grandes revelações.
O sacerdote secular adentrou o recinto com hora e meia de atraso. Ali naquele local sagrado, gozavam de estabilidade plena. Ademais, a sabedoria acumulada dera-lhes o poder da síntese, dispensando-os do imperativo “burguês, reacionário e fascista” de cumprir à risca a carga horária estipulada, sobretudo no dia seguinte ao animado convescote da véspera. Colocando-se de pé entre o quadro-negro e a grande mesa retangular à sua frente, puxou a cadeira, mas não se sentou, pousando ali a sua pasta de couro ao estilo carteiro. Com gestos largos e teatrais, espanou a poeira do tampo com o dorso da mão, ergueu os óculos à testa calva, lustrosa, e comprimiu, com o polegar e o indicador em pinça, os cantos dos olhos fechados contra a base do nariz. Seu semblante era o de um vampiro, fustigado pelo sol da manhã.
Esse ritual durou alguns minutos, depois dos quais, só então, o sujeito dirigiu-nos o olhar, contemplando seus alunos de alto a baixo, com o mesmo vagar dos gestos. Exultante com o nosso silêncio de expectativa, por fim dignou-se a falar. E, se a memória não me trai, foram estas as primeiras palavras que lhe saíram da boca: “Bom dia, senhores. A partir de agora, a lição mais importante que terão de assimilar é uma só: esqueçam tudo o que aprenderam até hoje”.
Uma mensagem proclamada com tamanha autoridade não poderia deixar de nos impressionar, dando-nos a sensação de ingressar num mundo novo, exclusivo e misterioso, capaz de elevar-nos acima da realidade ordinária que experimentávamos do lado de fora. Começávamos ali a adquirir um temor reverencial, não propriamente pelo saber, mas pelos símbolos externos e ornamentais do saber, pela linguagem iniciática da Academia, segundo a boa e velha teoria machadiana do Medalhão. Com ânsia de náufrago, tratávamos logo de assimilar os maneirismos, as entonações, as frases de efeito, as opiniões corretas, os slogans, a postura corporal, tudo, enfim, que nos pudesse imantar com uma aparência de conhecimento. Embevecidos com tudo isso, a nenhum de nós ocorreria fazer uma simples pergunta: “Por que deveríamos esquecer tudo o que aprendemos, com nossos pais, nossos familiares, nossos amigos, nossa comunidade, nossa paróquia, nossas experiências particulares, os livros que lemos, os filmes que vimos etc.?”. Com essa simples pergunta, talvez presenciássemos imediatamente a volta do gênio para a lâmpada, ou — puf! — sua transformação em fumaça.
Mas, como não o fizéramos, voltávamos para casa cheios de si. Tendo, pela manhã, assimilado a lição retumbante, o noviço acadêmico chegava ao jantar exalando condescendência pelos comentários do avô, debochando das opiniões da mãe, corrigindo as falas do pai, e passando pito no cachorro. Mal passara no vestibular e, no entanto, já era um intelectual, por haver incorporado a lição fundamental, quiçá a única válida em toda a sua vida acadêmica: tudo o que até então aprendera estava errado. E, trilhando sob essa premissa o caminho ascensional da hierarquia acadêmica, o noviço sonhava em atingir o nirvana do Ph.D., quando poderia perceber que, não apenas o que aprendera estava errado, como também estava errado tudo quanto aprendera a humanidade inteira.
Eis que o iniciado compreendia, finalmente, a essência do conhecimento: “Precisamos ir além do senso comum”. Dogma consagrado entre intelectuais acadêmicos, contrariar o senso comum — mesmo quando esse não é outra coisa que bom senso puro e simples — tornava-se quase um sinônimo de ciência. Ainda quando o senso comum exprimia verdades autoevidentes, o dogmático acadêmico daria um jeito de negá-las em favor de uma explicação decerto mais sofisticada, e frequentemente mais errada.
Mas divago em memórias de um iniciado, sem entrar no que queria dizer. Eis então, finalmente, o que queria dizer. Lembrei-me dessas desventuras acadêmicas — ou do que o escritor Yuri Vieira chamou de A Tragicomédia Acadêmica — ao me envolver num debate com uma orgulhosa acadêmica no Twitter, inconformada com uma postagem minha. A postagem versava sobre alguns paradoxos do que chamo de transativismo, movimento ideológico de politização da disforia de gênero. Eis o que escrevi:
“Por um lado, os transativistas afirmam que, desde o nascimento, a pessoa trans sempre foi do sexo com o qual se identifica. É frequente, por exemplo, ver mulheres trans (ou seja, homens que se acham mulheres) dizendo terem sido mulheres por toda a sua vida, assim como qualquer mulher comum (biologicamente falando). Mas, se é assim, por que então o discurso de que a única solução para uma pessoa trans é o tratamento médico de redesignação de gênero? Se a mulher trans é mulher desde que se entende por gente, por que precisaria de hormônios e cirurgia para virar a mulher que afirma já ser? Se o sentimento (ou a identidade) de gênero é o que realmente importa — mais do que a realidade corporal —, por que então a necessidade de transformar o corpo para que corresponda a esse sentimento? O que, afinal, define o gênero? O corpo ou o espírito? O que é uma mulher? Alguém com uma biologia específica ou alguém com uma psicologia específica?”
“Diante dessa espantosa argumentação, questionei por que alguém em sã consciência precisaria da aceitação de pessoas que ela própria considera estúpidas”
Aparentemente enraivecida, a acadêmica que se apresenta como psicóloga especializada em neuropsicologia infantil respondeu de forma malcriada, e numa língua vagamente próxima ao português: “A cirurgia é para que pessoas estúpidas como vc aceitem-nos [sic]. É uma tentativa de ser aceito pelos outros por meio da aparência que eles sabem que teriam que ter para serem aceitos [sic]”.
Diante dessa espantosa argumentação, questionei por que alguém em sã consciência precisaria da aceitação de pessoas que ela própria considera estúpidas. E acresci que aceitar uma pessoa não equivale a aceitar as fantasias nas quais essa pessoa acredita. Pode-se perfeitamente acolher uma pessoa, tratando-a com respeito e civilidade, sem referendar a sua afirmação de que, por exemplo, 2 + 2 = 5. Deve-se amar o pecador, mas não o pecado. Todavia, ponderei que, se a pessoa exige que referendemos essa sua afirmação falsa, isso significa que ela não quer ser aceita, mas simplesmente impor a terceiros, de maneira autoritária, o seu erro particular, transformando-o em norma.
A psicóloga voltou à carga. Em resposta à minha pergunta sobre a necessidade da aprovação social de pessoas estúpidas, observou: “Porque ninguém está livre da estupidez (nem eu, veja o que estou fazendo vindo discutir isso aqui). Mas o motivo é o mesmo pelo qual fazemos cirurgias plásticas, colocamos silicone e usamos maquiagem: a opinião dos outros importa, ainda que seja a opinião de pessoas estúpidas”.
Esta foi a minha tréplica: “O que você está me dizendo é que a pessoa trans sabe que, no fundo, não é do sexo de que gostaria de ser, e precisa, primeiro, fazer uma espécie de ilusionismo para os outros de modo a, finalmente, iludir a si própria”. Mostrei também quão esdrúxula era a analogia com a cirurgia plástica e a maquiagem. Ora, ninguém coloca silicone acreditando já ter os seios ideais. Ao contrário, a opção pelo silicone advém justamente do fato de que a pessoa não tem os seios desejados. O mesmo se dá com a maquiagem: ninguém se maquia imaginando já estar maquiado, mas justamente por enxergar a falta de maquiagem. Em ambos os casos, a pessoa deseja transformar-se naquilo que ainda não é, ter o que ainda não tem. Já o discurso transativista parece distinto e singular, exatamente como apontei na postagem original. Sua tese é a de que, justamente por sempre ter sido X, a pessoa carece de tratamento médico para virar X. Como se a borboleta precisasse entrar no casulo a fim de metamorfosear-se em… borboleta!
A única resposta que ocorreu à interlocutora foi acusar-me de preconceituoso, apontando o meu pretenso medo da “alteridade”, que a mim soaria como ameaça. Ainda argumentei ser antropólogo, acostumado a lidar com a dita “alteridade” (aliás, bem mais extrema) há mais de 20 anos, e que, portanto, meu ponto nada tinha a ver com isso. Tratava-se apenas de demonstrar a contradição de um discurso ideológico, o qual, justamente por não parar de pé em termos lógicos e racionais, tenta se impor na base da militância radical, da gritaria, do cancelamento, da censura e do aparelhamento do Estado, em particular do Judiciário. Não há preconceito algum em afirmar que um homem cirurgicamente mutilado, com o organismo inundado de hormônios femininos, não vira uma mulher por conta disso. E que, além de ineficaz, o procedimento seria sobretudo desnecessário caso o paciente já fosse uma mulher. Enfim, não pode haver preconceito em afirmar o óbvio. Mas há muito preconceito político-ideológico no ato de negá-lo, mesmo que em academiquês castiço.
Por um breve instante, cheguei a pensar em continuar argumentando racionalmente. Mas logo caí em si, apercebendo-me da inutilidade da tarefa, ao deparar-me com a sigla “Ph.D.” junto ao nome exibido no perfil. De início, pareceu-me um exemplar do Medalhão machadiano. Compreendia-se, pois, a razão de tanta ênfase na necessidade de aprovação alheia, uma necessidade tão desesperada que sequer podia dispensar a aprovação dos estúpidos. Mas, ato contínuo, tomado de súbito sentimento de piedade, tive uma visão de extrema dolência: vi-a ali, jovenzinha ainda, num ambiente similar ao da minha faculdade, talvez ocupada com os afazeres de uma “ocupação artística e cultural”, em protesto contra a “burguesia reacionária e fascista”, e decerto catequizada por um professor-sacerdote idêntico àquele do meu primeiro período. Finalmente, percebi tudo. E, tendo-o percebido, restava-me apenas adotar um silêncio compassivo. E, obviamente, rezar por sua alma.
Leia também “A arma organizacional leninpetista”
Brasil precisa atacar estes insetos infestados nas universidades.
Parabéns pelo texto. Aos 74 anos, parecia que não conseguiria mais ler ou ouvir pessoas lúcidas, cônscias daquilo que representamos na sociedade. Ufa!!! Que maravilha. Ainda há esperança.
Absolutamente maravilhoso
Artigo excelente !
Arrasou!!!!
excelnte texto.
Excelente texto. Cada vez mais me conscientizo de que estamos caminhando para um abismo. Décadas de lavagem cerebral….será difícil reverter os estragos.
Excelente artigo. Muito esclarecedor por essa ideologia impregnada principalmente nas universidades federais.
Parabéns
Excelente artigo.
Parabéns.
Essa neuropsicóloga deve pedir umas aulas de estética trsns a Dino
Um bom artigo! Mas, por favor, “caí em si” referindo-se a você mesmo não foi bem.
Achei que só eu tinha percebido isso.
Salvarei esse artigo para a posteridade. Excelente. Sabe o que é engraçado? Eu ingressei em 7 faculdades públicas (6 federais e uma estadual) conclui 6 das 7, e em todas elas, com alguns detalhes diferentes aqui e ali do seu texto, mas em todas me deparei com o mesmo tipo de professor e com os mesmos tipos de “revolucionários”. Passam-se os anos e permanecem os idiotas nada úteis. Digo sempre que para mudar a visão hoje de nossa nação esse quadro que sempre me deparei urge ser mudado, porém falta muito para isso em nosso pobre Brasil dominado por essa doença que o assola.
Brilhante!
Excelente. Argumentação precisa e sábia. Obrigada.
Texto muito interessante! Excelente.
Excelente artigo!
Brilhante artigo.
Me fartei com a leitura.
Esses “acadêmicos” são robotizados para apresentar e defender somente suas “verdades”.
Excelente artigo! Fica a tristeza de ver o nível de boçalidade desses pseudos intelectuais que estão aí arrotando títulos académicos. Isso vale para o alto judiciário brasileiro. Augusto Nunes nós deu uma amostra disso em seu artigo em que cita o inominável A.M do STF.
Queria eu ter a sabedoria, a humildade e a paciência que você demonstrou neste episódio. Parabéns!
Diagnóstico preciso. Passei por experiência parecida numa federal nos anos 80.