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Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock
Edição 170

O jornalismo morreu: viva o jornalismo

Nunca devemos abandonar a esperança de que políticos e jornalistas se aproximem do papel que o imaginário popular lhes reservou: defensores da verdade, da justiça e do homem comum

Roberto Motta
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O que é Jornalismo? Essa é uma pergunta fundamental neste momento. Não é a única. Outras perguntas importantes são: o que é Moral? O que é Democracia? O que é Estado de Direito?

Existe uma verdade absoluta, ou tudo o que conhecemos são interpretações, visões particulares que têm, todas, valor igual? Perguntando de outra forma: há coisas que existem independentemente da nossa vontade, ou tudo que nos cerca não passa da manifestação de preferências e de opiniões, influenciadas, às vezes, pelos piores motivos? 

Existe uma realidade que pode ser verificada e comprovada, ou é tudo narrativa?

Foto: Shutterstock

É possível dizer que uma coisa é certa ou errada? Ou certo e errado são conceitos relativos que dependem da época, do lugar, e daqueles que exercem o poder no momento? É possível dizer que uma coisa é boa ou ruim, ou que determinada forma de expressão é de boa qualidade ou de má qualidade, sem que isso caracterize nossa opinião como defeituosa, e a nós como preconceituosos? Ainda é possível — permitido — diferenciar entre baixa e alta cultura, por exemplo?

E de volta à pergunta inicial: o que é jornalismo? Um instrumento de exploração da verdade, custe o que custar? Um instrumento de construção ou confirmação da narrativa dos poderosos? Ou apenas um produto posto à venda pelo melhor preço? 

Existe algo nobre na percepção popular do papel do jornalista. Alguns jornalistas correspondem a essa expectativa; tive o privilégio, na minha carreira de intelectual acidental, de conviver com vários deles. Permanecerão como exceções. Boa parte da atividade “jornalística” consiste em servir como caixa de ressonância do poder, ou na fabricação de narrativas lucrativas. Um dos primeiros exemplos foi o magnata norte-americano William Randolph Hearst, que ajudou a deflagrar uma guerra entre os Estados Unidos e a Espanha, em 1898, com o objetivo de aumentar a circulação de seus jornais. Money, money, money.

William Randolph Hearst | Foto: Wikimedia Commons

Não se deve buscar santidade na política nem no jornalismo. Mas nunca devemos abandonar a esperança de que políticos e jornalistas se aproximem do papel que o imaginário popular lhes reservou: defensores da verdade, da justiça e do homem comum. 

Mas a história é cíclica, e uma das coisas que se repetem são épocas em que a liberdade de expressão é suprimida.

A internet, os celulares e as redes sociais revolucionaram tudo. Alguns veículos de mídia, incapazes de compreender ou de lidar com essa mudança, se resignaram ao papel de porta-vozes do sistema — do mecanismo, do regime —, qualquer que ele seja. Muitos jornalistas se acomodaram confortavelmente nesse papel.

Mas os papéis reais do jornalismo ainda são revelar a verdade e servir de memória — porque as pessoas esquecem. 

A verdade mais fundamental dos dias de hoje parece, para muitos, uma súbita revelação. As piores distopias, adivinhadas em livros como 1984, A Revolução dos Bichos e Admirável Mundo Novo, se materializaram. Nada escapa a esse suicídio coletivo, que vai da moral e da arte à linguagem e à lógica. A base dessa destruição é o racionalismo construtivista que, segundo o economista austríaco Friedrich Hayek, faz com que ativistas radicais de todos os matizes — mas especialmente os de esquerda — acreditem que o cérebro humano (especialmente o cérebro deles) tem a capacidade de reorganizar racionalmente a sociedade, segundo admiráveis linhas novas.

Friedrich Hayek | Foto: Wikimedia Commons

Neste momento, um jornalismo fiel à realidade e à nossa herança cultural tem papel fundamental de resistência e resgate. Mas o jornalismo é feito por homens e mulheres submetidos aos mesmos processos racional-construtivistas que o resto da sociedade; na verdade, as escolas de jornalismo disputam com as escolas de direito a condição de maiores centros de doutrinação ideológica da Academia atual.

O poder de selecionar os eventos que se tornarão notícia e a capacidade de criar uma interpretação para eles — uma narrativa — passaram de poucos grupos econômicos e de uma corporação ideologizada para as mãos do cidadão comum

A questão não se resume ao desconhecimento de nossa herança cultural greco-romana-judaica (me mostre um jornalista que tenha lido Heródoto ou Adam Smith, e eu lhe mostro um esquerdista que tenha lido todos os volumes de O Capital). A questão é que a maioria dos jornalistas foi convencida a odiar essa herança, antes mesmo de conhecê-la. 

Busto de mármore de Heródoto, historiador e geógrafo grego | Foto: Wikimedia Commons

Tinha que dar errado.

A consequência é que a maioria dos cidadãos, na maioria dos países, não reconhece mais no jornalismo “tradicional” (leia-se: a grande mídia) um instrumento válido de conhecimento e interpretação da realidade, nem um lugar onde encontrar opiniões variadas, ponderadas e relevantes. 

As redes sociais ocuparam esse espaço.

O poder de selecionar os eventos que se tornarão notícia e a capacidade de criar uma interpretação para eles — uma narrativa — passaram de poucos grupos econômicos e de uma corporação ideologizada para as mãos do cidadão comum. Isso dói muito, principalmente nos poderosos, elitistas e arrogantes intelectuais.

Foto: Shutterstock

Aí está a explicação do furor que se observa, em quase todo o Ocidente, para regulamentar, dominar e controlar as redes sociais. 

As redes representam a reinvenção do jornalismo. A identificação, coleta, apresentação e crítica da informação acontecem de forma distribuída, sem uma orientação homogênea, sem edição ou curadoria centralizadas e sem qualquer chance de monopólio. A tentação é dizer que se trata de uma revolução; como toda revolução, essa tem perdedores e ganhadores. 

Os principais perdedores são os veículos de mídia tradicionais, que perderam circulação, anunciantes, faturamento e credibilidade. Muitos consideram essas perdas irrecuperáveis. 

O cidadão comum é o maior ganhador. Ele tem acesso a uma variedade de informações — vindas de uma variedade de fontes — inimaginável até pouco tempo atrás. Essa mudança traz desafios, claro; sem a existência de uma curadoria onipresente, cabe agora ao leitor ou espectador a responsabilidade de avaliar a correção, a veracidade e a relevância de cada notícia. 

Foto: Shutterstock

Essa responsabilidade é mais do que compensada pelos benefícios: liberdade de informação, possibilidade de independência real de pensamento, aumento exponencial da variedade de conteúdo disponível e fim da tutela do Estado e das grandes corporações sobre a comunicação de fatos e ideias.

Nesse mundo novo, o dilema enfrentado pelo jornalista — profissional ou amador — não é muito diferente daquele enfrentado pelo advogado ou pelo político. A escolha entre a realidade, a verdade e a justiça de um lado, e a adulação, a mentira e a venalidade, do outro, é uma das escolhas mais antigas da humanidade. 

Os bons jornalistas — aqueles que demonstram competência, coragem e coerência — terão público e trabalho em qualquer plataforma ou tecnologia. Esses jornalistas são respeitados até por seus adversários. 

O jornalista capacho — aquele cuja consciência e palavra estão disponíveis para aluguel — não é respeitado nem por seus amigos.

Leia também “O perigo da liberalização das drogas para consumo próprio”

18 comentários
  1. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    O mentiroso sabe de sua arte. E para mantê-la precisa fingir ao máximo, como por exemplo controlar a narrativa.

  2. RICARDO TEIXEIRA DA CRUZ RIOS
    RICARDO TEIXEIRA DA CRUZ RIOS

    Jornalismo sério é Jornalismo informativo. Roberto Motta cumpre muito bem esse papel. Parabéns e um forte abraço.

  3. Ramon
    Ramon

    Mota eu admiro seus textos.
    Obrigado por mais esse artigo sucinto, lógico, racional e esclarecedor.

    Se as pessoas tivessem a capacidade racional excitada e educada, teríamos uma população mais crítica, menos suscetível a doutrinação e alienação.

  4. Iran Kroich
    Iran Kroich

    Obrigado Motta, textos sempre enxutos, e esclarecedores. Parabéns.

  5. CARLOS ANDRÉ DE SOUZA
    CARLOS ANDRÉ DE SOUZA

    A História não é cíclica, e nem se repete. Na bíblia ela é linear, tem começo, meio e fim.
    E por falar nisso, já estamos nos dias finais.

  6. JHONATAN SURDINI
    JHONATAN SURDINI

    Excelente!

  7. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Motta, a censura sempre existiu seja na mídia televisiva ou escrita.
    Na época dos governos militares (1964-1984) tínhamos a Dona Solange – Solange Maria Chaves Teixeira Hernandes – que assinava os certificados da Divisão de Censura de Diversões Públicas vinculado ao Ministério da Justiça.
    Nos jornais sempre existiu a figura do Editor Chefe que decidia/decide o que será ou não publicado, servindo inclusive como ferramenta de extorsão dependendo da (s) posição (es) dos citados em determinada reportagem.
    Como você bem definiu, a mídia eletrônica acabou com este conluio e hoje todos estão expostos.
    Daí o enorme desejo de cancelar/bloquear/censurar as redes sociais.
    Se abrirmos a guarda nos tornaremos uma China, Cuba, Coreia do Norte…

  8. Carlos Alberto Carravetta
    Carlos Alberto Carravetta

    Mais um texto límpido, perfeito, coerente! Obrigado, Motta!

  9. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Nós estamos enfrentando uma política e um jornalismo surreal, e alguns têm um descaramento imperdoável. Em falar sobre verdade absoluta do ponto de vista filosófico, falar em dicotomia e dialética, num processo judicial onde qualquer pessoa adulta sabe que é uma mentira deslavada de um poder tirânico

  10. Antonio Carlos Neves
    Antonio Carlos Neves

    Motta, sempre pergunto ao Augusto Nunes, quando teremos esse excelente jornalismo da Revista Oeste, Gazeta do Povo e alguns como você remanescentes da JP, na TV CULTURA, nos seus jornais e no excelente programa RODA VIVA, atualmente da esquerda radical?

  11. João José Augusto Mendes
    João José Augusto Mendes

    Questionamento de Platão: AS LEIS SÃO PARA OS FRACOS DOMINAREM OS FORTES, OU PARA OS FORTES DOMINAREM OS FRACOS?

  12. Lenart Palmeira do Nascimento Filho
    Lenart Palmeira do Nascimento Filho

    Excelente artigo! Assino a Oeste porque há bom jornalismo aqui.

  13. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    Desde que os esquerdopatas travestidos de jornalista assumiram a grande mídia, como por exemplo a Globolixo News, ela perdeu toda a credibilidade. Hoje eles que odeiam o Bolsonaro passaram a odiar os mais de cem milhões de eleitores do Ex-presidente.

  14. Luiz Antônio Alves
    Luiz Antônio Alves

    Tu estás longe aqui do fundo do sertão. Ontem, por acaso, passando de um canal para outro cai na Globonews (fazia tempo que não conectava com essa esdrúxula emissora) e vi um comentarista falando sobre a criminalidade e o tráfico de drogas no RJ. Ele disse e eu ouvi: “nenhum partido político até agora se interessou sobre o assunto e resolvê-lo”. A gente sabe que teve gente, incluindo um presidente da república que tentou resolver alguns problemas e outros políticos tentaram aprovar legislção que favorecesse o combate ao crime organizado. E aí o tal de jornalista disse que até hoje ninguém se interessou pelo assunto….

  15. MNJM
    MNJM

    Motta excelente texto. Os bons jornalistas tem o respeito da sociedade, os capachos não tem credibilidade.

  16. Antonio C. Lameira
    Antonio C. Lameira

    Estou próximo de fazer um ano que não assisto o Jornal Nacional, outrora primeiro lugar no telejornalismo, TV só só a JP, não porque sou direita, mas as noticias e debates são isentos, ela nunca despiorou, ela sempre será a melhor na linha editorial que elas praticam. Parabéns a esta emissora e a revista Oeste por estarem sempre em busca da verdade, espero que o judiciario não encontre brecha jurídica para fechar as duas.

  17. Luiz thadeu de Abreu poletto
    Luiz thadeu de Abreu poletto

    Obrigado. Assino a revista para ler exatamente artigos como este.

  18. Omar Roberto de Aguiar
    Omar Roberto de Aguiar

    Excelente Roberto Mota:
    – Os bons jornalistas — aqueles que demonstram competência, coragem e coerência

    – O jornalista capacho — aquele cuja consciência e palavra estão disponíveis para aluguel — não é respeitado nem por seus amigos.

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