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Edição 17

A privatização do espaço

A corrida espacial não é mais exclusividade de estatais. O mercado está de olho nas possibilidades, e isso é muito bom

Dagomir Marquezi
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Pode ainda parecer difícil unir as palavras “privatização” e “espaço”. Fomos condicionados por filmes como Alien e Avatar a imaginar que a exploração de outros corpos celestes por empresas vai provocar desgraças apocalípticas por causa da ganância de capitalista sem coração. Você sabe, a empresa manda uma nave para explorar minério na lua LV-426 e a tripulação volta com um monstro esfomeado de mandíbula dupla.

Organismos estatais continuam sendo a base da exploração espacial. Nestas próximas semanas, por exemplo, nada menos que três missões exploratórias governamentais (não tripuladas) estão a caminho de Marte: a China está mandando o ambicioso Questões Celestiais. Os americanos enviaram o Perseverance, da Nasa. E pela primeira vez um país árabe participa dessa corrida, com uma nave sem nome dos Emirados Árabes Unidos.

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Mas, no universo real, o espaço está sendo rapidamente privatizado. Não por uma razão ideológica. Explorar o espaço custa muito caro, e governos não estão conseguindo mais pagar a conta. Novas possibilidades se abrem. Um sinal desses novos tempos é a notícia de que o ator Tom Cruise deverá filmar cenas de sua próxima aventura na Estação Internacional Espacial (ISS). Será o primeiro filme de ficção científica rodado no espaço.

O preço de uma aventura espacial está a caminho de encolher para seis dígitos

A ex-União Soviética obteve as grandes vitórias iniciais da corrida espacial, lançando o primeiro satélite artificial (o Sputnik, em 1957) e o primeiro astronauta em órbita (Iuri Gagarin, em 1962). Sete anos depois os Estados Unidos viraram o jogo, colocando os primeiros humanos na superfície da Lua.

“Muitos viram a corrida espacial dos anos 1950 e 1960 como uma batalha entre o livre mercado norte-americano e o comunismo soviético”, escreveu Rand Simberg, especialista em tecnologia e business espacial, para a revista Reason. “Mas o programa espacial não era exatamente um esforço de mercado. O propósito original da Nasa era simplesmente estender o desenvolvimento da tecnologia de aviação para o espaço — uma intrusão federal na economia, mas não muito grande. Porém, com o advento do programa Apollo, em 1961, a agência tornou-se uma gigantesca empresa estatal sem lugar para o mercado. Como a corrida espacial era vista como uma batalha urgente numa guerra potencialmente existencial, o custo não era problema.” Segundo Simberg, essa situação criou a percepção de que a atividade espacial só podia ser resolvida com os recursos do governo de uma superpotência. E o acesso ao espaço ficou limitado aos poucos escolhidos pelas agências oficiais.

Acabou essa exclusividade. Turistas já entraram em órbita como “convidados” da ISS. Como o canadense Guy Laliberte (fundador do Cirque du Soleil), que pagou 35 milhões de dólares para passar uma semana e meia a bordo da estação. (Segundo ele, “valeu cada centavo”.) O preço de uma aventura como essa já está a caminho de encolher para seis dígitos.

Elon Musk já declarou que pretende viver e ser enterrado em Marte

O administrador da Nasa Jim Bridentine calcula que a conquista do espaço representa hoje um mercado potencial de US$ 400 bilhões. Se clientes começarem a pagar pelos serviços (com o turismo e outras utilizações da iniciativa privada), esse mercado se expandirá para US$ 1 trilhão. Para um planeta saindo de uma crise econômica grave por causa de uma pandemia, essa oportunidade não poderia vir em melhor hora.

O maior símbolo da privatização do espaço tem nome e sobrenome: Elon Musk. Ele já declarou que pretende viver (e ser enterrado) em Marte. “Devemos criar uma vida sustentável multiplanetária”, disse Musk, de acordo com a revista TechLife News. “Não é um planeta em exclusão do outro, mas a extensão da vida além da Terra.” Como um homem que enxerga longe, ele já está calculando impactos ambientais — em Marte.

Musk revolucionou o business espacial ao criar naves reutilizáveis, que pousam com perfeição em locais predeterminados. Já pôs em órbita 420 satélites de comunicação Starlink para ligar o mundo inteiro pela internet mesmo em lugares inóspitos e muito pobres.

Como em todas as áreas, a iniciativa privada é também mais eficiente que o Estado no setor espacial

O dia 30 de maio deste ano marcou simbolicamente o início “oficial” da privatização do espaço. A SpaceX de Elon Musk transportou os dois primeiros astronautas norte-americanos na cápsula Crew Dragon 2 até a ISS. Foi um voo perfeito, com transmissão pelo YouTube, a primeira vez em nove anos que astronautas dos EUA saíram de território norte-americano numa nave made in USA. Desde 2011, a Nasa estava passando pelo vexame de enviar seus astronautas até a ISS pagando aos russos uma fortuna pelo transporte.

A própria Nasa entendeu que as décadas de monopólio haviam acabado. Ofereceu bilhões de dólares à SpaceX e à Boeing para que desenvolvessem os projetos que ela já não podia mais sustentar. Segundo o The Wall Street Journal, “os contratos permitiram à Boeing e à SpaceX construir seus projetos com o mínimo de supervisão do governo. Enquanto a Nasa se certificava cuidadosamente de que ambos os veículos estavam de acordo com seus padrões de segurança, as companhias ficaram livres para manter seus métodos e culturas internas”. O Starliner, da Boeing, falhou no seu primeiro teste (em 2019) e está sendo reformulado.

Esta tabela comparativa dá uma ideia da economia gerada pela privatização da exploração espacial:

Mesmo um país com modesto programa espacial como a Índia decidiu seguir o novo caminho. No início de junho, o governo anunciou a criação do National Space Activities Promotion Board, destinado a substituir o monopólio estatal da India Space Research Organization. A ISRO vai passar a ser apenas um dos parceiros.

O turismo espacial deve se tornar uma atividade regular já a partir do ano que vem, quando o programa SpaceX pretende levar quatro turistas por cinco dias a uma distância de 800 a 1.200 quilômetros da superfície — ou seja, duas a três vezes mais alto que a ISS. Do outro lado do Atlântico, outro visionário, Richard Branson, já confirmou 600 reservas de futuros viajantes provenientes de 60 países. Os interessados já pagaram 100 mil dólares de reserva cada um. A ambição do Virgin Galactic é bem menor que a do SpaceX: voos suborbitários de 90 minutos, a 80 quilômetros de altitude, com uma rápida experiência de ausência de peso. A Amazon de Jeff Bezos também está na corrida, com seu projeto Blue Origin.

“O espaço é muito importante para ser deixado para monopólios estatais”

Os Estados Unidos se preparam para retornar astronautas à Lua em 2024. Para a instalação das bases lunares, seria necessário usar os recursos naturais de nosso satélite por meio de empresas privadas de um pool de países interessados. Na prática, a Lua seria privatizada. Para disciplinar essa exploração, os americanos propuseram um conjunto de acordos chamado Artemis. Seus princípios básicos seriam os estabelecidos pelo Tratado do Espaço Exterior, assinado em 1967, entre outros, pelos Estados Unidos e pela então URSS. O tratado proíbe que países-membros se apossem, militarizem e ataquem corpos celestes.

Dmitry Rogozin, o nacionalista que chefia a agência espacial russa Roscosmos, negou por enquanto qualquer adesão da Rússia ao Artemis. Por ele, tudo continua estatal. Quem desconfia de privatização teria de confiar nos burocratas amigos de Vladimir Putin. Já as empresas privadas contariam com o controle dos acionistas, da imprensa livre, da opinião pública, dos organismos internacionais etc. A Rússia prefere a parceria da China. Mas com essa mentalidade retrógrada está condenada a ser mera coadjuvante.

“O espaço é muito importante para ser deixado para monopólios estatais”, concluiu Rand Simberg em tom utópico em seu artigo para a revista Reason. “São as sociedades que permitem a liberdade individual e a livre iniciativa que vão florescer, preenchendo o sistema solar e talvez eventualmente a galáxia com vida, consciência, risadas e amo.”


Dagomir Marquezi, nascido em São Paulo, é escritor, roteirista e jornalista. Autor dos livros Auika!, Alma Digital, História Aberta, 50 Pilotos — A Arte de Se Iniciar uma Série e Open Channel D: The Man from U.N.C.L.E. Affair. Prêmio Funarte de dramaturgia com a peça Intervalo. Ligado especialmente a temas relacionados com cultura pop, direito dos animais e tecnologia.

7 comentários
  1. Natan Carvalho Monteiro Nunes
    Natan Carvalho Monteiro Nunes

    Por mais artigos como esse aqui na Oeste. Mt bom!

  2. Ruy Quintão
    Ruy Quintão

    Gostei do artigo e da lembrança do tema. Espero que tenhamos outros.

  3. Jamicel Francisco Rocha Da Silva
    Jamicel Francisco Rocha Da Silva

    Excelente artigo! O Estado deve cuidar apenas do monopólio do uso da força! É uma visão talvez utópica, mas os particulares devem ter liberdade sempre de cuidar das próprias vidas e se desenvolver!

  4. Rodrigo Moreira Galindo Novaes
    Rodrigo Moreira Galindo Novaes

    muito boa essa reportagem, espero que continuem trazendo reportagens de conteúdo similar.

  5. Alvaro Augusto Nader
    Alvaro Augusto Nader

    Muito bom , espero que a Revista Oeste ocupe o espaço com matérias diversificadas e confiáveis assim como vem fazendo. No passado e por muitos anos a Veja fez este papel e fui seu assinante por décadas.
    O Brasil precisava de algo assim, parabéns pelo caminho escolhido e certamente o número de assinantes irá disparar exponencialmente.
    Obrigado pelos bons serviços!!
    Desejo grande sucesso !!!

  6. Eric Kuhne
    Eric Kuhne

    Ótimo que a Oeste nos informe de assuntos diversos como esse. E importantes, também, embora a grande mídia prefira divulgar futricas de celebridades, influenciadores e outros boçais

  7. Silas Veloso
    Silas Veloso

    Muito bom. O espaço é vasto, cabe bem mais q o gasto do estado

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