Pular para o conteúdo
publicidade
Cartaz do filme Oppenheimer | Foto: Divulgação
Edição 175

Oppenheimer: o destruidor de mundos

Christopher Nolan transforma o nascimento da era nuclear num surpreendente sucesso de cinema

Dagomir Marquezi
-

É um ótimo sinal ver um cinema lotado de gente querendo assistir Oppenheimer. O filme, escrito e dirigido por Christopher Nolan, não faz concessões ao público. Nolan faz filmes que quebram paradigmas e mexem com os sentidos. Foi assim com Interestelar, Dunkirk e Tenet

Em Oppenheimer, os diálogos entre cientistas incluem termos como “mecânica quântica”, “fissão”, “fusão”, “isótopos” e “aceleradores de partículas”. Tudo misturado com elementos culturais disruptivos da época (anos 1930/1940), como a música de Igor Stravinsky e a pintura de Pablo Picasso. A narrativa é fragmentada, os efeitos visuais surgem aleatoriamente. E mesmo assim a plateia permanece firme, envolta no caos, afastada do conforto proporcionado pelo mundo linear ao qual está acostumada.

Infelizmente, na última de suas três horas de duração, o filme cai em certo convencionalismo, ao transformar Oppenheimer num mártir político, vítima de burocratas invejosos e anticomunistas histéricos. Mas a figura de Julius Robert Oppenheimer permanece integral em sua grandiosidade mítica. Como Prometeu, ele roubou o fogo dos deuses e o entregou aos humanos. Sua consciência passou da glória de encerrar a Segunda Guerra à culpa por ter criado a arma do juízo final.

Oppenheimer (muito parecido com o ator que o interpreta, Cillian Murphy) nasceu na cidade de Nova York, em 1902. Percorreu um longo caminho até que ganhasse uma das maiores honrarias conhecidas na época: virou capa da revista Time e ficou conhecido por algum tempo como “o homem mais famoso do mundo”. Essa capa é citada no filme algumas vezes, inclusive pelo então presidente Harry Truman (interpretado como um velhaco desprezível por Gary Oldman).

Edição da revista norte-americana Time com Julius Robert Oppenheimer na capa | Foto: Reprodução

Segundo essa célebre matéria da Time publicada em novembro de 1948, quando se formou em Harvard, “Robert havia lido César, Virgílio e Horácio sem precisar de um dicionário de latim, leu Platão e Homero em grego, compunha sonetos em francês e escrevia tratados sobre a polarização da luz”. Seu conhecimento de sânscrito inspirou uma das cenas mais marcantes do filme — quando sua amante pede para que ele leia no original um trecho da escritura sagrada hinduísta Bhagavad Gita. E Oppenheimer, de ego inchado, tem uma ereção ao traduzir a frase “agora eu me tornei a Morte, um destruidor de mundos”.

O Projeto Manhattan

Pela sua extrema inteligência e conhecimento, Julius Oppenheimer se tornou uma estrela na comunidade científica internacional. Poderia ter passado a vida inteira pulando de universidade em universidade, desfilando ao lado dos maiores físicos do mundo, como Enrico Fermi e Albert Einstein. Acontece que, na década de 1930, cientistas alemães descobriram como dividir os átomos. E quem estava no poder era Adolf Hitler.

A possibilidade de uma Alemanha Nazista armada com bombas nucleares fez com que os Estados Unidos e o Reino Unido se esforçassem para inventar essa arma mais rapidamente. Felizmente, Hitler não teve a mesma dedicação e nunca chegou muito perto de ter uma bomba atômica. (Segundo o filme, ele desprezava a física nuclear, por ser uma área “dominada por judeus”.)

Cartaz do filme Oppenheimer | Foto: Divulgação

O filme mostra as muitas questões éticas que passaram pela cabeça de Oppenheimer até se tornar o coordenador do Projeto Manhattan, instalado numa base secreta no meio do deserto do Estado do Novo México. Lá foi construída a primeira bomba atômica, testada em julho de 1945 e representada numa das cenas mais inesquecíveis do filme de Christopher Nolan. De acadêmico, Oppenheimer se tornou executivo-chefe de uma empresa de US$ 60 milhões (quase US$ 1 bilhão, em valores atuais), coordenando o trabalho de 4,5 mil trabalhadores, incluindo a nata da pesquisa acadêmica da época.

Do Projeto Manhattan saíram as duas bombas atiradas em Hiroshima e Nagasaki, que levaram os japoneses à rendição. Oppenheimer se tornou um herói nacional. O novo artefato estabelecia o poder absoluto dos Estados Unidos. E levantava questões morais extremamente graves — mortes em massa de civis, destruição de cidades inteiras, epidemias de câncer e outras doenças decorrentes da radiação liberada posteriormente.

“Um verdadeiro esquerdista”

Os problemas de Julius Oppenheimer começaram com o fim da Segunda Guerra e a ascensão da União Soviética como o principal rival dos Estados Unidos. Os soviéticos realizaram o primeiro teste nuclear em agosto de 1949, dando início à guerra fria e a uma corrida armamentista capaz de exterminar a vida na Terra.

A acusação era de que alguém de dentro do Laboratório Nacional de Los Alamos havia passado os segredos de fabricação da bomba norte-americana para a URSS. E de que Oppenheimer tinha facilitado isso, dada a sua simpatia pelo comunismo. Isso levou a uma investigação pelo chamado Comitê Thomas, que, segundo o filme, teria sido uma armação de Lewis Strauss (Robert Downey Jr.), um burocrata invejoso. Como resultado, Oppenheimer perdeu acesso aos segredos militares norte-americanos e foi demitido da Comissão de Energia Atômica dos Estados Unidos. 

Ator Robert Downey Jr., em Oppenheimer, no papel de Lewis Strauss | Foto: Reprodução

Na edição de 1948 da revista Time, citada anteriormente, Oppenheimer não tem medo de falar de sua vida política:

Eu acordei para o reconhecimento de que a política era parte da vida. Tornei-me um verdadeiro esquerdista, juntei-me ao Sindicato dos Professores, tinha muitos amigos comunistas. Era o que a maioria das pessoas fazia na faculdade ou no final do ensino médio. O Comitê Thomas não gosta disso, mas não estou envergonhado. A maior parte do que eu acreditava então agora parece um completo absurdo, mas foi uma parte essencial de me tornar um homem completo. Se não fosse por essa educação tardia, mas indispensável, eu não poderia ter feito o trabalho em Los Alamos.”

Essa declaração cabe na vida de muitas pessoas que foram esquerdistas na juventude e caíram fora com a maturidade. Oppenheimer colaborava financeiramente com as forças republicanas, que lutavam contra o general Francisco Franco, a versão espanhola do movimento fascista. Uma das cenas do filme mostra uma situação que conhecemos muito bem no Brasil — Oppenheimer numa festa chique, sendo pressionado a continuar dando dinheiro para os republicanos espanhóis através do então poderoso Partido Comunista Americano. O cientista, mesmo querendo agradar à sua namorada militante Jean Tatlock (Florence Pugh), negou a proposta de entrar para o partido.

A explosão sem fim

Outro fator que levantou suspeitas ao redor de Oppenheimer foi o fato de ele não aprovar o desenvolvimento do passo seguinte da nova tecnologia armamentista — a muito mais poderosa bomba de hidrogênio, concebida por seu colega Edward Teller. Oppenheimer tinha a ingênua ilusão de que, se os Estados Unidos parassem na bomba atômica e anunciassem a possibilidade da bomba H, Josef Stalin toparia na hora um tratado que interrompesse o desenvolvimento de mais armas de destruição em massa. Oppenheimer era, a seu modo, um “globalista” para os padrões de 1948. Achava que o medo das armas nucleares e um governo mundial patrocinado pela recém-criada Organização das Nações Unidas proporcionaria à humanidade uma época de paz e entendimento inédita na história.

Em 1963, Oppenheimer foi reabilitado com uma premiação do então presidente Lyndon Johnson. Ele se aposentou em 1966 e, no ano seguinte, morreu, vítima de câncer na garganta. Em 2022, o Departamento de Energia dos Estados Unidos devolveu simbolicamente o direito do cientista de ter acesso a segredos militares.

Julius Robert Oppenheimer | Foto: Reprodução/Wikimedia Commons

A vida de Julius Oppenheimer serve de material para lendas. Em um momento, os homens se matavam com metralhadoras e canhões. De repente, a possibilidade de aniquilação da vida no planeta se tornou possível. Um dos fatos bem explorados pelo filme foi a hipótese matemática levantada por um dos cientistas do Projeto Manhattan, de que uma explosão nuclear poderia não ser interrompida. Uma vez iniciada, a reação em cadeia incendiaria progressivamente toda a atmosfera terrestre.

“Qual é a possibilidade de isso acontecer?”, pergunta o general Leslie Groves (interpretado por Matt Damon), coordenador militar do Projeto Manhattan. “Quase zero”, responde Oppenheimer. “Eu preferiria que fosse zero”, finaliza o general. 

É com essa dúvida no ar que eles detonam, numa torre no deserto, a Trinity, a primeira bomba experimental. A reconstituição do teste mostra como tudo era muito tosco, com os cientistas e militares observando essa detonação com a roupa do corpo e “óculos de solda” para proteger os olhos. As bombas são transportadas do laboratório amarradas num caminhãozinho.

A caixa de Pandora estava aberta para sempre. Oppenheimer tinha que conviver com isso, mesmo sabendo que sua obra havia sido fruto de uma conjuntura histórica fora de seu controle. O filme Oppenheimer lida com os naturais problemas de consciência de um cientista vivendo num país livre, onde era possível ter esse tipo de problema. E os Estados Unidos carregam até hoje a condenação por ter criado a bomba e tê-la usado numa guerra pela única vez. O que não costuma ser dito é que o surgimento dessas armas está intimamente ligado à existência de ditaduras.

Lógica de gângster

Não existe guerra nem corrida armamentista entre países democráticos. Qualquer conflito armado acontece porque, de um dos lados (ou dos dois), existe uma ditadura. As armas nucleares norte-americanas surgiram em resposta a uma ameaça da Alemanha Nazista de inventar a bomba atômica antes. A corrida armamentista durante a guerra fria foi impulsionada pela obsessão de Josef Stalin em espalhar o regime comunista pelo resto do mundo.

Retrato de Josef Stalin | Foto: Prachaya Roekdeethaweesab/Shutterstock

A mais poderosa bomba de todos os tempos, a Tsar, foi detonada pelos soviéticos em 1961, com um artefato de 50 megatons, 3 mil vezes mais poderoso que a bomba de Hiroshima. Ela explodiu em uma ilha do Oceano Ártico, contaminando uma área de 2 mil quilômetros quadrados. Mas ninguém parece se lembrar disso.

Um ano depois, o mundo esteve mais perto do que nunca de uma guerra nuclear total, quando os soviéticos de Nikita Kruschev instalaram ogivas em Cuba, apontadas para os Estados Unidos, com apoio entusiasmado do ditador Fidel Castro. Quando a União Soviética foi extinta, em 1991, e a Rússia ameaçou se tornar uma democracia, norte-americanos e russos entraram em acordo não só para impedir o crescimento de seus arsenais como para cortar drasticamente o número de ogivas.

A ditadura de Vladimir Putin na Rússia enterrou esses acordos. Putin se comporta cada vez mais sob a lógica de um gângster para se manter no poder e já declarou que pode, sim, usar armas nucleares no campo de batalha. Só não usou até agora na invasão da Ucrânia porque os chineses estabeleceram esse limite em troca de apoio.

Vladimir Putin, presidente da Federação Russa | Foto: Sasa Dzambic/Shutterstock

A instável e isolada Rússia de Putin é dona do maior arsenal nuclear do mundo. Segundo a Federação dos Cientistas Americanos (FAS, na sigla em inglês), a Rússia possui hoje 5.977 armas nucleares, num arsenal em expansão. (Os Estados Unidos possuem 5.428 e estão encolhendo o arsenal.) Entre as novas armas anunciadas por Vladimir Putin está o torpedo Status-6, desenhado para criar uma onda de 500 metros de altura, provocando um “tsunami radiativo” à base de cobalto-60. 

“Tumor” a ser extirpado

A China, sob o Partido Comunista de Xi Jinping, está rompendo o equilíbrio estratégico no Pacífico com sua ameaça permanente de tomar Taiwan. Enquanto não invade a ilha, o país comunista multiplica, sem fiscalização internacional, seu arsenal nuclear. A China tem cerca de 400 ogivas (segundo a FAS) e, no atual ritmo, deve elevar seu arsenal para mil ogivas até 2030 e 1,5 mil até 2035. As bombas estão escondidas numa rede de túneis subterrâneos com 5 mil quilômetros de extensão.

São as ditaduras que fazem das armas nucleares objetos de agressão e chantagem explícita. Foram elas que quebraram o equilíbrio estratégico e ameaçaram o mundo com o holocausto

Ao nordeste da China está o regime comunista da Coreia do Norte, um país marginalizado pelo resto do mundo por sua brutalidade e corrupção. A ditadura, que mantém boa parte da população num estado permanente de fome em campos de concentração, já conta com 30 a 40 ogivas, segundo relatório do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz. O tirano Kim Jong-un deixa bem claro que as armas servem para “defender o regime” — e não o país. Ele testa mísseis em águas internacionais e mira o Japão, a Coreia do Sul e os Estados Unidos. Tudo completamente fora das leis internacionais, protegido apenas pela cumplicidade da China.

Kim Jong-un, líder supremo da Coreia do Norte | Foto: Divulgação/Korean Central News Agency (KCNA)

Já no Oriente Médio, é a tirania dos aiatolás que enfrenta o mundo na sua busca por armas nucleares. Ao contrário dos outros países armados, o regime do Irã não fala em defesa, mas em usar suas futuras bombas para destruir o Estado de Israel, que eles consideram um “tumor” a ser extirpado. O Paquistão, um país governado por militares muçulmanos fundamentalistas, também tem seu arsenal para ameaçar a rival Índia. 

Os pesadelos de Oppenheimer

Países democráticos também possuem arsenais — Estados Unidos, Reino Unido, Índia, França e Israel. Seria bom se essas bombas não fossem necessárias, mas esses países são controlados por sistemas políticos abertos, sujeitos a escrutínio público e fiscalização da mídia e de organismos internacionais. 

São as ditaduras que fazem das armas nucleares objetos de agressão e chantagem explícita. Foram elas que quebraram o equilíbrio estratégico e ameaçaram o mundo com o holocausto. Deveriam ser pressionadas diariamente pelo resto da comunidade internacional. Mas fomos treinados a achar que os maiores problemas do mundo são mudanças climáticas, identidades sexuais e desenvolvimento de inteligência artificial.

Um único submarino tem poder de fogo superior a todas as armas e explosivos usados na Segunda Guerra Mundial. Cada míssil pode carregar inúmeras ogivas, impossíveis de ser interceptadas. O holocausto pode ser iniciado por um erro, por um cálculo malfeito, pela decisão errada de um tirano irresponsável. Um ataque e um contra-ataque podem ocorrer em minutos. Os próximos. A nossa própria sobrevivência parece um milagre. 

Os pesadelos que assombravam Robert Oppenheimer ficaram muito maiores e mais assustadores. Mas se você, leitor, ainda consegue ler o que eu escrevo, é sinal de que o pior não aconteceu. E de que tivemos mais uma chance.

Cartaz do filme Oppenheimer | Foto: Divulgação

Leia também “Você votaria num robô para presidente?”

8 comentários
  1. Carlos Martins
    Carlos Martins

    Excelente texto!

  2. Silvia Maria Pimenta Magalhães Bonfiglioli
    Silvia Maria Pimenta Magalhães Bonfiglioli

    Tudo isso me apavora demais

  3. Valesca Frois Nassif
    Valesca Frois Nassif

    Seus artigos são sempre muito informativos e nos proporcionam bastante conhecimento de uma maneira deliciosa. Obrigada, Dagomir; vc é sempre antenado! Parabéns!

  4. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Excelente artigo. Que venha o apocalipse nuclear.

  5. Antonio Carlos Neves
    Antonio Carlos Neves

    Pois é Dagomir, diante da insensatez de nossas poucas mas principais autoridades de nossa “democracia”, ainda bem que não temos essa tecnologia. Assim, em nosso pais já estão querendo desarmar até quem obedecendo a Lei e a Ordem possui armas registradas.

  6. CUSTODIO DOS REIS PRINCIPE
    CUSTODIO DOS REIS PRINCIPE

    Excepcional artigo!Parabéns!!!!

  7. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    China nas mãos de Xi Jinping, Talibã no Afeganistão, guerra civil na Síria, genocídio praticado pela ditadura na Coreia do Norte (seu ditador assassinou o próprio tio), Vladimir Putin na Rússia, Irã dos Aiatolás, ditaduras africanas e sul americanas em um mundo cada vez mais inseguro.
    O atual governo brasileiro que mantém proximidade com muitas destas ditaduras já declarou que a Venezuela tem mais democracia que no Brasil. Um absurdo.
    Nunca imaginei que viveria o suficiente para vivenciar uma estupidez deste tamanho.
    O mundo nas mãos de tiramos, incluindo o Brasil, governado pelo judiciário, que não recebeu um único voto dos eleitores pela complacência do Congresso e o povo anestesiado discutindo pautas irrelevantes para uma sociedade míope às voltas com pautas como diversidade disso e daquilo, inclusão de não sei mais o quê, etc.
    Aprendi que todo jovem dos 15 aos 30 anos se não tiver inclinação socialista ele é imperialista.
    Na minha opinião se após os 30 continuar com o mesmo pensamento é idiota mesmo.
    As conquistas do capitalismo desde Adam Smith com sua obra A Riqueza das Nações, proporcionam hoje que um trabalhador possa se alimentar melhor que um nobre do século XVIII.

  8. Silas Veloso
    Silas Veloso

    O melhor desse excelente artigo é enxergar as ditaduras como fonte do revival da corrida armamentista. Usam seus arsenais nucleares pra chantagear e obter interlocução internacional.

Anterior:
A culpa é da Barbie?
Próximo:
Analistas animados com o comunismo
Newsletter

Seja o primeiro a saber sobre notícias, acontecimentos e eventos semanais no seu e-mail.