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Foto: Shutterstock
Edição 172

Os piores entre nós

A liberdade, incluindo a de expressão, é um direito fundamental, um pressuposto básico da natureza humana

Roberto Motta
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Sou escritor e jornalista, vivendo no Brasil de 2023. Futuras gerações entenderão que, por essa razão, escolho minhas palavras com cuidado. Mas não posso me calar.

Algum pensador ilustre já disse que, neste mundo injusto, o melhor que podemos esperar é que não sejamos governados pelos piores entre nós — e que, se isso acontecer, pelo menos eles não fiquem muito tempo no poder.

Enquanto mantemos em nossos corações essas duas esperanças, segue a vida, segue o jogo. É impossível nos fazermos de surdos e mudos. É impossível fingir que não ouvimos uma declaração acalorada de uma grande e vetusta autoridade federal defendendo, mais uma vez, a necessidade de regulamentação das redes sociais porque, segundo ela, “nem tudo pode ser dito”. 

Ilustração: Wan Wei/Shutterstock

Há, provavelmente, mais de uma centena de formas diferentes de rebater, desmentir ou — como é mais moderno — desconstruir essa afirmação (Gustavo Maultasch e Leandro Narloch listaram vários desses argumentos em um fio recente no Twitter).

Eu optarei pela mais simples: a liberdade de expressão é um direito natural ou fundamental. É uma questão de princípio; é um elemento básico de uma forma de enxergar o mundo que vem sendo construída com ideias de grandes pensadores desde a antiguidade grega.

É uma ideia que tem perto de 3 mil anos e que, em épocas mais recentes, foi reafirmada na Magna Carta da Inglaterra, entregue em 1215 pelos barões feudais ao rei João sem Terra e na Declaração dos Direitos — Bill of Rights —, escrita também na Inglaterra, em 1689. Sua maior expressão talvez tenha sido a Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1766, que afirmou que todos os homens e mulheres têm direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade.

A Constituição e a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América | Foto: Shutterstock

A vetusta autoridade federal foi extremamente infeliz em sua declaração. Uma legião de ungidos pensa da mesma forma. Os ungidos são aqueles que, segundo o economista norte-americano Thomas Sowell, acreditam estar em um patamar de virtude e inteligência superior. Os ungidos se conferem o direito de inverter o senso comum e as noções tradicionais de Justiça, sempre — claro — em nome da busca por uma justiça cósmica, que acontecerá em um mundo ideal, onde todos os erros serão reparados e todos os homens e mulheres serão igualmente felizes e ricos. 

Em oposição à visão dos ungidos está o que Thomas Sowell chama de visão trágica: a consciência de que vivemos em um mundo imperfeito, cheio de problemas que não podem ser resolvidos, no qual recebemos uma frágil herança milenar de civilização que precisa ser preservada.

thomas sowell
Thomas Sowell | Foto: Divulgação

Friedrich Hayek, economista austríaco, fala sobre o conceito de ordem espontânea. Essa ordem, atingida organicamente pela sociedade, inclui costumes, tradições e hábitos dos quais muitas vezes nem estamos conscientes. Essa ordem é anterior e superior a qualquer ordem artificial estabelecida por regras e leis criadas por legisladores e juristas.

As ordens espontâneas de hoje são resultado de um longo processo de seleção natural. Durante os milhões de anos de evolução da humanidade, tentaram-se diversas formas de organização, como resultado da combinação dos nossos instintos, da nossa racionalidade emergente e de fatores acidentais. Um número incontável de tribos e sociedades surgiu e desapareceu porque suas formas de organização não lhe deram vantagens competitivas na luta pela sobrevivência. Apenas aqueles agrupamentos humanos que adotaram ordens com alguma vantagem competitiva prosperaram. 

Nós somos os descendentes desses sobreviventes.

Não entregue sua liberdade em troca de uma segurança ilusória. Como disse Benjamin Franklin, você perderá a liberdade e não ganhará segurança

Frédéric Bastiat dizia que é fácil observar uma grande obra construída com dinheiro do Estado — ou seja, com dinheiro público — e pensar nos benefícios que ela traz. Entretanto, diz Bastiat, é muito difícil imaginar os milhões de projetos individuais — sonhos, planos e desejos —, de milhões de cidadãos, que deixaram de ser realizados porque o dinheiro que iria financiá-los foi desviado, sob a forma de impostos, para a execução da grande obra governamental.

Frédéric Bastiat | Foto: Domínio Público

Hayek aplica o mesmo raciocínio a medidas restritivas de liberdade. Essas medidas sempre vêm com uma excelente justificativa (“é preciso combater a desinformação” é o exemplo imediato). É muito fácil, segundo seus proponentes, entender o benefício que a medida trará. Mas, relembra Hayek, seguindo a mesma linha de pensamento de Bastiat, é impossível prever todas as iniciativas individuais, extremamente benéficas para a sociedade, que serão impedidas pela existência da nova medida restritiva da liberdade

Nenhum intelecto humano tem a capacidade de processamento necessária para simular um universo alternativo no qual a medida não existiria. “Como o valor da liberdade se baseia nas oportunidades que ela propicia para ações imprevistas e imprevisíveis”, diz Hayek, “raramente saberemos o que perdemos devido a uma determinada restrição da liberdade” (Direito, Legislação e Liberdade, Avis Rara, 2023, p. 79).

Retrato de Friedrich Hayek | Foto: Wikimedia Commons

A liberdade, incluindo a de expressão, é um direito fundamental, um pressuposto básico da natureza humana, que nos foi dado por nosso Criador. Ela não é um favor ou uma dádiva do Estado.

Hayek diz que “uma defesa exitosa da liberdade deve ser dogmática e não fazer concessões à conveniência” (Direito, Legislação e Liberdade, Avis Rara, 2023, p. 83). Não perca tempo e esforço discutindo particularidades quando o argumento principal — o único que realmente importa — é a defesa de direitos que estão acima das pretensões até de soberanos e de iluminados burocratas, não importa o título de seus cargos.

Não entregue sua liberdade em troca de uma segurança ilusória. Como disse Benjamin Franklin, você perderá a liberdade e não ganhará segurança.

“A liberdade só prevalecerá”, disse Hayek, “se for aceita como um princípio geral cuja aplicação a casos específicos não exige justificação”.

Leia também “O jornalismo morreu: viva o jornalismo”

10 comentários
  1. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Tem liberdade relativa, deve ter, porque democracia tem. Olha dêxe eu dizer uma coisa pra você, sabe, a liberdade pra você pode não ser a merma liberdade de Alexandre de Moraes

  2. Otacílio Cordeiro Da Silva
    Otacílio Cordeiro Da Silva

    Certa vez, encontrei num trecho de livro uma frase que dizia mais ou menos assim: NÓS NÃO TEMOS LIBERDADE. A LIBERDADE QUE JULGAMOS TER É AQUELA DE ESCOLHER NOSSA PRÓPRIA ESCRAVIDÃO. Creio que foi exatamente isso que aconteceu com o Brasil em 2022.

  3. João José Augusto Mendes
    João José Augusto Mendes

    Abaixo para pensar, um poema de Francisco Lagreca, inscrito no monumentos aos pracinhas de Piracicaba, sobre a revolução de 9 de julho:
    ESTE É O VALOR DA TERRA ESTREMECIDA, É O POEMA A GLORIA PIRACICABANA, PELA PÁTRIA LUTAR VIDA POR VIDA, TOMBARAM COM BRAVURA SOBERANA. DOR E MARTÍRIO DE UMA RAÇA FORTE, QUE É LUZ E IDEAL DE UM SENTIMENTO NOVO, SOB ESSAS PEDRAS NÃO EXISTE A MORTE, PORQUE NÃO MORRE QUEM DEFENDE O POVO.
    Quando o homem tinha culhões..

  4. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Motta, como você destacou, somos descendentes das antigas civilizações que com seus acertos e erros nos trouxeram até aqui.
    Assisti à série de TV Vikings, os governantes das aldeias eram os Lords, que eram detentores do poder após a morte do anterior ou disputa entre os pretendentes.
    Quando havia eleição para rei, o povo não participava diretamente, mas acompanhava o voto do Lord da sua aldeia já que a eleição era aberta e os votos eram fichas coloridas que identificavam os candidatos, logo o pleito poderiam ser auditado, isso a 1.200 anos.
    Agora pergunto: no século XXI qual a dificuldade em criar um mecanismo de auditagem? Porque os congressistas tem votações secretas?

  5. Persival dos Santos
    Persival dos Santos

    Este texto do ilustre Motta é bastante esclarecedor sobre nossa LIBERDADE. Gente, nosso presidente Bolsonaro procurou sempre que possível esclarecer a população de lutar, com unhas e dentes (uma vez que não temos armas) sobre a necessidade de mantermos nossa LIBERDADE. Não há liberdade relativa assim como não não há democracia relativa. Sem a união de nossos concidadãos (necessitamos de um lider no caso) será um tant difícil, mas não impossível, de vencer a médio prazo esta situação. Não esqueçam: O INIMIGO NÃO DORME e nossa letargia tem que acabar …

  6. MNJM
    MNJM

    Parabéns Motta. Os que querem cecear a liberdade de expressão deveriam ler o texto.

  7. MNJM
    MNJM

    Excelente Motta. Os que tanto querem cercear a liberdade de expressão deveriam ler o texto.

  8. Paulo carvalho
    Paulo carvalho

    Escolher palavras com cuidado já não seria uma forma de entrega da liberdade em troca da segurança ilusória de Benjamin Franklin ? A prática no belo texto denuncia que os piores estão entre nós. Triste…

  9. Carlos Alberto Carravetta
    Carlos Alberto Carravetta

    Parabéns, mais uma vez, Motta. Outro texto saboroso e instrutivo, que nos keva à reflexão. Obrigado.

  10. Mauro C F Balbino
    Mauro C F Balbino

    Excelente Motta, você disse o fundamental, enquadrou com exemplos e citações, sem qualquer instante de agressividade ou grosseria, e considero improvável que semelhante texto possa ser alvo de censura por algum “ungido”.

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