“Não conheço a Shein, conheço a Amazon, onde compro um livro por dia.” Essa declaração desastrosa do ministro Fernando Haddad, com a soberba peculiar, foi o pontapé inicial de um grande dilema em que o Brasil mergulhou: o desembarque da gigante chinesa do vestuário Shein pelos rincões do país. Uma enrascada que já provocou um terremoto no mercado local. E que o Executivo ainda não tem ideia de como enfrentar.
A misteriosa varejista de moda asiática chegou ao país em meados de 2020, no meio da pandemia. Sem alardes ou anúncios oficiais, atropelou concorrentes locais com a invasão de suas “brusinhas”, conquistando o gosto dos clientes brasileiros, principalmente entre as camadas sociais mais pobres. O sucesso foi tamanho que, em alguns Estados, a Shein tornou-se quase monopolista, criando sérios problemas para fabricantes e revendedores brasileiros.
Não há dados oficiais sobre as operações da Shein. A empresa não é listada e, portanto, não é obrigada a divulgar seu balanço. Sequer há informações sobre a sede na China ou suas plantas de produção. Não se sabe quase nada sobre seu fundador e CEO, Xu Yangtian, também conhecido como Chris Xu. Mas os números da empresa são impressionantes.
Segundo a Bloomberg, as vendas globais da varejista virtual não param de crescer, passando de US$ 10 bilhões em 2020, para US$ 100 bilhões no ano passado. Uma receita dessa tornaria a Shein a maior vendedora de produtos de moda do mundo, superando a espanhola Inditex, dona da Zara, que faturou cerca de US$ 32 bilhões, assim como a H&M, gigante sueca cujo faturamento ficou em US$ 24,8 bilhões, e a GAP, que vendeu US$ 15 bilhões.
A empresa atua em 165 países e emprega cerca de 10 mil pessoas. Entre os investidores da Shein, estão pesos-pesados das finanças mundiais, como os fundos de investimento Sequoia, General Atlantic e até mesmo o fundo soberano dos Emirados Árabes Unidos, o Mubadala.
O giro da produção é estrondoso. Todos os meses, a Shein lança 10 mil novos produtos. A Zara precisa de um ano para chegar a esse patamar — isso com investimento em marketing, via influenciadores, blogueiros de moda e celebridades. No Brasil, a garota-propaganda da Shein é a cantora Anitta.
A chinesa também trabalha com uma poderosa plataforma digital, usando cientificamente refinadas técnicas de SEO para interceptar as buscas dos internautas. Dessa forma, se os clientes procuram um modelo de vestuário ou acessório no Google, acabam direcionados para o seu site.
Tsunami no mercado brasileiro
No caso do mercado brasileiro, um relatório do banco BTG Pactual mostrou como, menos de um ano depois de sua chegada, a Shein já faturava um valor superior a R$ 2 bilhões. Em 2022, mais do que triplicou esse montante: chegou a R$ 8 bilhões. É um crescimento dez vezes superior ao de suas concorrentes brasileiras.
“Analisando os fluxos de cliques, a Shein tem mais de 20 milhões de usuários únicos por mês. Para ter uma ideia, ela tem mais clientes ativos do que o Magazine Luiza e mais do que o dobro da Renner. Sem dúvidas é a empresa com maior impacto no setor de varejo no momento. É algo brutal”, diz a Oeste Alberto Serrentino, consultor do setor de varejo e fundador da Varese Retail.
Em poucos meses, as vendas da Shein bateram as da Marisa, rede fundada em 1948 que conta com quatro centenas de lojas. A chinesa já está bem perto da segunda e da terceira maiores redes de varejo têxtil nacionais. No ano passado, a Guararapes, dona da Riachuelo, faturou R$ 8,6 bilhões; e a C&A, R$ 8,2 bilhões. Somente a Renner deve manter a liderança, com uma receita bruta de R$ 15,9 bilhões.
A Shein já representa um verdadeiro tsunami no mercado de moda brasileiro. Com a sua chegada, a produção têxtil local caiu 13% em 2022, a linha de vestuário diminuiu 8%, mas as vendas no varejo do setor subiram 14%. Ou seja, mais roupas foram vendidas, mas a produção caiu. A diferença foi importada. Boa parte, da China.
Os efeitos negativos não demoraram a aparecer. “Sem esse contrabando todo, talvez eu não tivesse que fechar 90 lojas”, declarou recentemente o CEO da Marisa, João Pinheiro Nogueira Batista. O executivo se referia ao método de importação dos produtos da Shein para o Brasil — completamente isento de impostos, graças a uma portaria de 1999 do Ministério da Fazenda. Segundo essa medida, o envio de qualquer mercadoria, oriunda do exterior e com valor de até US$ 50, de uma pessoa para outra pessoa, é isento de tributação.
“A Shein não é uma empresa ‘pirata’. Ela está atuando dentro do limbo regulatório previsto pelas leis brasileiras. Fomos nós que criamos essa confusão.”
(Alberto Serrentino, da Varese Retail)
Detalhe importante: a Shein não é uma pessoa física. É uma empresa. Portanto, os envios de produtos deveriam estar submetidos ao Imposto de Importação (II), de pelo menos 60%, além de outros encargos tributários. Mas quem decide qual valor declarar no pacote enviado é a própria Shein — ou seja, obviamente, a marca sempre indica menos do que US$ 50. Sem rodeios: está burlando a lei — é contrabando. Ou, pelo menos, concorrência desleal.
“A Shein não é uma empresa ‘pirata’. Ela está atuando dentro do limbo regulatório previsto pelas leis brasileiras. Fomos nós que criamos essa confusão. Essa política de isenção de US$ 50 abriu uma brecha para a compra de produtos de empresas estrangeiras. Isso gerou uma explosão do comércio internacional chamado de cross-border“, diz Serrentino.
Em dois anos e meio, a Shein conseguiu vender no Brasil seus produtos fabricados na China sem ter que respeitar nenhuma regra trabalhista, lei ambiental, sindicato ou sequer salário mínimo. E sem pagar impostos. Todas as compras são entregues diretamente na casa do freguês. Ou seja, também sem custo de administração de lojas físicas. Em 2022, estima-se que mais de 170 milhões de pequenos volumes tenham chegado ao Brasil pelos Correios.
Já as fabricantes e varejistas locais, além de sofrer com uma das maiores cargas tributárias do mundo, enfrentam a perversa combinação de ineficiências e obstáculos denominada popularmente “Custo Brasil”.
Os primeiros a perceber o tamanho da encrenca foram bancos e casas de análise, que iniciaram um corte generalizado nas ações do setor de vestuário. Atualmente, ninguém na famosa Avenida Faria Lima, centro financeiro de São Paulo, orienta seus clientes a comprar ações dessas empresas. Em um ano, os papéis da Renner caíram quase 30%. As ações da Marisa perderam 60%. A conclusão é: vendam antes que desvalorizem ainda mais.
Como se não bastasse, a Shein poderia realizar em breve uma abertura de capital (IPO) em Wall Street. Isso aumentaria ainda mais sua competitividade, graças a uma injeção de liquidez internacional. O resultado seria um impacto ainda maior nas empresas de vestuário brasileiras.
Governo, ao caçar recursos, encontrou a Shein
Desesperado por recursos para financiar seu gigantesco programa de gastos públicos, o governo Lula decidiu, no começo de abril, dar um basta nessa festa chinesa. O objetivo nunca foi proteger o mercado interno, mas arrecadar o máximo possível de qualquer fonte. Nos cálculos do Ministério da Fazenda, a operação poderia resultar em uma receita adicional de R$ 8 bilhões por ano.
Ocorre que essa tributação acabaria de vez com a competitividade da Shein, pois seus produtos alcançariam o mesmo custo dos concorrentes locais. Para milhões de brasileiros, o resultado seria um só: aumento dos preços.
A reação popular foi duríssima e pegou o Executivo completamente de surpresa. Uma avalanche de críticas, oriundas principalmente do eleitorado cativo do PT. O alerta vermelho apitou no Palácio do Planalto. A própria primeira-dama, Janja, interveio pessoalmente para impor a marcha a ré na decisão — a taxação foi revogada.
Quando a crise parecia superada, houve pressão dos fabricantes de vestuário brasileiros. O ministro Fernando Haddad costurou um acordo, com mediação do presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Josué Gomes da Silva, controlador da Coteminas, uma das maiores indústrias têxteis do Brasil. A Shein prometeu nacionalizar 85% dos seus produtos em parceria com a empresa brasileira, criando 100 mil novos empregos em três anos — um investimento de R$ 750 milhões.
Só que a resolução definitiva do problema foi apenas “para inglês ver”. A promessa de criar 100 mil novos empregos é irreal. O maior empregador particular do Brasil, o Banco Itaú, tem 99 mil funcionários e opera há mais de 80 anos. Mesmo em um setor tão intensivo de mão de obra como o têxtil, é impossível chegar a esse número em tão pouco tempo.
Além disso, atualmente 70% dos produtos da Shein são confeccionados fora do Brasil. “Se a Shein nacionalizasse uma parte tão considerável de sua produção, ela perderia a vantagem competitiva que somente a China fornece. Isso a colocaria em condição de isonomia com as concorrentes locais”, diz Serrentino.
Segundo alguns analistas, a meta de 85% de nacionalização se refere aos produtos vendidos por lojistas locais, mas importados da China. Questionada, a Shein não informou os critérios dessa nacionalização. Até porque a Coteminas é especializada em produtos de cama, mesa e banho, não em vestuário.
No passado, grandes grupos estrangeiros chegaram ao Brasil convencidos do sucesso, tentaram repetir as fórmulas aplicadas no exterior, mas perderam bilhões de reais. Foi essa a história da Forever 21, Fnac, Kiabi, Lush, Walmart, Wendy’s e da própria Walmart, a maior varejista do Planeta Terra. Por que com a Shein deveria ser diferente?
Bons negócios e amigos do rei
A proximidade do controlador da Coteminas com o presidente Lula acabou influenciando nesse entrave. Josué Gomes da Silva é filho de José Alencar, ex-vice-presidente de Lula nos dois primeiros mandatos, e chegou a ser convidado para se tornar ministro do Desenvolvimento, Comércio e Indústria.
O empresário tem interesse pessoal no sucesso da operação da Shein no Brasil. O acordo prevê que 2 mil confeccionistas da Coteminas passem a produzir para a chinesa, o que vai injetar uma quantia não divulgada de capital na empresa brasileira. Não por acaso, o preço das ações da Coteminas, que há anos estava estagnado, repentinamente triplicou na Bolsa de Valores de São Paulo.
Poucos dias depois, no entanto, a Coteminas anunciou 721 demissões na unidade de Blumenau (SC). É uma decisão incompreensível para uma empresa que, em tese, deveria se preparar para aumentar consideravelmente sua produção. O anúncio ampliou o mistério sobre o que pode estar acontecendo.
Brasília em socorro à varejista chinesa
Se de um lado o governo Lula mediou o acordo para que a Shein produzisse no Brasil, por outro estaria abrindo ainda mais as portas para a importação da chinesa. Em junho, o Executivo emanou um decreto regularizando de vez a chegada de produtos do exterior, confirmando a isenção até US$ 50 se o importador se cadastrar no sistema da Receita Federal e pagar o ICMS estadual. Em contrapartida, essas mercadorias terão um tratamento mais ágil na Aduana, passando pelo chamado “canal verde”.
“Isso não existe na legislação. Eles vão ter essa regalia apenas por estar respeitando a lei?”, disse Fernando Pimentel, diretor-superintendente da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit). Para o executivo, o governo do PT diz ter uma agenda voltada para a criação de renda, emprego e aumento da arrecadação, mas, ao mesmo tempo, atua prejudicando todo o setor têxtil nacional.
A opinião é compartilhada pelo CEO da Marisa. Para Nogueira Batista, é incompreensível que “um governo, ainda mais do PT, seja capaz do absurdo de legalizar o contrabando contra os interesses da indústria nacional”.
Os produtores de vestuário não engoliram as regalias que o governo concedeu à chinesa, especialmente pelo risco de, com essa brecha, entrarem no Brasil outras grandes varejistas asiáticas, como a Shopee ou a AliExpress, que já operam aqui e poderiam inundar o país com produtos de todos os tipos.
Segundo dados da Receita Federal, essa isenção tributária também vai provocar um rombo de R$ 35 bilhões nas contas públicas até 2027.
Reunidas no Instituto para Desenvolvimento do Varejo (IDV), as varejistas consideraram a determinação do governo extremamente grave e enviaram um ofício aos Correios, acusando a Shein de manobras de evasão fiscal através de falsa declaração do valor de mercadorias. “Essa medida está causando preocupação no setor, que se prepara para uma onda de demissões e fechamentos de lojas, penalizando as empresas nacionais, de todos os portes, que geram empregos formais e pagam seus impostos”, afirmou o IDV.
Para o instituto, uma compra feita por meio de plataforma digital de venda do exterior será tributada em 17%, enquanto a indústria e o comércio brasileiros continuarão sujeitos a uma carga fiscal que varia de 80% a 130%. Alguns grupos internacionais, como o gigante argentino Mercado Livre, criticaram duramente as medidas tomadas pelo governo Lula: “Está na contramão do mundo”.
Vários países proibiram a Shein de operar. Na Índia, por exemplo, a empresa foi banida sob acusação de ser uma ameaça à segurança nacional. Nos Estados Unidos, onde 75% do mercado de fast fashion é dominado pela chinesa, a empresa está sendo processada pelo departamento antitruste e acusada de produzir suas peças com uso de trabalho escravo. Segundo relatos que chegaram até o Congresso dos Estados Unidos, a Shein venderia roupas feitas com mão de obra dos uigures, minoria muçulmana discriminada pelo governo comunista de Pequim, em fábricas-prisões localizadas na Região Autônoma de Xingjang.
A Shein está na mira também da União Europeia, onde novas regras impedirão a entrada de empresas com práticas comerciais predatórias. Tão predatórias que até mesmo uma de suas concorrentes, a chinesa Temu, iniciou um processo contra a rival. A Shein está sendo acusada de “ameaçar, intimidar e coagir” milhares de fabricantes de roupas para impedi-los de trabalhar com a competidora. Apesar de ambas serem chinesas, a Temu iniciou a ação nos Estados Unidos. É um sinal claríssimo de pouca confiança no sistema judiciário local.
Procurado, o CEO da Shein para a América Latina, Marcelo Claure, não quis conceder entrevista.
Leia também “A reforma tributária contra os serviços”
Bela matéria! Parabéns e obrigado
Excelente artigo! Muito esclarecedor! Parabéns, Cauti!
Excelente esclarecimento sobre esta empresa. O brasileiro na maioria das vezes só se preocupa em comprar algo, independente de onde venha. Acho que precisamos nos preocupar mais nisso, pelas futuras gerações.
Baita matéria, Cauti. Parabéns!
Bem ainda que a Shein esteja usando de vazios da nossa legislação a culpa é do nosso próprio sistema tributário louco que simplesmente vão remendando um sistema furado e dá nisso. A Shein apenas explorou os vazios. Mas uma vez iendtificada a tramóia cabe aprimorar a legislação. Considero isso um grande cochilo de nossos agentes da fiscalização.
É bom que se atente que essa Shein faz o mesmo em todos os países do ocidente. Vejam que números avassladores nos EUA o maior mercado de consumo!
Se não bastasse a gigantesca carga tributária existente no país e a gula do atual DESgoverno em aumentar ainda mais, agora temos o dumping chinês.
De todos os milhões que o descondenado gastou com sua consorte em viagens internacionais e hotéis de altíssimo luxo, este é o retorno que o país está colhendo.
É apenas o começo. O pior ainda está por vir. Quem sobreviver verá.
Taí o resultado de uma das primeiras viagens de Lula, justamente para a China!
Esse desgoverno do PT vai destruir o Brasil.