A apresentação do livro O Que Não te Contaram Sobre o Movimento Antirracista fala sobre duas realidades distintas. Enquanto os conservadores ingleses e norte-americanos estão empenhados no combate à discriminação racial, no Brasil não é raro ouvir os que se enxergam como conservadores chamarem a questão de “mimimi”. Para as autoras da obra, Geisiane Freitas, cientista social e mestre em sociologia, e Patrícia Silva, pós-doutoranda em sociologia, embora o racismo exista, o atual movimento antirracista — ou movimento negro — é excludente. E piora o problema.
Segundo Geisiane e Patrícia, o movimento negro no Brasil nasceu “muito bonito”, como movimento abolicionista, e ostentava nomes considerados ilustres, como Luís Gama, André Rebouças e José do Patrocínio, ícones do movimento liberal brasileiro. Hoje, porém, virou um movimento anticapitalista.
As autoras também dizem que “racismo estrutural” — definido como “o racismo presente na estrutura social” — é apenas uma teoria sem consistência científica que tem sido aceita como um dogma. No meio acadêmico, contudo, o “racismo estrutural” tem sido levado cada vez mais como verdade irrefutável.
“Para eles, o negro tem que ser de esquerda, tem que gostar de samba, tem que ser do Candomblé ou da Umbanda, tem que casar com uma negra. Uma série de coisas que o negro tem que ser para ser considerado negro”
Apesar de serem negras, a paulista Geisiane e a carioca Patrícia não têm lugar de fala no movimento negro atual, o que elas ressaltam ser uma contradição. “Os militantes escutam e respeitam somente aqueles com os quais concordam.”
Geisiane foi, inclusive, chamada de “parda”, de modo pejorativo, por uma militante. O motivo não é a cor da sua pele, mas o fato de ela não ter a chamada “consciência negra” — exclusividade só alcançada por marxistas.
Para as sociólogas, o movimento negro atual discrimina especialmente os negros que não se curvam a essa ideologia. Esses são chamados de “capitães do mato modernos” — durante a escravidão, o capitão do mato era o responsável por impedir a fuga dos negros escravizados ou capturá-los e devolvê-los aos senhores quando conseguiam fugir.
“Não são adjetivos bonitos, são horrorosos”, diz Patrícia. “É uma superviolência colocar um rótulo numa pessoa porque ela pensa de outra forma.” “Negro de direita” é outra expressão comum para discriminar os afro-brasileiros que não dividem as trincheiras ideológicas com petistas, psolistas e grupos semelhantes. Há ainda o termo “palmiteiro(a)”, usado por militantes mais radicais para repreender negros que namoram ou se casam com brancos.
Lançado há poucos dias na Livraria Drummond do Conjunto Nacional, em São Paulo, O Que Não te Contaram Sobre o Movimento Antirracista está na segunda reimpressão. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.
O que não nos contaram sobre o movimento antirracista?
[Geisiane] Para o movimento negro, não adianta só não ser racista. É preciso alguma ação que seja “antirracista”. O grande problema é que essas ações geralmente vão ao encontro do marxismo. Esse é o grande problema. Quando a palavra “antirracismo” é empregada, quer dizer o seguinte: “Se você não acatar as soluções que são propostas pelos marxistas, automaticamente você não está sendo antirracista”.
[Patrícia] Eu consigo, sim, não ser racista sem necessariamente ter que incorporar o marxismo na minha perspectiva política. É o ponto-chave desse livro. Esse movimento contemporâneo pegou a pauta antirracista como uma rota para o anticapitalismo. O marxismo nunca discutiu pauta racial. Isso é uma novidade, é uma nova roupagem. É o anticapitalismo como meta e o antirracismo como meio. Não é razoável chegar para a mãe de família negra e falar para acabar com a propriedade privada. Ela vai falar: “Minha casinha, que eu paguei com tanto sacrifício?”.
Qual é a origem da ideia de racismo estrutural?
[Geisiane] Na obra do professor Silvio Almeida, ele acabou abrindo mão de definir o que é racismo estrutural. Ele passa a obra toda falando de um racismo estrutural, mas ele não diz o que é. Também não diz o que está chamando de estrutura, que seria o capitalismo.
[Patrícia] A maioria das pessoas não percebeu isso e leu o livro inteiro. Gente com 25 anos, 22 anos, acha que o racismo é equivalente a racismo estrutural. Que são sinônimos. E não são. O termo está tão impregnado na cultura que um ministro do Supremo Tribunal Federal o colocou como se fosse equivalente a “racismo” num despacho.
O Brasil é um país racista?
[Patrícia] Não dá para falar que o país é racista. É possível falar que há racismo no Brasil. Não que o país é racista. Não tem nenhuma lei que imponha racismo, nenhum aparato jurídico que configure racismo. Mas qual Brasil? Na periferia, é muito difícil haver casos expressos de racismo. Porque, primeiro, a miscigenação é muito grande. E, segundo, a ausência material faz com que as pessoas estejam extremamente apegadas à realidade. Outras coisas importam. Preciso garantir minha sobrevivência e a dos meus filhos, pagar as minhas contas. O Brasil é muito grande, há pluralidade de classes, de ambientes, de tudo, para fazer uma afirmação tão grave, tão séria, de que o “país é racista”.
[Geisiane] Contudo, é importante dizer que, sim, existe racismo e que, de repente, você pode estar sujeito a sofrer racismo. Em nenhum momento negamos que exista racismo. O que estamos negando é tudo isso que eles chamam de “racismo estrutural”, que na verdade não existe, é infundado.
Por que vocês afirmam que o movimento negro tem sido mais excludente que inclusivo?
[Geisiane] Porque ele não está levando em consideração os desejos reais das pessoas negras. Ele está levando em consideração as vontades de uma elite intelectual negra que se formou nos últimos tempos. Está criando o estereótipo do negro. Para eles, o negro tem que ser de esquerda, tem que gostar de samba, tem que ser do Candomblé ou da Umbanda, tem que casar com uma negra.
[Patrícia] Uma série de coisas que o negro tem que ser para ser considerado negro. Eles desumanizam o negro. Se o negro ousar não cumprir esses requisitos que foram elencados por uma elite intelectual é taxado de uma série de coisas que um branco que comete racismo não é.
Então o movimento negro atual é segregador?
[Patrícia] O movimento antirracista, o movimento negro, é mais hostil com gente que não é de esquerda do que com um branco que comete racismo. Nós somos chamadas de adjetivos diversos, personagens muito, muito escabrosos da história brasileira, como “capitão do mato”.
[Geisiane] O movimento negro contemporâneo segrega primeiro o negro. Porque, se você não está de acordo com o guarda-chuva ideológico dele, dizendo “amém” para cada prerrogativa, imediatamente você é despido à força da sua identidade. Isso é muito tirânico. Não posso apontar o dedo para você e falar: “Você não é negra porque você não concorda que o capitalismo tenha que ser extirpado da face da terra”. É uma ditadura de pensamento. É uma senzala ideológica. Em nenhum momento ele está propondo uma solução de problema. Ele, na verdade, precisa dessa tensão, porque é mais fácil fazer a manipulação para, no final das contas, atingir o objetivo deles, que é ser um braço da revolução comunista.
A direita brasileira tem preconceito ou alguma trava com a discussão do racismo?
[Patrícia] Pode ter um preconceito. Mas também há uma má vontade. O Bruno Garschagen fala muito bem que essa nova direita, ainda que se nomeie como conservadora, não conhece os pilares do conservadorismo. E acaba sendo só uma reação antiesquerda. Então, tudo que a esquerda pauta, eles estão sendo o contrário. Imagine você pautar a sua existência sendo o puro reverso da esquerda. Isso não é ser conservador. Os conservadores precisam de um projeto de sociedade. Enquanto a direita ficar desprezando as pautas sociais — não só a pauta racial, que é o tema do nosso livro, mas todas elas —, a gente vai continuar perdendo.
Qual é a opinião de vocês a respeito da ideia de lugar de fala?
[Patrícia] O lugar de fala tem um problema parecido com o racismo estrutural. A autora, professora Djamila Ribeiro, faz uma excelente defesa do conceito do lugar de fala em seu livro, mas ela também não o define. Você termina a obra sem saber o que é o lugar de fala. Ela diz por que é importante a gente defender a ideia, mas ela não diz o que é. Na prática, na vida social, na vida real, o lugar de fala acaba sendo uma bela desculpa, um belo guarda-chuva para calar pessoas. Quem é que pode falar o quê? Para surpresa de muita gente, lugar de fala é somente para aquelas pessoas que têm uma tal consciência. Acaba sendo uma censura com uma casquinha de intelectualidade, de politicamente correto. Basicamente é o fascismo chique, com pedigree.
E o que pensam sobre a apropriação cultural?
[Patrícia] Um problema com a ideia de apropriação cultural é que a aplicação social desse conceito é relativa, porque algumas pessoas estão autorizadas a realizar apropriação cultural e outras não. A gente citou no livro o exemplo de um homem branco que, aqui em São Paulo, usou um cocar de índio que ganhou de presente de um amigo indígena. E sofreu uma pequena retaliação, a ponto de retirar o cocar no meio do Carnaval porque uma indígena se sentiu ofendida. Naquele mesmo Carnaval, a atriz Alessandra Negrini, toda fantasiada de indígena, teve a sua fantasia aprovada. E, como se sabe, ela também é tão branca quanto o homem branco. Então, na verdade, é um conceito tão elástico que é só um instrumento para ser ditadura. Ao lado dos conceitos que nós abordamos no livro, a apropriação cultural é o mais frágil de todos.
[Geisiane] O turbante, por exemplo, não era utilizado só pelas pessoas negras. O povo viking sempre trançou o cabelo. É um malabarismo teórico.
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O que eles detestam meninas é gente como vcs que sabe usar o próprio cérebro, portanto, não se deixa manipular.
Parabéns pela coragem Patricia e Geisiane.
Kuito boa entrevista.
Eu sou do tempo em que hoje é motivo de punição, era motivo de alegria para supostas vitimas, as quais se agradavam com os termos postos pra pelos amigos
Muito bom! Mulheres inteligentes que não se deixam dobrar pela militância abjeta.