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Manifestante em protesto pelos direitos trans segura um cartaz com os dizeres "Sangue trans nas mãos do Estado" | Foto: Loredana Sangiuliano/Shutterstock
Edição 178

A traição dos ateus

É tão provável um homem se tornar uma mulher quanto aquele cálice de vinho se tornar o sangue de Cristo durante a missa

Brendan O'Neill, da Spiked
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Estamos vivendo um grande confronto entre histeria e razão. De um lado estão os adeptos do culto à transgeneridade, vendendo seu engodo sobre almas com gênero e autoautenticação por meio da castração. Do outro estão aqueles dentre nós que sabemos que a biologia é real, que cada célula no corpo humano tem um sexo e que é tão provável um homem se tornar uma mulher quanto aquele cálice de vinho se tornar o sangue de Cristo durante a missa (desculpem, católicos).

Você nunca vai adivinhar de que lado estão alguns Novos Ateus nesse choque entre delírio e verdade. O lado da loucura. O lado que diz que um sujeito com barba e testículos pode, sim, ser lésbica. O que é infinitamente mais excêntrico que a ideia de que um sujeito com barba e testículos pode ser, sim, o Filho de Deus. Como foi que os irmãos racionalistas, esses secularistas linha dura, os seguidores de Dawkins cujo passatempo por anos foi zombar dos fiéis, se tornaram devotos de uma seita tão estranha da pós-verdade?

Um por um, os ateus estão ajoelhando no altar trans. Esta semana, um perfil no Twitter chamado “The New Atheists” (“Os Novos Ateus”) criticou o biólogo evolucionista Richard Dawkins por se tornar o que classificam como TERF (sigla para identificar as chamadas “feministas radicais trans-excludentes). Dawkins é uma raridade nas novas tropas racionalistas: ele acredita que pessoas com pênis são homens, não mulheres, assim como pão é pão, não o corpo de Cristo. Ele está “totalmente confuso”, decretaram seus apóstatas raivosos. A biologia “não existe em preto e branco, é um espectro completo de cores, assim como um arco-íris”, disseram. Essa crença hippie de que os humanos podem escolher seu sexo em um bufê multicolorido é apenas uma crença, claro, e não ciência. Esses são os vira-casacas do racionalismo.

Vimos Neil deGrasse Tyson, o cientista mais conhecido dos Estados Unidos, curvar-se diante do credo de que gênero é uma questão de sentimento. Em um vídeo no TikTok, ele disse que “os cromossomos XX/XY são insuficientes” quando se trata de determinar o sexo de alguém, porque como as pessoas se sentem importa tanto quanto a biologia. Então alguém pode se sentir mais feminino um dia e “80% masculino” no outro, o que significa que pode “tirar a maquiagem” e “vestir uma regata masculina”. Senhor, isso é cross-dressing, e não refuta a verdade dos cromossomos, que nos dizem de forma absoluta qual é o sexo de uma pessoa. Como Chloe Cole, que “destransicionou”, disse a Tyson, você está “confundindo a biologia humana básica com a cosmética”.

Vimos Matt Dillahunty, um dos principais ateus norte-americanos, promover o grito místico de que existe uma diferença entre “o que são os cromossomos” e a “identidade de gênero”. “Mulheres trans são mulheres”, ele declara como um bom fiel, talvez ansioso para provar que, embora goste de criticar religiões antigas, ele não tem uma única cruz ou blasfêmia para dizer sobre a nova religião. Bem, ninguém quer ser excomungado da sociedade esclarecida.

Matt Dillahunty, um dos principais ateus norte-americanos | Foto: Reprodução/Wikimedia Commons

O ator e apresentador Stephen Fry é outro amante da ciência que não tem deuses que parece ter se convertido à crença trans. O escritor britânico Philip Pullman, o comediante Stewart Lee e outros que um dia foram entusiastas ruidosos do racionalismo agora estão surpreendentemente contidos sobre essa nova ideologia, esse movimento devocional que, entre outras coisas, convida jovens mulheres a se submeterem à mortificação corporal para poderem se transubstanciar como “homens”. Parece algo que um racionalista deveria questionar.

Também existem os Humanistas do Reino Unido. Até mesmo a organização descrente mais influente da Inglaterra se juntou ao terraplanismo da ideologia pós-sexo. O grupo implorou ao governo britânico para não alterar a definição de sexo na Lei da Igualdade para “sexo biológico”. Por quê? Porque algumas pessoas têm um gênero interno misterioso — alma? — que pelo jeito vale mais que o sexo biológico em se tratando de em quais espaços sociais elas devem poder entrar. Esqueça a biologia, esqueça a ciência; que reine o sentimento. Algumas mulheres renunciaram ao Humanistas do Reino Unido por considerarem isso um abandono de princípios “solidários, científicos [e] racionais” em favor da irrealidade da subjetividade de gênero.

Vamos testemunhar a traição dos ateus. Os guerreiros do racionalismo de ontem agora são soldados rasos do delírio pós-moderno. Os detratores da religião que ganharam destaque nos anos 2000 agora rezam para os deuses da correção de gênero, seja por medo do cancelamento, seja porque de fato tiveram uma “conversão do caminho de Damasco” diante da ideia de que os sentimentos se sobrepõem à realidade; de que a verdade científica em algumas situações deve ficar em segundo plano em relação ao afago na autoestima de homens que dizem ser mulheres, mulheres que dizem ser homens e, presumivelmente, meros mortais que afirmam ser Deus. Afinal, se Dave com pênis e barba pode de fato ser uma mulher, por que Gary não poderia ser a volta de Jesus Cristo? A subjetividade reina, não?

Ilustração: Shutterstock

Ao que parece, a fanfarronice racionalista dos Novos Ateus era pura encenação. No momento em que uma luta real pela razão explodiu na vida pública, eles abandonaram o campo de batalha ou se juntaram ao outro lado, gritando “mulheres trans são mulheres!” enquanto davam sinais de fidelidade à nova fé. É fácil criticar as antigas religiões, especialmente o cristianismo. Colunas de jornal, convites para festivais literários e salas de conferências cheias de pessoas da classe média que não acreditam em Deus esperavam por aqueles que diziam: “Jesus andando sobre a água? Até parece!”. As consequências de fugir da ideologia trans são muito mais graves. As colunas são canceladas, os convites evaporam, a classe média se junta para achincalhar, não para aplaudir. É difícil evitar a conclusão de que alguns ateus declarados valorizam mais sua reputação do que o racionalismo.

As antigas religiões reprovam a blasfêmia; essa nova religião também, quando trata qualquer “negacionista” de seus critérios teológicos como um pária social. Especialmente se esse “negacionista” for uma mulher: sim, essa religião também odeia mulheres atrevidas

O que torna essa deserção da racionalidade ainda mais irritante é que eles a fizeram em resposta a uma neorreligião que na verdade está prejudicando os jovens. Os cristãos fundamentalistas podem tentar fazer crianças gays abandonarem a homossexualidade, mas essa nova religião as mutila para fazer isso, transformando jovens lésbicas em “meninos” e garotos gays em “meninas”. As escolas religiosas podem promover histórias ridículas de milagres para os alunos, mas esse novo culto enche as crianças de crenças muito mais desorientadoras sobre 72 gêneros, girldick (pênis feminino) e lésbicas com pênis. As antigas religiões reprovam a blasfêmia; essa nova religião também, quando trata qualquer “negacionista” de seus critérios teológicos como um pária social. Especialmente se esse “negacionista” for uma mulher: sim, essa religião também odeia mulheres atrevidas. E, mesmo assim, foi neste momento, com tudo o que está acontecendo, que alguns racionalistas deram uma pausa no racionalismo. É covardia moral sob o véu da justiça social.

Outros vão além de criticar a cumplicidade de alguns Novos Ateus em relação à irracionalidade moderna. Eles dizem que esses agitadores que não acreditam em Deus são os culpados pela nova loucura. Ao expulsarem Deus da sociedade, ao enfraquecerem ainda mais a Igreja, eles “criaram um vazio que uma ideologia nova e perigosa [ocupou]”, afirmou Tim Stanley no Daily Telegraph. Mate Deus, ganhe a questão trans. O que significa que até Dawkins, com sua postura TERF, é em parte culpado pela insanidade que ele agora lamenta.

Foto: Deemerwha Studio/Shutterstock

Acho que tem algo digno de nota nisso. Mas o problema não é que os Novos Ateus criaram um “vazio” que outros correram para ocupar. É que eles ativamente ajudaram a fomentar a hiperatomização que sustenta uma ideologia como a transgeneridade. Com a promoção da crença pós-Deus e pós-humanismo de que os seres humanos não passam de máquinas genéticas, feixes de DNA em um mundo cruel e sem significado, os Novos Ateus contribuíram para a grande e trágica retirada do indivíduo do mundo social para o eu que a nossa era criou. Do mundo externo de conexão e interação para o universo reduzido do determinismo genético, transformação corporal e cultivo invejoso da própria virtude narcisista.

Então, sim, existe uma ligação entre Dawkins e a questão trans. Sua contribuição para o pensamento de elite foi colossal, especialmente com o livro de 1976, O Gene Egoísta. Ele levou a biologia evolutiva para o mainstream, a ideia de que nós, seres humanos, não somos tão especiais como pensávamos. Nosso universo não tem “nenhum projeto, nenhum propósito, nenhum mal e nenhum bem, nada além de indiferença cega e implacável”, ele escreveu certa vez. “O DNA não sabe e não se importa. O DNA apenas existe. E nós dançamos conforme sua música.” Dançar conforme sua música. A característica mais impressionante de Dawkins e outros neodarwinistas não era o ateísmo, disse a grande filósofa moral Mary Midgley, e sim seu “fatalismo”.

Capa do livro O Gene Egoísta, de Richard Dawkins | Foto: Divulgação

Em The Solitary Self: Darwin and the Selfish Gene (“O eu solitário: Darwin e o gene egoísta”, em tradução livre), sua crítica contundente aos novos evolucionistas, Midgley repreendeu Dawkins por sua representação de “seres humanos impotentes escravizados por uma figura cujo destino é frio como uma pedra”. Só que sua visão fatalista era mais sufocante do que a dos antigos escribas, escreveu ela, porque dessa vez o “bully cósmico” que controla nosso destino não é uma “deidade pagã”, e sim “algo químico, o DNA, parte de nossas próprias células”. “Como outros organismos”, lamentou ela, somos vistos como “robôs desajeitados governados [pela biologia]”.

A visão de Dawkins ganhou influência nas décadas de 1980 e 1990. Ela teve mais expressão na tecnoburocracia desalmada do Novo Ateísmo. E se fundiu com outras tendências atomizantes do nosso tempo — o declínio das instituições sociais, o surgimento de uma cultura do medo e, sim, o enfraquecimento da religião — para exacerbar uma visão do indivíduo como totalmente solitário, uma criatura genética mais do que uma criatura social, governada não pela razão, mas por instruções enviadas pelo nosso DNA. “Thatcherismo biológico”, disse Midgley.

E esta é a questão: se somos nossa biologia, e apenas nossa biologia, não faz sentido que indivíduos que queiram se transformar desejem mudar sua biologia? Se dançamos conforme a música do nosso DNA, não seria lógico que pessoas que queiram se tornar algo mais, algo diferente, tenham vontade de mudar a música de seu DNA? Em resumo, há uma ligação, sem dúvida, entre a redução do ser humano a meros genes do pós-anos 1970 e a moda deste novo milênio de tentar, mesmo que de forma desamparada, alterar a si mesmo no nível genético.

Tomar hormônios, cortar partes, remover testículos, retirar ovários, injetar, mutilar, travar uma guerra incessante e impiedosa contra a própria essência biológica. Não deveria surpreender que o movimento trans, e o identitarismo de modo mais amplo, trate o corpo como o único local de mudança na nossa era de thatcherismo biológico, em que não há sociedade, não há moral, não há bem nem mal — apenas corpos, poeira de estrelas transformada em carne, seguindo impulsos genéticos.

Existe uma relação próxima entre as ideologias modernas de atomização e a guerra infernal e infrutífera que os jovens hoje travam contra o próprio corpo, contra as prisões de DNA que habitamos, como nos disseram. Talvez Dawkins seja o avô da transgeneridade. Estou brincando. Mas acredito que precisamos nos libertar desse conflito entre o determinismo biológico de um lado e a “libertação” biológica autodestrutiva do outro. A biologia é real, mas não nos controla. Não se pode mudar de sexo, mas é possível mudar as circunstâncias. Isso, no entanto, significa ir além do thatcherismo biológico das novas ciências e da autoestima neoliberal da política identitária e redescobrir nosso lugar em um mundo de outras pessoas e outras ideias. Somos criaturas sociais, não “robôs desajeitados” controlados ou, pior, esculpidos e substituídos por novas partes.

Manifestantes se reúnem no Protesto dos Direitos Trans, em Londres, Inglaterra | Foto: Loredana Sangiuliano/Shutterstock

Brendan O’Neill é repórter-chefe de política da Spiked e apresentador do podcast da SpikedThe Brendan O’Neill Show. Seu novo livro, A Heretic’s Manifesto: Essays on the Unsayable, já está à venda.
Ele está no Instagram: @burntoakboy

Leia também “Kevin Spacey e a morte do #MeToo”

5 comentários
  1. Omar Fernandes Aly
    Omar Fernandes Aly

    😮

  2. Maria Weber
    Maria Weber

    Este Brendan é fantástico

  3. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Excelente esta reportagem, prova que a ciência é importante sem futurismo e pretensões proféticas

  4. David
    David

    O nome disso é IDIOTIZAÇÃO EM LARGA ESCALA

  5. Marcos Antonio
    Marcos Antonio

    Impressionante a clareza retórica ao abordar a questão de gênero como a Nova Religião. Particularmente, eu já pensava assim, mas a imagem desses Novos Ateus ajoelhados nesse ” Novo Templo” de um brilhantismo acalentador. Só mesmo a Revista Oeste para nos oferecer esses momentos de deleite nesse caos moral que estamos imersos .

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