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Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock
Edição 178

O Rio de Janeiro em colapso

A falta de segurança pública e a incompetência dos governantes transformam o Rio num local desprotegido

Branca Nunes
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Uma das cidades mais belas do mundo, o Rio de Janeiro deveria ser o principal destino turístico do país, certo? Errado. No Brasil, a Cidade Maravilhosa é superada por uma metrópole que não oferece nada comparável em matéria de belezas naturais. Em 2022, foi São Paulo a porta de entrada preferida dos visitantes estrangeiros. Mais de 1,5 milhão de turistas internacionais desembarcaram no colosso de concreto situado no Planalto de Piratininga. Enquanto isso, desembarcaram em território carioca cerca de 650 mil — menos da metade. As explicações para tamanha distorção começam pela porta de entrada.

Em 2014, quando o Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, o Galeão, foi privatizado, o movimento foi de 17 milhões de passageiros. No ano passado, caiu para 6 milhões. Para avaliar o tamanho da queda, basta uma comparação com Guarulhos, em São Paulo. O aeroporto mais movimentado do país atendeu mais de 34 milhões de passageiros. Seguem-se Congonhas (18 milhões), Brasília (13 milhões) e Campinas (12 milhões). A decadência do Galeão é acentuada pela posição ocupada pelo Santos Dumont. Com 10 milhões de passageiros, o acanhado aeroporto a poucas centenas de metros do centro do Rio é o quinto colocado no ranking dos mais movimentados, em que o terminal localizado na Ilha do Governador caiu da quarta para a décima posição. Está atrás dos aeroportos de Confins, Recife, Porto Alegre e Salvador.

Em consequência dessa baixa procura, a Changi, concessionária que administra o Galeão há nove anos, tenta devolver o terminal desde 2022, alegando que é um negócio sem viabilidade financeira. Esse quadro falimentar foi agravado pela crise econômica que se acentuou a partir de 2013 e piorou com a pandemia de coronavírus registrada a partir de 2020. Mas há um problema bem maior, mais antigo e de solução muito mais complicada: a insegurança.

Crise no Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro | Foto: Reprodução/TV Globo

A distância que separa o centro do Rio do Galeão é de 17 quilômetros. Mas que 17 quilômetros! Em boa parte o caminho é balizado pelo Complexo da Maré, um dos conjuntos de favelas mais perigosos do mundo. Duas facções criminosas rivais disputam o controle, o Comando Vermelho e o Terceiro Comando Puro (TCP), o que gera uma série de violentos confrontos armados. Um dos trechos do trajeto ganhou o apelido de Faixa de Gaza. São comuns as imagens de motoristas se jogando no chão durante os frequentes congestionamentos para tentar escapar das balas perdidas que cruzam o asfalto. 

“É uma roleta-russa diária”, resume numa entrevista ao Estadão o motorista Francisco de Assis, de 36 anos, obrigado a percorrer diariamente a região.

“Na Linha Vermelha também são comuns os arrastões e roubos de carros e motos, o que assusta os turistas e os próprios cariocas”, afirmou o coronel Fernando Montenegro, que comandou a ocupação e a pacificação do Complexo do Alemão e da Favela da Penha. “Eles preferem arcar com tarifas aéreas mais caras e decolar do Santos Dumont, dentro da área da cidade ainda considerada segura.”

Pedro Rodrigues, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE), confirma a informação. “Tenho vários amigos que, quando vão para o exterior, preferem pegar um voo no Santos Dumont para Guarulhos e, de lá, seguir para o destino final”, conta.

Em vez de cuidar da região atormentada pela insegurança, o prefeito Eduardo Paes e o governador Cláudio Castro preferem piorar a vida de quem viaja em paz. A dupla se uniu para pedir ao presidente Lula a adoção de restrições destinadas a diminuir o número de voos que partem do Santos Dumont. A partir de janeiro, o aeroporto central do Rio terá como destinos apenas Congonhas, em São Paulo, Pampulha, em Belo Horizonte, e Vitória, no Espírito Santo. 

Tantos problemas não tiram a alegria do carnavalesco Eduardo Paes, que resolveu esbanjar bom humor no Twitter: “ATENÇÃO! INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL INVADIU ESSA CONTA!”, escreveu o prefeito. “Oi, eu sou a Inteligência Artificial invadi essa conta já que o prefeito do Rio não está conseguindo explicar direito as coisas sobre o esvaziamento do Galeão”. Primeiro, claro, apontou o culpado por tudo: Jair Bolsonaro. Em seguida, relacionou o que seriam “medidas simples e imediatas que podem ser tomadas pelo ministro Márcio França para começar a resolver o problema”. Três delas: “a) Reduzir o número de voos no Santos Dumont, que já está sobrecarregado inclusive com riscos à segurança; b) Restringir voos no Santos Dumont para somente ponte aérea Rio-São Paulo e Rio-Brasília; c) Proibir voos internacionais (com conexão direta) saindo do Santos Dumont”.

“Havia duas opções”, afirma Roberto Motta, ex-secretário de Segurança do Rio, ao comentar o episódio no Twitter. “A primeira seria melhorar o transporte, a segurança das vias, a qualidade e os preços do Galeão para atrair usuários. A segunda era deixar tudo como está e dar uma canetada retirando a liberdade de escolha do cidadão. Foi essa a opção que o regime escolheu.”

“Em nenhum momento Eduardo Paes se preocupou em ouvir a população”, observa Motta. “Tanto o governo federal quanto a prefeitura fingem que estão discutindo um aeroporto na Suíça e agem como se o problema da violência não existisse. A situação é grave. Quem precisa pegar um voo de madrugada no Galeão chega com horas de antecedência. Quem desembarca muito tarde, prefere dormir no hotel do aeroporto a enfrentar a Linha Vermelha à noite.”

Supervia

O problema aéreo se estende também aos trilhos. Seguindo o exemplo da administradora do Galeão, a japonesa Guarana Urban Mobility Incorporated (Gumi) quer devolver a concessão da Supervia, empresa que administra os trens urbanos da região metropolitana. Segundo o jornal O Globo, o governo estadual afirma que a Gumi não fez os investimentos necessários à melhoria do sistema. A concessionária alega que faltou dinheiro.

Hoje, a malha ferroviária administrada pela Supervia tem 270 quilômetros espalhados por 12 municípios e transporta 350 mil passageiros por dia. Antes da pandemia, a média chegava a 600 mil. Em 1980, era de 1,2 milhão. A administração dos trens metropolitanos, contudo, esbarra nos mesmos obstáculos que explicam a desoladora situação do Galeão. 

Entre 2017 e 2021, as perdas de energia da Light com os chamados “gatos” em residências e pequenos estabelecimentos comerciais subiram de 37% para 54%. A média na maioria dos estados brasileiros fica em torno de 14%

“Fiz uma análise de risco presencial em todas as 104 estações da Supervia alguns anos atrás”, conta o coronel Montenegro. “Várias delas ficam no coração de favelas, em locais com pouca segurança. Muitas pessoas simplesmente não pagam a passagem. Elas vêm andando pela linha do trem, sobem na plataforma na maior tranquilidade, e os seguranças têm medo de coibir.” Montenegro conta também que, quando uma facção criminosa invade o território de outra, algumas estações da Supervia se transformam em rota de passagem de dezenas de homens armados com fuzis.

Roberto Motta afirma que no começo de 2020 já havia uma série de problemas com a Supervia. A segurança era um dos mais graves. “Havia estações dominadas pelo tráfico de drogas, e muitos trechos precisavam ser interditados por causa de tiroteios”, conta Motta. Hoje, outro tormento é o roubo de cabos, fonte de enormes prejuízos. Só em 2021, ano em que a Supervia entrou com um pedido de recuperação judicial, foram registradas 526 ocorrências do tipo — quase duas por dia. “A segurança está no ponto central de todos os problemas envolvendo concessões de infraestrutura”, explica o coronel Montenegro. 

Light

Há poucos meses, a Light entrou na fila da recuperação judicial. A dívida estimada da empresa é de R$11 bilhões. Dezenas de sites de esquerda se apressaram em atribuir a derrocada da companhia à privatização ocorrida em 1996. Mas a maior barreira para seu bom funcionamento pouco tem a ver com os métodos dos atuais administradores.

Foto: Reprodução/Site Esquerda Online
Foto: Reprodução/Site PT

“O verdadeiro problema da Light passa pelo furto de energia e pela inadimplência”, afirma Luciano Losekann, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenador do Grupo de Energia e Regulação da Universidade (Gemer). “Mais de 50% do mercado de baixa pressão não paga pela energia que utiliza na cidade. Diante dessa realidade, a tarifa cobrada, embora alta, não é suficiente para compensar a perda”. 

Entre 2017 e 2021, as perdas de energia da Light com os chamados “gatos” em residências e pequenos estabelecimentos comerciais subiram de 37% para 54%. Segundo Losekann, a média na maioria dos estados brasileiros fica em torno de 14%. Pelo menos metade dessas perdas ocorre em áreas dominadas pela milícia ou pelo tráfico de drogas. Os grupos paramilitares cobram de R$ 50 a R$ 100 por mês pela luz desviada. “A Light não consegue cortar a energia nem fiscalizar essas regiões”, explica Pedro Rodrigues. “Em Belford Roxo, por exemplo, é proibida a entrada dos carros da Light.”

Apesar do cenário desanimador, investidores como Nelson Tanure estão comprando ações da empresa. No começo de agosto, a direção do novo conselho de administração da Light contratou o banco de investimentos BR Partners (BRBI11) para assessorá-la nas negociações com os credores.

As verdadeiras causas

“O Rio está passando por isso por um conjunto de fatores que começam com a péssima qualidade da administração pública”, disse Rodrigues. “Os últimos cinco governadores foram presos, e o Estado vem passando por inúmeras dificuldades. O que vivemos hoje é fruto da não continuidade e da não manutenção de políticas públicas mínimas.” Só Sérgio Cabral foi condenado a 430 anos de cadeia.

“Muitas coisas que só aconteciam no Rio se espalharam para outros estados”, observa Motta. “Um exemplo é o Guarujá, no litoral paulista, onde os criminosos do narcotráfico também passaram a exercer em certos lugares o controle territorial. Mas, ao contrário do que acontece em cidades como São Paulo, as zonas de exclusão estão no centro do Rio. Para ir da Zona Sul para a Barra da Tijuca, por exemplo, você é obrigado a atravessar a favela da Rocinha ou a do Vidigal. E isso acontece em praticamente todos os bairros da cidade. Além disso, houve a degradação do sistema de Justiça Criminal. A defensoria pública no Brasil virou defensora da classe dos criminosos.” Para o ex-secretário de Segurança Pública, a receita para lidar com isso é o endurecimento na maneira de agir com os bandidos.

Segundo Motta, acabar com o narcotráfico é praticamente impossível em qualquer lugar do mundo. Mas a recuperação da segurança começa com a retomada das zonas de exclusão, que precisam voltar ao controle do Estado. Só assim passageiros de viagens aéreas se animarão a deslocar-se para o Galeão sem rezar durante todo o trajeto para que cheguem vivos ao saguão de embarque.

Estátua do poeta Carlos Drummond de Andrade, na Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro | Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock

Leia também “Redes de pedofilia assombram o Instagram”

15 comentários
  1. Bárbara Lacerda Nunes Da Silva
    Bárbara Lacerda Nunes Da Silva

    Triste realidade. Maravilhosa reportagem.

  2. Marcus Borelli
    Marcus Borelli

    Eu sou do tempo em que eu cantarolava “O Rio de Janeiro continua lindo”. Continuava lindo …

  3. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Muito boa esta explanação, Branca Nunes.

  4. Luiz Fraga
    Luiz Fraga

    O Rio de Janeiro é só uma amostra do que está prestes a acontecer com o resto do País daqui pra frente.
    Caminhamos para um narco-estado totalitário dominado por uma cleptocracia de vies esquerdista-marxista.

  5. Petula Clara e Silva Borba
    Petula Clara e Silva Borba

    Quando o Tarcisio saiu candidato a governador, fiquei euforica, pq ele é carioca. Para nossa tristeza, ele foi para São Paulo.
    Não merecemos esses governantes, Claudio Castro é muito fraco, votei nele, pq se não seria o Freixo.
    Não sei como o Romário conseguiu a reeleição para o senado, ele não faz nada, não participa de nada, só dá as festas na casa dele.
    A violência esta demais aqui.

  6. Wilson José Baptista Abreu
    Wilson José Baptista Abreu

    Vivemos num estado de total degradação, o Rio de Janeiro, que outrra cantado em versos e prosas, não existe mais, moro na baixada fluminense, chamado de grande rio, vizinho de Belford Roxo, cidade do amor.kkkk, onde recentemente por apoiar o DILMO, teve a esposa do prefeito, deputada federal, empossada no ministério do Turismo, em seguida foi acusada de relações com milicianos.

  7. Valesca Frois Nassif
    Valesca Frois Nassif

    Que tristeza! Muito desanimador que nosso mais lindo cartão postal tenha se tornado um centro de excelência da criminalidade. Exatamente aquela cidade que , por ser a mais evocada por mentes e lembranças de turistas estrangeiros, deveria ser cuidada e protegida com zelo especial pelas autoridades . Perda irrecuperável! Pobre cidade!

  8. Omar Fernandes Aly
    Omar Fernandes Aly

    Eh uma pena o que acontece com o Rio, cidade tão linda é transformada numa maçã podre por omissão e negligência do poder público que impôs a má administração como um “valor” a ser perpetuado. Pobre RJ, pobre Brasil. Sempre fui um turista motivado quando o Rio era bom, agora vou infelizmente cada vez menos até a ex-cidade maravilhosa.

  9. LUIZ ANTONIO DE SANTA RITTA
    LUIZ ANTONIO DE SANTA RITTA

    Entendo que seria necessário novamente a intervenção da segurança pública do RJ, como ocorreu com Braga Neto e um arquiteto como Jaime Lerner para resolver este problema viário do Rio.

  10. Jose Carlos Rodrigues Da Silva
    Jose Carlos Rodrigues Da Silva

    Saneamento básico, estou precisando.
    Saúde de qualidade, é um sonho.
    Segurança pública, gostaria de ter.
    Vou orar e pedir a Deus tudo isso…
    Pera aí! Essas coisas são obrigação do governo, ou eu estou errado?Nilson Rutizat

  11. Luiz Pereira De Castro Junior
    Luiz Pereira De Castro Junior

    Ótimo artigo !

  12. Celi Ferreira da Silva Muniz
    Celi Ferreira da Silva Muniz

    Muita tristeza vendo dia a dia acontecer fatos inenarráveis !!!!
    Só mesmo a Revista Oeste para mostrar com imparcialidade a verdade dos fatos! Parabéns!

  13. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Tem coisa pior nas administrações públicas, um Estado ser administrado por Cabral e uma cidade administrada por um cafajeste pulha da pior espécie como Eduardo Paes … Deus abençoe o Rio de Janeiro

  14. LUIZ PRADO
    LUIZ PRADO

    A opção pelo BRT em lugar de um trem de superfície confortável para o Galeão – como existe na maior parte das grandes capitais do mundo, onclusive Milão – foi um erro gravíssimo, baseado no interesse da máfia que controla os ônibus.

    1. Lenart Palmeira do Nascimento Filho
      Lenart Palmeira do Nascimento Filho

      A vocação do aeroporto Santos Dumont sempre foi a de ponte aérea. Hoje o número de vôos é absurdamente alto com uma pista tão pequena. Achei a decisão acertada. É necessário, entretanto, investimentos em segurança e transporte.

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